Concepções de escola inclusiva: o olhar da família de pessoas com TEA sob análise

Jackeline Miranda de Barros

Discente (PPGIELT/UEG)

Yara Fonseca de Oliveira

Docente no PPGIELT/UEG

A Política Nacional de Educação Especial, instituída em 2008, alcançou entre seus desdobramentos um aumento significativo no número de matrículas de estudantes com deficiência nas escolas comuns de todo o território nacional (Brasil, 2008). Contudo, o direito à educação explicitado na legislação, por si só, não é garantidor da efetivação da proposta educacional alicerçada em uma perspectiva inclusivista.

Neste artigo, o objetivo é analisar um aspecto importante do processo de inclusão escolar: a concepção do significado de Educação Inclusiva presente nas narrativas de famílias de estudantes com deficiência matriculados em duas escolas públicas da capital de Goiás.

O interesse pelo desenvolvimento desse tema decorre da experiência profissional da pesquisadora como professora de ensino especial em um centro de atendimento educacional especializado, o que lhe proporciona contato direto com estudantes com deficiência. Alia-se a isso seu desejo de compreender alguns aspectos desse processo de inclusão, no que se refere à compreensão de escola inclusiva e de acolhimento institucional sob a perspectiva das famílias.

As questões que envolvem a inclusão escolar perpassam a prática pedagógica, a formação de professores, o processo de ensino-aprendizagem e a organização estrutural das escolas, além de ensejar muitas mudanças em todos esses aspectos. Ropoli et al. (2010) afirmam que a escola comum se torna inclusiva quando reconhece as diferenças dos estudantes diante do processo educativo e busca a participação e o progresso de todos, adotando novas práticas pedagógicas.

Ressalte-se, porém, que as mudanças necessárias para o alcance de uma educação verdadeiramente inclusiva não acontecem por acaso nem por decreto, e sim se elas fizerem parte da vontade política do coletivo da escola, que engloba professores, estudantes, famílias e demais sujeitos da comunidade escolar. Para tanto, é primordial “escutar” os pais ou responsáveis por estudantes – neste caso com transtorno do espectro autista (TEA).

Este artigo está estruturado em cinco seções, em que se propõem a discussão acerca do direito de acesso à escola comum e a percepção das famílias de estudantes com deficiência sobre suas experiências em escolas pretensamente inclusivas relatadas nas narrativas que foram analisadas com base em critérios metodológicos a fim de evidenciar as contradições e conformidades com a legislação para a área e a literatura especializada.

A escolha metodológica foi pela abordagem qualitativa para a análise subjetiva dos dados coletados por meio da observação direta extensiva e mediante a aplicação de um questionário constituído por uma série ordenada de perguntas abertas, que foram respondidas por escrito e sem a presença do entrevistador.

Foram participantes da pesquisa as mães de dois estudantes com laudo médico de transtorno do espectro autista (TEA).

A legislação brasileira, o direito de acesso à escola comum e a experiência de mães de estudantes com deficiência

A Constituição Federal de 1988 garante a matrícula escolar à pessoa com deficiência quando estabelece, no Art. 205, a educação como um direito de todos.

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil, 1988).

Por sua vez, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDBEN), define no Art. 58 a Educação Especial como "modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para estudantes que apresentam necessidades especiais". Enfatiza ainda o papel da escola no ensino de pessoas com deficiência quando determina, no Art. 50, que a instituição lhes deve assegurar:

  • currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender as suas necessidades;
  • terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do Ensino Fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados (Brasil, 1996, p. 15).
  • O delineamento jurídico que constitui o discurso legal para a área de Educação Especial está em consonância com a tendência mundial inaugurada pela Declaração Mundial dos Direitos Humanos (ONU, 1946), documento do qual derivam outras leis que garantem o direito à educação escolar e de qualidade. Também se alinha com o que está estabelecido na Declaração Mundial de Educação para Todos, elaborada na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, Tailândia (Unesco, 1990), e com a Declaração de Salamanca (1994). Esta constitui um marco conceitual da filosofia inclusiva e pontua em seu texto a necessidade de mudanças nos sistemas educacionais ao redor do mundo no sentido de atingir o objetivo de uma educação para “todos” mediante a garantia de um nível aceitável de aprendizagem de acordo com características, interesses, necessidades e capacidades próprias dos estudantes. A palavra “todos” no documento de Salamanca reforça um discurso que abrange as mais plurais características da diversidade, assumindo, então, uma proposta de Educação Inclusiva.

    Conforme a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação (Seesp/MEC), quando o Brasil opta por um sistema educacional inclusivo, está em conformidade com a Declaração de Salamanca:

    Todas as crianças têm direito fundamental à educação e deve ser dada a oportunidade de obter e manter um nível adequado de conhecimentos. Cada criança tem características, interesses, capacidades e necessidades de aprendizagem que lhe são próprios. Os sistemas educativos devem ser projetados e os programas aplicados de modo que tenham em vista toda a gama dessas diferentes características e necessidades. As pessoas com necessidades educativas especiais devem ter acesso à escola regular, que deverá integrá-las numa pedagogia centrada na criança, capaz de atender a essas necessidades. As escolas regulares, com essa orientação integradora, representam os meios mais eficazes de combater as atitudes discriminatórias, criando comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade integradora e alcançando educação para todos, além de proporcionar uma educação efetiva à maioria das crianças e melhorar tanto a eficiência como a relação custo-benefício de todo o sistema educativo (Brasil, 1995, p. 1).

    A política educacional na perspectiva inclusiva definiu como público-alvo da Educação Especial os estudantes com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA) e altas habilidades/superdotação e orientou que a matrícula deles deve ser feita preferencialmente na escola comum. O acesso desses sujeitos à educação formal implicou mudanças importantes para o processo de ensino-aprendizagem dos diferentes atores que interagem no cenário escolar, provocando reflexos na organização da escola e na prática pedagógica dos professores.

    Mantoan (2003, p. 44) afirma que

    a política educacional inclusiva objetiva assegurar às pessoas com deficiência o acesso, participação e aprendizagem nas escolas regulares, orientando os sistemas de ensino a promover respostas às necessidades educacionais destes por meio da garantia de:

    • transversalidade da Educação Especial da Educação Infantil à Educação Superior;
    • atendimento educacional especializado;
    • continuidade da escolarização nos níveis mais elevados de ensino;
    • formação de professores para o atendimento educacional especializado e dos demais profissionais da Educação para a inclusão escolar;
    • participação da família e da comunidade;
    • acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos transportes, na comunicação e na informação;
    • articulação intersetorial na implementação das políticas públicas.

    Para a compreensão da prática pedagógica, recorre-se à teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano de Vygotsky (2010), que destaca que a escola exerce papel fundamental no desenvolvimento da criança com deficiência. Por isso, é necessário que a escola organize o ensino por meio da mediação pedagógica planejada e intencional de seus professores para que encontrem formas de desenvolver o pensamento e as potencialidades de seus estudantes.

    A criança atrasada, abandonada a si mesma, não pode atingir nenhuma forma evolucionada de pensamento abstrato e, precisamente por isso, a tarefa concreta da escola consiste em fazer todos os esforços para encaminhar a criança nessa direção, para desenvolver o que lhe falta (Vygotsky et al., 2010, p. 113).

    Compreende-se, assim, que a escola tem o papel de propiciar ao estudante interações sociais planejadas e mediadas por professores, funcionários e colegas, o que irá favorecer o desenvolvimento de suas potencialidades e capacidades. A instituição deve ser, portanto, um espaço onde se compreendam as especificidades de cada pessoa e que a enxerguem como um ser único e dotado de capacidades a serem competentemente estimuladas. Para Vygotsky (2010), não é possível dissociar o desenvolvimento das funções psíquicas superiores do ser humano das experiências de interação social vividas pelo sujeito.

    Quanto ao âmbito estrutural, Ferreira e Ferreira (2013) apontam como um dos reflexos dessa política o exponencial aumento do número de matrículas de estudantes com deficiência nas escolas comuns, fato que guarda estreita relação com as reformas da Educação Básica em um contexto de ampliação do acesso da população à escola durante o período compreendido entre os anos 2000 e 2010. Nesses anos, o número de matrículas de pessoas com deficiência cresceu mais de 400%, passando de 145 mil em 2003 para 698 mil em 2014 (Brasil, 2015). Entre 2014 e 2018 houve crescimento de 33% no número de matrículas, quando foi alcançada a marca de 1,2 milhão de estudantes (Cristaldo, 2021).

    Se o ingresso dos(as) filhos(as) no ambiente escolar comum por meio da matrícula gera expectativas nos pais e demais familiares, especialmente no que se refere à adaptação e à aprendizagem; tal processo não é diferente para as famílias de pessoas com deficiência. Nesse último caso, contudo, há o acréscimo da insegurança quanto à aceitação ou não das diferenças dos(as) filhos(as) nesse espaço.

    Levantamento realizado pela Gerência de Inclusão da Secretaria de Educação de Goiânia constatou que, no ano letivo de 2022, foram matriculados na rede municipal de ensino 2.338 estudantes com “necessidades educacionais especiais”, terminologia adotada pela pasta (Goiânia, 2022). A Tabela 1 mostra a distribuição dos estudantes com necessidades especiais na rede municipal de ensino da capital goiana.

    Tabela 1: Estudantes com NEE matriculados em 2022

    Distribuição de estudantes/crianças com NEE matriculados na RME de Goiânia

    Nº de estudantes na SME

    Nº de estudantes com NEE matriculados na SME

    Total (em %)

    102.765

    2.338

    2,28%

    Fonte: Goiânia, 2022.

    A Educação Inclusiva, de acordo com Guijarro (2005, p. 10),

    implica uma visão diferente da educação comum baseada na heterogeneidade e não na homogeneidade, considerando que cada aluno tem capacidade, interesse, motivações e experiência pessoal única, quer dizer, a diversidade está dentro do “normal”. Dada essa concepção, a ênfase está em desenvolver uma educação que valorize e respeite as diferenças, vendo-as como uma oportunidade para otimizar o desenvolvimento pessoal e social e para enriquecer os processos de aprendizagem.

    É consensual, tanto na literatura como no ordenamento legal, a afirmação de que as pessoas com deficiência são iguais em direito e ensejam respeito às suas diferenças e necessidades específicas. Contudo, sabe-se que a legislação influencia e orienta as ações realizadas no espaço escolar, apesar de não ser determinante dos acontecimentos em cada instituição.

    Fontana, Furgeri e Passos (2013) explicam que os olhares, dizeres e gestos dos professores, dos estudantes e de seus familiares entrelaçados na dinâmica interativa vivida na escola têm produzido sentidos diversos e contraditórios ante a relação de inclusão. Por sua vez, Belisário Filho (2005, p. 175) explica:

    A inclusão pede novas soluções nas práticas educacionais. Quando o coletivo encontra saídas para os impasses provocados pelas peculiaridades do aprendizado, geralmente essas soluções geram um ambiente mais propício ao aprendizado de todos os estudantes. A sociedade vem aos poucos percebendo a necessidade de uma mudança de paradigma em relação às oportunidades das pessoas com deficiência e com isso adota novas posturas em relação aos processos de inclusão.

    Na sociedade contemporânea, a escola deveria ser um espaço privilegiado de interação social que, aliada à família, sintoniza o sujeito com os valores e as regras de sua cultura. Em consonância, portanto, com o paradigma da Educação Inclusiva, é essencial permitir não apenas o acesso, mas sobretudo a possibilidade e o direito de todos os estudantes com deficiência de aprenderem no âmbito escolar comum. Para isso, torna-se fundamental a “escuta” das famílias dos estudantes com deficiência que vivenciam o processo de inclusão escolar de seus(suas) filhos(as) no cenário educacional público e o estabelecimento da relação entre esses discursos e o que está descrito na literatura e no ordenamento legal sobre o que se espera de uma escola que se pretende inclusiva, evidenciando possíveis contradições ou conformidades entre eles.

    Estruturação da pesquisa

    Na pesquisa de que trata este artigo, foi adotada a abordagem qualitativa para a análise subjetiva dos dados coletados pela pesquisadora nas interações sociais, pois, conforme afirma Appolinário (2011), nessa modalidade a preocupação é com o fenômeno observado no contexto histórico e temporal em que ocorre. Por seu turno, Lüdke e André (1986) apontam que analisar dados qualitativamente requer examinar o material colhido durante a coleta, organizá-los, relacioná-los entre si e identificar padrões semelhantes entre as amostras. As autoras alertam, contudo, que esse trabalho demanda imparcialidade no estudo dos dados, de modo que a pesquisa evidencie a realidade de forma clara e fidedigna.

    Os dados desta pesquisa foram coletados por meio da observação direta extensiva e mediante a aplicação de um questionário constituído por uma série ordenada de perguntas abertas, que foram respondidas por escrito e sem a presença do entrevistador, seguindo o que preconizam Marconi e Lakatos (2003). Desse modo, com a aplicação do instrumento escolhido, foram geradas as categorias de análise vinculadas à família: motivo de escolha da escola para matrícula do(a) filho(a), informação à escola acerca da deficiência do(a) estudante e apresentação de laudo médico, percepção pessoal do conceito de escola inclusiva, percepção pessoal das ações da escola para favorecimento do processo de inclusão escolar e fragilidades para sua efetivação.

    Amostra

    Participaram da pesquisa as mães de dois estudantes com laudo médico de transtorno do espectro autista (TEA) residentes em Goiânia, selecionadas a partir do contato com a instituição de Educação Especial que oferta o serviço de atendimento educacional especializado (AEE). As participantes são denominadas neste estudo como Mãe Atípica 1 e Mãe Atípica 2.

    As duas crianças estão matriculadas em escolas distintas da rede municipal de educação de Goiânia (RME) e recebem o AEE duas vezes por semana, no contraturno da escola comum e em uma instituição especializada conveniada. A caracterização das participantes está delineada na Tabela 2.

    Tabela 2: Características das mães participantes da pesquisa

    Idade das participantes (em anos)

    Escolaridade

    Idade dos(as) filhos(as) com NEE

    Estado civil

    Outros filhos?

    Tempo médio diário com os(as) filhos(as) (em horas, acordados)

    42

    Pós-graduação stricto sensu - mestrado

    05

    Casada

    01

    06

    34

    Superior completo

    05

    Casada

    01

    08

    O critério adotado para a escolha dos participantes foi ter filho(a) com laudo médico de deficiência ou TEA, estar matriculado(a) em escola pública na cidade especificada e ser assíduo(a) no ambiente escolar e nos serviços especializados, conforme atestado por frequência, o que sugere adesão ao direito à educação garantido à criança. A pesquisa foi realizada fora do espaço físico da instituição escolar, e as participantes dispuseram de sete dias para analisar e refletir sobre as questões do questionário.

    Critérios metodológicos adotados

    A análise de conteúdo foi o procedimento metodológico adotado para o tratamento dos dados levantados com o questionário aplicado às participantes e que trazia perguntas semiestruturadas. Nele, foram contempladas as seguintes categorias de análise: motivo de escolha da escola para a matrícula do(a) filho(a); informação à escola acerca da deficiência do(a) estudante, com a apresentação de laudo médico; e percepção pessoal do conceito de escola inclusiva, das ações da escola para o favorecimento do processo de inclusão escolar e das fragilidades para sua efetivação. Para Bardin (1977), a análise de conteúdo, é definida como

    um conjunto de técnicas de análise das documentações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. A intenção da análise de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção (ou eventualmente de recepção), inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não) (Bardin, 1979, p. 38).

    O autor esclarece que a técnica de pesquisa é utilizada para examinar e interpretar dados qualitativos e consiste em um conjunto de procedimentos sistemáticos que têm como objetivo extrair significados relevantes de determinado material textual. O desenvolvimento da técnica pode ser dividido em três etapas principais: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Na pré-análise, o pesquisador realiza a leitura do material e define as categorias de análise. Na exploração do material, o pesquisador examina o material em profundidade e classifica as informações de acordo com as categorias definidas. Na última etapa, o pesquisador interpreta os resultados e apresenta as conclusões da análise. Essa técnica permite uma análise aprofundada e sistemática dos dados coletados. Além disso, ela pode ser utilizada em diferentes contextos, desde estudos de opinião pública até análise de políticas públicas.

    Foram selecionadas duas mães e estabelecidas relações entre as características variáveis, com o objetivo exploratório de contribuir para o enriquecimento das discussões a respeito das problemáticas sobre a inclusão no ambiente escolar.

    Análise e discussão dos resultados

    Após a leitura minuciosa das respostas ao questionário, foram identificadas as percepções comuns às duas mães sobre escola inclusiva, que foram comparadas com o que está exposto no discurso legal e no referencial teórico adotado. Ficou evidenciado que a percepção pessoal das participantes sobre como deve ser uma escola inclusiva é ainda idealizada, pois não encontra materialidade nas práticas observadas por elas nas instituições frequentadas por seus(suas) filhos(as), o que denota discrepância entre a ideia contida em seus discursos e a realidade vivida.

    A análise da categoria referente ao motivo de escolha da escola e à apresentação do laudo médico apontou que, para a Mãe Atípica 1, o critério adotado foi seu trabalho nessa unidade e o diferencial de a escola dispor de boa estrutura física e equipe de profissionais dispostos ao diálogo. Segundo a participante, na época da matrícula seu filho tinha um ano de idade e não apresentava sinais evidentes de TEA; portanto, não dispunha de laudo médico, que, segundo ela, só foi apresentado depois do ingresso escolar do filho, quando o diagnóstico foi realizado. Segundo a Mãe Atípica 1, “o olhar atento dos profissionais da escola foi fundamental para a indicação da investigação clínica dos sintomas observados na criança e que resultaram na confirmação da hipótese diagnóstica”.

    A Mãe Atípica 2, por sua vez, disse que a matrícula de seu filho foi realizada pelo site da prefeitura da capital, e que o motivo da escolha foi a proximidade da residência da família, tendo em vista que ainda não tinha conhecimento de que a criança era portadora do transtorno. Ela explicou que, depois da frequência à escola, é que a professora notou que seu filho poderia ter TEA e sugeriu que a família procurasse um médico.

    Os discursos das participantes divergiram quanto ao motivo para a escolha da escola, mas estão em conformidade quanto à relevância do olhar dos professores para a identificação e investigação dos sintomas dos estudantes. O professor assumiu, em ambas as narrativas, a condição privilegiada para a identificação das necessidades educacionais específicas dos estudantes, por estarem em interação com eles por grande espaço de tempo dentro da escola.

    Para Iacono (2014, p. 15),

    um dos grandes desafios da educação brasileira atualmente é atender à diversidade estudantes que, por conta dos processos de universalização da educação e de inclusão escolar, vêm se matriculando cada vez em maior número nas escolas. Nesse conjunto, encontram-se aqueles que têm deficiências e que, por isso, precisam de atendimento específico às suas necessidades especiais.

    Para a categoria de análise alusiva à percepção pessoal de escola inclusiva, a Mãe Atípica 1 a define como “uma escola para todos”. E adianta: “Considero que a de meu filho está em processo para alcançar ser inclusiva, mas com dificuldades”. Para a Mãe Atípica 2, uma “escola inclusiva é aquela que se adapta para ensinar de modo que todas as crianças consigam aprender”. Ressaltou ainda que a escola de seu filho “nem sempre é inclusiva”. É possível perceber que o conceito de escola inclusiva presente no discurso das participantes guarda conformidade com o que está disposto de modo geral na literatura e nos documentos legais referentes ao tema, mas não converge com a percepção que têm das escolas de seus filhos como espaços verdadeiramente inclusivos.

    Uma escola inclusiva caracteriza-se, fundamentalmente, pelo compromisso com o direito de todo(a)s à educação, à igualdade de oportunidades e à participação de cada uma das crianças, adolescentes, jovens e adultos nas várias esferas da vida escolar. Entende-se por escola inclusiva aquela na qual o ensino e a aprendizagem, as atitudes e o bem-estar de todos(as) os(as) educando(a)s são considerados igualmente importantes. É uma escola na qual não há discriminação de qualquer natureza e que valoriza a diversidade humana como recurso valioso para o desenvolvimento de todo(a)s, uma escola que busca eliminar as barreiras à aprendizagem para educar de forma igualitária todos os meninos e meninas da comunidade. Na escola inclusiva todos são reconhecidos em sua individualidade e apoiados diligentemente em sua aprendizagem (Brasil, 2005, p. 114).

    Na categoria que versa sobre as ações da escola para favorecer o processo de inclusão dos estudantes com deficiência, a Mãe Atípica 1 afirmou que a instituição dialoga com as crianças da turma de seu filho, propondo que as professoras expliquem para os pais dos demais estudantes como é ter um coleguinha autista. A Mãe Atípica 1 disse ainda que a escola se dispõe a receber outros profissionais que acompanham o seu filho. A resposta da Mãe Atípica 2, contudo, foi outra: “Penso que essa inclusão na realidade só existe no papel, [pois] na prática não acontece de forma eficiente”. Isso nos leva a considerar que há divergência entre o que está posto na atual Política de Educação Especial e o que de fato acontece na realidade vivida pela participante, que não vislumbra a “inclusão escolar” de seu filho.

    Quanto à categoria de análise da opinião das participantes sobre as fragilidades que a escola apresenta para incluir os estudantes com deficiência, a Mãe Atípica 1 apontou a rotatividade de profissionais: “Quando uma professora começa a desenvolver o trabalho incluindo as necessidades de aprendizagens do meu filho é transferida e tudo se inicia novamente no mesmo ano letivo”. Ela acrescentou ainda:

    Falta de tempo remunerado e na jornada de trabalho do professor para planejar recursos materiais e/ou adaptações do espaço que incluam as necessidades de aprendizagens e desenvolvimento do meu filho. Não há diálogo entre profissionais do AEE em outra instituição, o que inviabiliza a continuidade dos processos de aprendizagem e desenvolvimento. A escola comum desconhece as aprendizagens que meu filho tem conquistado, em decorrência da dificuldade de interação de forma sistemática, o que dificulta novas possibilidades para planejamento de intervenção, em razão da dificuldade da escola de interagir com a família e outros profissionais que trabalham com a criança.

    A Mãe Atípica 2 foi sucinta em sua resposta: “Falta preparo”. E explicou: “As professoras do meu filho não têm nenhum curso na especialidade (autismo), exemplo: análise aplicada do comportamento ou como lidar com a criança em crise”. Conforme Vygotsky (1989), mesmo as deficiências de origem biológica podem ser compensadas pelas mediações sistematizadas e intencionais, características da ação pedagógica. Conforme o psicólogo, o conhecimento sobre a “estrutura do defeito” deve ser aspecto norteador da prática do professor. Nesse sentido, o discurso da Mãe Atípica 2 guarda semelhanças com a reflexão do teórico, uma vez que sugere que o desconhecimento da professora acerca da temática da inclusão escolar dificulta o atendimento às especificidades de seu filho.

    Pinheiro (2010, p. 71) faz, todavia, uma observação:

    É importante [...] que a formação inicial dos professores trate com solidez dos aspectos gerais que permeiam a Educação Especial, permitindo que estes percebam na sua prática de docência as necessidades especiais de seus estudantes, assim como compreendam a Educação Inclusiva a partir de um olhar inclusivo. Contribuindo, com isso, para uma prática que considere as contingências e as possibilidades de melhora no processo de ensino-aprendizagem dos estudantes com NEE, tendo em vista que esse aspecto é a função principal da docência (Pinheiro, 2010, p. 71).

    Também no que se refere à categoria de análise das fragilidades da escola, a falta de diálogo entre profissionais externos à instituição e os professores dificulta o planejamento de novas estratégias de intervenção. Além disso, diverge do que está posto na literatura sobre a relevância da interação entre os diferentes sujeitos que atuam com o estudante com necessidade educacional específica.

    As políticas públicas voltadas para a formação de professores para lidar com a inclusão escolar do estudante com deficiência estão preconizadas na Lei nº 9.394/96, de diretrizes e bases da educação nacional (LDBEN), que afirma que os sistemas de ensino devem assegurar capacitação aos docentes para que possam oferecer uma educação de qualidade, com currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos (Brasil, 1996). Portanto, quando a Mãe Atípica 2 aponta a falta de preparo dos profissionais que atendem seu filho, fica explícita a divergência entre os discursos da escola e os da literatura e dos documentos legais.

    Não resta dúvida de que o desconhecimento das características peculiares dos sujeitos com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA) ou com altas habilidades/superdotação (AHSD), que são o público da proposta inclusiva, fragiliza o papel da escola na promoção de condições favoráveis ao desenvolvimento dos sujeitos que experimentam condições cognitivas, sensoriais e neuromotoras diversas e gera insegurança nos pais ou responsáveis quanto à inclusão ou não de seus(suas) filhos(as).

    Os dados coletados explicitaram, em todas as categorias analisadas, a divergência entre os diferentes discursos presentes no cenário escolar e apontaram para o desafio dos pesquisadores da área no sentido de promover reflexões e divulgar conhecimentos que contribuam para a efetivação do que está proposto e o consequente alinhamento entre a idealização e a materialidade da inclusão.

    Considerações finais

    Em decorrência das reflexões desenvolvidas neste artigo, foi observado que a efetivação da política educacional inclusiva preconizada na legislação e referenciada na literatura implica a reestruturação de todo o sistema de ensino, porque seria necessário fazer com que a escola fosse verdadeiramente aberta às diferenças. Contudo, a análise dos dados coletados por meio da aplicação de um questionário às duas mães participantes da pesquisa evidenciou contradições importantes entre o que está delineado no ordenamento legal e o que de fato ocorre dentro do espaço escolar.

    Embora se reconheça o avanço de tais políticas, principalmente no que diz respeito à garantia de acesso à escola comum aos estudantes com deficiência, as mudanças das práticas educacionais no cotidiano das escolas não acompanham o que está delineado como escola inclusiva, uma vez que ainda são permeadas por condutas excludentes e segregatórias. Resta evidente que a garantia do acesso do estudante com deficiência à escola por si só não assegura sua permanência e sua aprendizagem nesse espaço.

    Este estudo permite concluir que é premente a necessidade de diálogo entre escola, família e demais profissionais envolvidos no ensino dos estudantes cujo perfil é neurodivergente, em especial aqueles com TEA, a fim de que todos possam contribuir com o que é próprio do papel de cada um. Tal conduta certamente irá se refletir no aumento das possibilidades reais de desenvolvimento das potencialidades desses sujeitos. 

    Referências

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    Publicado em 26 de março de 2024

    Como citar este artigo (ABNT)

    BARROS, Jackeline Miranda de; OLIVEIRA, Yara Fonseca de. Concepções de escola inclusiva: o olhar da família de pessoas com TEA sob análise. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 10, 26 de março de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/10/concepcoes-de-escola-inclusiva-o-olhar-da-familia-de-pessoas-com-tea-sob-analise

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