Escrevivências das juventudes negras e LGBTQI+: uma fonte metodológica biófila na formação humana docente
Cirlene Cristina Sousa
Professora da Faculdade de Educação da UEMG
Liliane Souza e Silva
Professora da Faculdade de Educação da UEMG
Licínia Maria Correia
Professora da Faculdade de Educação da UFMG
Débora Augusta Rossi Fantini
Jornalista e assistente administrativa da UFMG
Não nasci, porém, marcado para ser professor assim. Vim me tornando desta forma no corpo das tramas, na reflexão sobre a ação, na observação atenta de outras práticas ou à prática de outros sujeitos, na leitura persistente, critica, de textos teóricos, não importa se com eles estava de acordo ou não. É impossível ensaiarmos estar sendo deste modo sem uma abertura crítica aos diferentes e às diferenças, com quem e com que é sempre provável aprender (Freire, 1997, p. 88).
Neste artigo, abordamos as experiências escolares de juventudes negras e LGBTQI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneras e transgêneros, travestis, queer, intersexuais. O sinal + denota outros gêneros e sexualidades não descritos pelas letras) narradas em cartas, nas quais estudantes denunciam discriminações racistas e sexistas vivenciadas no ambiente escolar da Educação Básica, ao mesmo tempo em que afirmam leituras de si e do mundo, reivindicando o reconhecimento de suas subjetividades, suas histórias, seus saberes e direitos. As cartas são compreendidas como importantes metodologias pedagógicas para a formação humana, uma vez que são compreendidas como tessituras existenciais acessadas em exercícios de escuta sensível do outro.
As cartas trazidas pelas juventudes negras e LGBTQI+ fazem ecoar, nas suas linhas, tópicos de desumanização e/ou humanização sociais produzidos na escola. Nesse sentido, três questões foram provocadas pelas leituras que os pesquisadores do Diversidades (o nome Diversidades é fictício, como também o são os nomes dos sujeitos e das instituições de ensino, uma escolha para assegurar o anonimato dos envolvidos, lhes garantindo a ética na pesquisa científica) fizeram dessas cartas: há indicadores temáticos dessas escritas que possibilitam acessar processos de respeito à vida e à transformação das juventudes negras e LGBTQI+ no ambiente escolar. Assim, questiona-se: As cartas são traduções de uma herança bancária ainda presente nas escolas públicas que tem objetificado, coisificado e/ou mortificado tais juventudes? Como docentes podem se educar, se humanizar e se emancipar com a leitura e a codificação e/ou decodificação dos temas geradores dessas cartas?
Partindo dessas indagações, o artigo é dividido em três eixos. No primeiro, tratamos dos conceitos-chave dessa metodologia pedagógica de formação humana, tendo nas cartas sua principal fonte de dados. Para além de um gênero textual, as cartas são tomadas como escrevivências e como fonte de um diálogo educativo entre alunos, alunas, professores e professoras. O termo escrevivência foi criado pela escritora e pesquisadora literária Conceição Evaristo. Ela o define como escritas marcadas pelas subjetividades e condições históricas e sociais das autoras e dos autores, visibilizando narrativas afirmativas. No segundo eixo, o conceito diálogo educativo é tomado no seu sentido freiriano. Por meio dele, a fala e a escuta entre professores e estudantes se horizontalizam, em um ato relacional de reflexão crítica e de educação comunicacional. Desse modo, atravessados pela educação comunicativa, Paulo Freire diz que o ser humano aprende a escrever a vida, a letrar sua própria história, isto é, “biografar-se, existenciar-se, historicizar-se” (Freire, 1987, p. 5).
No terceiro eixo, apresentamos os conceitos de biofilia e necrofilia desenvolvidos na obra de Paulo Freire, particularmente no livro Pedagogia do Oprimido (1987), conforme a leitura que o educador brasileiro faz do psicanalista alemão Erich Fromm (1981) na elaboração de sua teoria sobre processos educacionais de humanização e desumanização.
Em nossas sínteses reflexivas, as cartas são abordadas como uma metodologia pedagógica para a formação humana dos sujeitos escolares e como um campo de possibilidades para a constituição de uma prática educativa mais biófila. Destacam-se, ainda, as cartas como escritas capazes de humanizar e potencializar os projetos da formação inicial e continuada de professores.
Escritas estudantis: contribuições metodológicas para a formação humana docente
A metodologia pedagógica de formação humana por meio de cartas começou a ser desenvolvida a partir de uma pergunta sobre os direitos de pessoas homossexuais na escola pública feita por um grupo de estudantes a seus professores. Mais especificamente, a uma professora de História e a um professor de Sociologia. Essa indagação confrontou tais professores com suas condições privilegiadas de pessoas heterossexuais que desconheciam as vivências de estudantes LGBTQI+ numa sociedade compulsoriamente heteronormativa. À época, a ação dos professores orientou-se em direção à construção de um projeto que levasse a comunidade escolar a compreender a invisibilidade histórica desses sujeitos. Para tanto, os alunos e as alunas, envolvidos no episódio de homofobia, escreveram cartas a seus professores e às suas professoras relatando as marcas que a escola deixou em suas trajetórias juvenis.
A complexidade das experiências escolares juvenis narradas nas cartas confluiu para a necessidade de um trabalho de análise mais aprofundado de seus temas e perguntas. Assim, se construiu a formação do grupo de estudos Diversidades por parte de alguns professores e estudantes da Educação Básica. Esse grupo optou por uma aproximação com o conceito de temas geradores de Paulo Freire para problematizar as questões expostas nas cartas recebidas. Tais temas constituem o eixo da metodologia freiriana para se pensar práticas educativas mais problematizadoras e humanizadoras.
Em linhas gerais, podemos entender os temas geradores como o ponto de partida para um processo de descoberta, conhecimento e conscientização sobre as especificidades de uma determinada realidade educativa e as historicidades dos sujeitos envolvidos. Os temas geradores emergem dos saberes populares, pois são extraídos dos contextos, das histórias vividas pelos próprios educandos, como no caso das cartas em que jovens negros, negras e LGBTQI+ narram suas experiências de homofobia e racismo no ambiente escolar.
As palavras escritas quando vem do universo vivido, do cotidiano, da vida diária, do mundo do trabalho e das experiências vividas, elas estão imbuídas do mais eficaz engajamento de quem as pronúncias, com a força pragmática que instaura e transforma o mundo humano. As palavras são chamadas geradoras porque, através da combinação de seus elementos básicos, propiciam a formação de outras. Como palavras vindas do universo, da história de quem escreve estão repletas de significações constituídas ou reconstituídas em comportamentos seus, que configuram situações existenciais ou, dentro delas, se configuram (Freire, 1987, p. 5-6).
Nesse sentido, as cartas são processos de tessitura das experiências juvenis que se traduzem num conjunto de temas existenciais repletos de significações codificadas e decodificadas do mundo da vida. Por seus vínculos com a existência, as cartas produzidas por discentes e lidas e respondidas por educadores são oportunidades para que tais sujeitos se distanciem um pouco do ambiente escolar tão conhecido e tão próximo e se permitam experienciar o estranhamento, os escapes de um cotidiano que não se revela sempre a olho nu. Tal estranhamento pode provocar olhares mais críticos e sensíveis sobre aquelas juventudes tão comumente silenciadas tanto na sociedade como no chão da escola. Tanto os estudantes que escrevem suas cartas, como os educadores que as leem e as respondem, se colocam em um processo educativo de distanciamento das verdades ditas, impostas e normatizadas nas mais diversas instituições sociais no Brasil. Nesse momento, educandos e educadores têm a oportunidade de vivenciar outras experiências educativas e enxergar com lentes mais focadas uma ambiência que lhes parecia tão próxima. Os temas geradores ajudam a problematizar o cotidiano escolar, porque são construídos por meio de um esforço coletivo de estranhamento, de reflexão, de compreensão de histórias de vida e de uma dada prática social.
Além de um conjunto gráfico de fonemas, as narrativas que costuram as cartas juvenis são mais que palavras. São linguagens que constituem modos de existência, gramáticas e dramáticas escolares que se constituem por vias humanizadoras e desumanizadoras. Assim, a opção de ler e refletir sobre os conteúdos das cartas inspirados na concepção freiriana de temas geradores tinha claro objetivo de levar estudantes e professores ao conhecimento da realidade escolar vivida pelas juventudes negras e LGBTQI+ silenciadas. Essa reflexividade se apresenta aos professores e às professoras como um movimento de aproximação crítico de suas experiências escolares, assim como campos de possibilidades para novas experiências pedagógicas.
Dessa forma, observamos que as cartas relatavam, por um lado, as opressões vividas por esses jovens na escola em gestos, palavras, silêncios e violências físicas, tal como no trecho da carta do aluno João: “Meu Ensino Fundamental foi atordoado, com piadinhas e algumas ameaças e algumas vezes agressões. Os meninos batiam em minha cabeça me chamando de ‘viadinho’, ‘bicha’, mandando eu virar homem e coisas do tipo”. Por outro lado, tais narrativas vêm afirmar esses sujeitos como vítimas que expressam seus desejos e reivindicam seus direitos para uma escola que anseiam mais humana, como se pode notar no modo poético como uma aluna negra termina sua carta: “Eu só queria viver, eu só queria sonhar... Mulher não pode sonhar, e sim seguir padrões? Negra não pode sonhar, e sim trabalhar? Nasci mulher negra e eu posso ser o que eu quiser! A corda que amarrou o negro na senzala, a corda que me excluía, hoje ela se partiu”.
A partir de reflexões e debates sobre essas cartas, o grupo de pesquisadores do Diversidades sentiu a necessidade de formar outras docências e outras discências e, assim, o projeto se transformou numa intervenção extensionista em parceria com universidades. Entre as ações desenvolvidas surgiram propostas de oficinas formativas para professores, professoras e estudantes de licenciaturas. Tais oficinas contam, geralmente, com uma instalação de trechos de cartas manuscritas em folhas de caderno, dependuradas no teto ou em varais por fios de nylon - a transparência do material faz com que as cartas pareçam flutuar, como aparições das falas e dos sujeitos silenciados e invisibilizados que ali se narram. Ao som de músicas, como Cálice, de Chico Buarque, todas/os participantes são convidadas/os a transitar entre a instalação e a fazer sua leitura das passagens das cartas, como o trecho destacado, a seguir:
Figura 1: Trecho da carta de estudante Paula (nome fictício)
Esse recurso propõe aos participantes das oficinas uma aproximação sensível com as histórias narradas nas cartas. Em seguida, realiza-se uma roda de conversa na qual o grupo expõe suas observações, impressões, experiências e sentimentos. Nessas conversas, em diferentes edições da oficina, é comum professoras e professores trazerem experiências anteriores com escritas estudantis. Uma dessas professoras compartilhou com o grupo relatos biográficos escritos por mulheres estudantes no verso de folhas de redação, cujo tema era violência de gênero. Outro professor relatou que um aluno negro escreveu no verso de uma prova de história: “Espero que um dia as questões desta prova possam falar dos negros não como escravos, mas como gente. Se quiser, eu estou aqui para contar a nossa história, professor!”
Os relatos inquietaram bastante o grupo de professores e professoras presentes nas oficinas, pois mostram que as escritas estudantis, narrando suas vivências, são bastante comuns no cotidiano escolar, mas pouco evidenciadas. A sua presença coloca em evidente relevância as metodologias pedagógicas baseadas em escrevivências, principalmente quando se trata de juventudes silenciadas nas instituições sociais. De igual maneira, a temática das cartas levou estudantes de licenciaturas e educadores que participaram das oficinas, a manifestarem a urgência de metodologias de formação humana na graduação e na formação continuada de docentes, especialmente na perspectiva da diversidade.
Os educadores problematizaram o potencial que essas cartas possuem de comunicar aquilo que não se vê ou se omite, pois traduzem os sofrimentos não visíveis e silenciados nas escolas sendo possível ainda, como revela Gonçalves (2010), se observar a denúncia das variadas violências no meio escolar, visto que essa violência na escola pode ter diferentes manifestações. De acordo com o autor, podemos dizer que são violências aquelas que ocorrem,
por exemplo, em situações em que o docente se põe a falar aos gritos, o que pode provocar intimidação ou reação do aluno de retribuir no mesmo tom. A violência pode aparecer quando o docente se serve do ato de humilhar os alunos fazendo comparações, se servindo de imagens depreciativas (Gonçalves, 2010, p. 3, grifo nosso).
De acordo com o autor, é comum notar que certos atos considerados ofensivos pelas e pelos estudantes são comumente praticados por educadores sem que eles e elas tenham consciência de suas violências. Esses atos se fazem muito presentes nas histórias do racismo escolar, assim como em um dos trechos da carta de Mariana:
Preta na escola não era só feia, preta na escola também é agredida. No corredor, os meninos puxavam meu cabelo, meu nariz e minha boca era apertada. Não gostava também de ir ao banheiro, quando eu estava passando maquiagem no banheiro e uma menina disse para a amiga dela: achava que maquiagem era para ressaltar coisa bonita. Este dia eu não aguentei, chorei, chorei. Uma professora me perguntou por que eu estava chorando, aí eu tive coragem de dizer, e ela disse bobagem, não chora, maquiagem não é só para a pessoa bonita não, você pode usar maquiagem. Meu Deus, a professora também me achava feia.
Segundo Gonçalves (2010), na maior parte dessas situações, os docentes não entendem que suas atitudes podem ter impacto negativo na vida e nas experiências escolares dos estudantes, como apresentado pela aluna Mariana em relação ao comentário da professora sobre o uso de maquiagem: “Não é só para pessoas bonitas”. Era uma tentativa de acolhimento por parte da professora à aluna Mariana, mas fica evidente o despreparo docente no que tange aos elementos históricos do racismo na sociedade brasileira, como a questão do belo e seus padrões evidenciados naquela cena no banheiro escolar.
Os impactos provocados pelas histórias traçadas nas cartas constituíram o centro dos debates entre os educadores e as educadoras nas oficinas. Os diálogos deles e delas com as escritas juvenis apontaram para a necessidade de se desenvolver outra sensibilidade no ato de educar, capazes de gerar outras formas de olhar e outros mecanismos de respeito e empatia no espaço escolar, como ressaltado na carta da jovem Meire:
Quando pensei que tudo estava perdido, encontrei um lugar de conforto com minha professora de História. Um dia depois de uma aula sobre violência contra as mulheres negras, tive coragem de procurar essa professora. Ela me incentivou a conhecer minha história. Me deu uns livros de autoras negras para ler, e a gente conversava sobre as histórias dessas mulheres. Foi a primeira vez que alguém na escola escutou a minha história, isso foi muito importante para mim, nunca mais me esqueci daquela professora, ela me ajudou a ser uma aluna negra.
Diante disso, o objetivo principal das oficinas de formação de docentes era fornecer elementos para que professores e professoras pudessem orientar ações nos espaços escolares. É importante apresentar algumas evidências detectadas em estudos com alunos e alunas do Ensino Médio para compreender quais contribuições tais oficinas poderiam oferecer para problematizar as práticas docentes. Na metodologia pedagógica de formação humana dessas oficinas, as cartas foram notadas como uma possibilidade de encontro entre a escola, os projetos de ensino nas universidades e nas vidas juvenis colocadas em debate.
Escrevivências juvenis como fonte de diálogos educativos
A carta como gênero textual, isto é, como realização linguística concreta, cumpre funções e produz significações sociocomunicativas. No caso das cartas em que jovens estudantes negras, negros e LGBTQI+ narram suas trajetórias escolares para professores e professoras, tal função e significação encontram reverberações nos conceitos de escrevivências de Conceição Evaristo e de diálogos educativos de Paulo Freire, escritora e escritor que dimensionam a especificidade que tal linguagem adquire na metodologia dessa proposta de formação humana docente e discente.
Nas cartas, existências e palavras encontram-se imbricadas, pois as relações entre as subjetividades das autoras e dos autores e suas escritas constituem um fenômeno que pode ser analisado sob diferentes perspectivas, dentre as quais destacamos a abordagem de Conceição Evaristo. Às escritas impregnadas de subjetividade, Evaristo alia as condições históricas, políticas e sociais dos escritores e das escritoras e a visibilização de narrativas afirmativas de sujeitos coletivos formulando, assim, o conceito de ‘escrevivência’, ao qual se refere na primeira pessoa do plural:
Nossa escrevivência não é para adormecer os da Casa Grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. Quero rasurar essa imagem da ‘mãe preta’ contando história. A nossa ‘escrevivência’ conta as nossas histórias a partir das nossas perspectivas, é uma escrita que se dá colada à nossa vivência, seja particular ou coletiva, justamente para acordar os da Casa Grande. [A escrevivência] seria escrever a escrita dessa vivência de mulher negra na sociedade brasileira. Eu acho muito difícil a subjetividade de qualquer escritor ou escritora não contaminar a sua escrita. De certa forma, todos fazem uma escrevivência, a partir da escolha temática, do vocabulário que se usa, do enredo a partir de suas vivências e opções. A minha escrevivência e a escrevivência de autoria de mulheres negras se dá contaminada pela nossa condição de mulher negra na sociedade brasileira. Toda minha escrita é contaminada por essa condição. É isso que formata e sustenta o que estou chamando de escrevivência (Evaristo, 2009, s. p. apud Guimarães-Silva; Pilar, 2018, p. 36).
Na escrevivência, como afirma Evaristo, tema, vocabulário e enredo não são neutros, mas escolhas que expressam a intencionalidade de uma denúncia social e política e de uma disputa de narrativas, ao buscar não acalentar, mas incomodar e acordar os opressores, além de rasurar a história hegemônica, silenciadora e invisibilizante, no sentido de causar uma perturbação na ordem social, política e discursiva, com o objetivo de transformá-la.
Aproximando o conceito de Conceição Evaristo às pedagogias freirianas, entendemos escrevivência como um instrumento de conscientização crítica. Essas narrativas de si relacionam-se à criticidade uma vez que, nelas, conteúdo e formas históricas não se dicotomizam. Nascidas das experiências de vida, tais escritas consistem em exercícios de leitura crítica das condições concretas de existência de seus autores e de suas autoras. Essa leitura crítica requer ‘um olhar para’, do sujeito para si e para sua realidade, que associamos a um dos possíveis sentidos - outros seriam representatividade e pertencimento - da ideia de se ver articulada, por Evaristo, às de escrever e de viver, no jogo com o vocabulário sobre o qual a autora cria o neologismo (Evaristo, 2017). No processo de se escreviverem, as e os estudantes se percebem inseridos criticamente numa realidade histórica, social e política, afirmando-se sujeitos do saber.
Como escrevivências, as cartas solicitam mais do que mera leitura – solicitam uma escuta e uma resposta que se desdobre em reflexão e ação, como as discussões, análises e oficinas que as tomam como objeto. Tal práxis constrói-se de acordo com o princípio da educação comunicativa freiriana, em que ensino e pesquisa são inseparáveis e se constituem como pesquisa-ação, cujo fundamento é o diálogo educativo ou biófilo. Ao conceituar diálogo, Freire faz uma importante distinção entre Comunicação e Comunicado: este tem um caráter vertical, que objetifica um interlocutor considerado receptor, enquanto a comunicação caracteriza-se como uma ação comum, isto é, uma relação de horizontalidade entre sujeitos, com potencial para a reflexão e a conscientização crítica, libertadora. O comunicado está para o antidiálogo, assim como a comunicação está para o diálogo (Freire, 1983). Nesse sentido, o diálogo é uma forma de visibilizar o fenômeno comunicativo e historicizar a intersubjetividade humana. Por isso, o diálogo é um movimento biófilo constitutivo da consciência do mundo.
Assim o mundo se conscientiza como projeto humano. A intersubjetividade em que as consciências se enfrentam, dialetizam-se, promovem-se, é a tessitura última do processo histórico de humanização. Se o mundo é o mundo das consciências subjetivas, sua elaboração forçosamente há de ser a educação (Freire, 1987, p. 9).
Nesse sentido, uma educação libertadora é comunicação. É diálogo biófilo aquele em que a palavra abre a consciência para o mundo comum das consciências em diálogo, portanto. Nessa linha de entendimento, a expressão do mundo consubstancia-se em elaboração do mundo e a comunicação em colaboração. O diálogo biófilo é esse lugar de encontro e de reconhecimento das consciências e, também, de reencontro do eu consigo mesmo. As palavras, em sentido biófilo, são criadoras, pois ao se repetirem seriam monólogos de consciências que se isolaram, perderam suas identidades e se tornaram anônimas e submissas a um destino que lhes é imposto – seriam palavras sem projetos (Freire, 2011).
Por isso, numa educação comunicacional, a escuta liberta professores e estudantes, porque instaura o diálogo crítico e libertador. Nesse sentido, quais as marcas educativas que professores e professoras trazem para suas práticas, quando leem tal afirmativa: “o que eu aprendi na escola é que eu não queria ser negra, eu queria ser uma menina branca”. Se essa leitura estiver marcada por uma escuta atenta, tais docentes terão a oportunidade de se libertarem das amarras institucionais, pois se perceberão como oprimidos e, por vezes, como opressores. É por essa experiência autêntica de escuta que Paulo Freire vê o início de uma prática pedagógica humanizadora, em que docentes e discentes estabelecem um diálogo biófilo, regado pela oportunidade de vivenciar uma relação amorosa que educa.
Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunde. O amor é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens, onde quer que estejam estes, oprimidos, ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa da libertação. Mas esse compromisso, porque é amoroso, é dialógico (Freire, 1987, p. 45).
Por isso, a prática de educação bancária é antidialógica, pois o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação que ele mesmo elabora ou recebe pronto. Dificilmente, nessa dimensão bancária, educadores e educandos terão a oportunidade de se conectarem pelo amor. Em sentido contrário, numa prática problematizadora, dialógica por excelência, os conteúdos que jamais podem ser depositados, organizam-se e se constituem na visão do mundo dos educandos, em que se encontram seus temas geradores: “a tarefa do educador dialógico é, trabalhando em equipe interdisciplinar este universo temático, recolhido na investigação, devolvê-lo como problema não como dissertação aos homens de quem recebe” (Freire, 1987, p. 58).
É nessa acepção da educação comunicacional que Paulo Freire (2008) fala em diálogo verdadeiro, relacionando-o ao conceito de diálogo autêntico, do filósofo austríaco Martin Buber (2001; 2009), cujas noções de Eu-Tu e Eu-Isto estão referenciadas no último subcapítulo da obra Pedagogia do Oprimido, sobre a teoria da ação dialógica:
Enquanto na teoria da ação antidialógica a conquista, como sua primeira característica, implica um sujeito que, conquistando o outro, o transforma em quase ‘coisa’, na teoria dialógica da ação, os sujeitos se encontram para a transformação do mundo em colaboração. O eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado num mero isto. O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu, passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu. [...] Não há, portanto, na teoria dialógica da ação, um sujeito que domina pela conquista e um objeto dominado. Em lugar disto, há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação (Freire, 1987, p. 226-227, grifos do original).
Numa relação Eu-Isto, o professor e a professora ‘falam de’ ou ‘ao estudante’, enquanto numa relação Eu-Tu ‘fala-se com’ o estudante, sendo essa última a situação em que é possível a escuta, condição para se estabelecer o diálogo verdadeiro, autêntico ou biófilo. Na definição de Pena, Nunes e Kramer (2018), ao abordarem as teorias de Freire e Buber:
escuta envolve ‘reciprocidade viva’ e ‘responsabilidade’, ou seja, cada sujeito dialógico verdadeiramente reconhece o outro em sua integridade - presença, modo de ser, corpo, sentimentos, por isso, uma reciprocidade viva - e responde-lhe sem indiferença. Os participantes do diálogo, enquanto sujeitos, crescem juntos, estando nesse crescimento o sentido da dialogicidade (Pena; Nunes; Kramer, 2018, p. 4).
Para Martin Buber (2009), a “linguagem é portadora do ser” (apud Pena; Nunes; Kramer, 2018, p. 8), ou seja, tem em si o sujeito em sua singularidade e historicidade - o que compreendemos como mais uma aproximação ao conceito de escrevivência de Evaristo em vinculação ao de diálogo freiriano. Mais do que isso, em tal afirmação o filósofo postula uma ontologia da palavra: é pelo ato linguístico que o ser humano se faz como humano e situa-se no mundo com seus pares. No entanto, essa relação entre seres humanos é posta em crise diante de uma percepção insuficiente do outro, característica dos modos de vida e da mentalidade hegemônica na modernidade, manifestos nos comunicados e na educação bancária conceituados por Freire, os quais não podem ser definidos como linguagem como teorizado por Buber (2009), uma vez que são discursos e textos técnicos dissociados do contexto, privados de criticidade.
A educação bancária freiriana pode ser associada ao que Martin Buber (2003) nomeia intenção pedagógica, um esforço do professor e da professora para obtenção de resultados. Em lugar dessa educação voltada para a eficiência, Buber propõe o encontro pedagógico que abrange as já mencionadas dimensões da escuta do diálogo verdadeiro ou autêntico – reciprocidade viva e responsabilidade – em um reconhecimento do outro em toda sua alteridade. Para Buber (2003), os docentes participam da vida do e da estudante, mas a reciprocidade não é total, estabelecendo-se uma assimetria na qual apenas aqueles experimentam como o discente é educado e não o contrário. Na perspectiva de Freire, a simetria entre professores e estudantes é, sim, possível quando ambos assumem o papel de companheiros e companheiras: Freire “entende a substituição da contradição educador-educando pela relação de companheirismo, única possibilidade de vivência de uma prática educativa libertadora” (Santiago, 2008 apudPena; Nunes; Kramer, 2018, p. 12, grifo nosso). Uma das condições estabelecida por Freire para a superação da contradição entre professores e estudantes é a de que essa relação é baseada em uma linguagem que os faz se sentir pertencentes.
Na metodologia pedagógica de formação humana apresentada nas cartas de jovens estudantes, tem se mostrado uma linguagem dotada de tal potência de pertencimento, capaz de instaurar entre professores, professoras e estudantes, o companheirismo e a reciprocidade viva – ou biófila – em consonância com o binômio conceitual biofilia-necrofilia que enfocaremos no próximo eixo para tratar da problemática da humanização teorizada por Freire.
Entre biofilia e necrofilia: tensões pedagógicas humanizadoras e desumanizadoras
Para Paulo Freire, o vínculo entre educadores e educandos é compreendido como uma relação humana em que o ato de se educar coincide com o de humanizar-se. Na concepção freiriana, humanizar-se envolve as dimensões de conscientizar-se criticamente, sobre os outros e sobre o mundo, libertar-se da opressão e assumir-se sujeito, entre a ação e a reflexão, em transformação histórica.
Em suas pedagogias, Freire instiga-nos a pensar os processos de humanização e desumanização praticados na educação - humanizar-se e desumanizar-se são possibilidades contraditórias do ser humano, estabelecendo-se entre ambas uma tensão. A primeira, como vocação ontológica, sentido da existência humana. Ela é negada pela segunda, mas pode afirmar-se por meio da resistência - para Freire tem sentido ofensivo e não reativo - para recuperar e criar humanidade. A desumanização não se verifica apenas em quem tem sua humanidade espoliada, mas, ainda que de formas diferentes, em quem espolia. Essa situação de espoliação pode ser notada numa carta resposta que um professor participante do grupo Diversidades enviou à carta escrita pelo seu aluno João. Vejamos:
Caro João. Ao ler seu relato vários sentimentos me tomaram e quero dividi-los aqui com você, nessa breve carta. O primeiro sentimento que quero destacar e o qual acho que é comum a todas as pessoas que têm acesso à sua história é revolta. Como as pessoas podem ser tão cruéis em suas ações ou não ações. Por que ver alguém sofrer o que você descreve e não fazer nada? Esta é uma violência tão grave quanto a cometida pelas pessoas que lhe violentaram física ou simbolicamente. Como permitimos nos mais diversos espaços educativos em que convivemos (escola, família, igreja, rua e outros), que a sociabilidade dos jovens e crianças sejam marcadas por uma disputa por reconhecimento que é obtido por aqueles que melhor aterrorizam, ameaçam, discriminam e rotulam os mais “frágeis”, ações essas que além de destruir a vítima da agressão também destrói o agressor na medida que o desumaniza. Essa primeira constatação traz uma segunda muito dolorosa que é culpa e ressentimento. Pois em minhas lembranças de tempos de escola me recordo que também fui submetido a esse “mercado simbólico de busca por reconhecimento” e a necessidade de ser reconhecido pelos pares me violentou e me fez violentar meus colegas, os quais julgava mais ‘frágeis’. Assim ao recordar minha infância e adolescência, infelizmente me vejo entre essas crianças e jovens os quais o agrediram, pois na tentativa de ser reconhecido frente ao grupo, tive que me (sic) aderir ao discurso da heteronormatividade, do racismo, do sexíssimo e do machismo que me desumanizava e me fez desumanizar outras tantas pessoas. Tenho agora noção de que o custo da busca de ser reconhecido como ‘homem’, ‘descolado’ e ‘triunfante’ me levou, como deve ter levado seus colegas, a incapacidade de sentir afeto, de abraçar, de beijar e até mesmo de elogiar alguém do mesmo sexo ou qualquer pessoa que por algum motivo julgássemos como diferente.
Essa carta docente expressa bem o que, na obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, se destacam como conflitos e desencontros humanizadores e desumanizadores que o ser humano carrega em suas práticas cotidianas. Nessa obra, os processos de humanização e desumanização encontram-se relacionados aos conceitos de biofilia e necrofilia, que literalmente significam amor (do grego philos) à vida e à morte. Esses termos, cujas origens estão na Psicanálise, são desenvolvidos por Freire a partir da obra do alemão Erich Fromm. Com passagem pela Escola de Frankfurt, Fromm estabelece uma relação entre os pensamentos sociológico de Karl Marx e o psicanalítico de Sigmund Freud, organizando o que Lira (2015), denomina como sócio análise, ou seja, uma compreensão dos fenômenos humanos tanto psicológica quanto social e cultural. Essa abordagem converge com a noção freiriana de conscientização, já que Paulo Freire não entende a conscientização como um psicologismo, mas como um processo elaborado no confronto entre subjetividade e objetividade, que medeia subjetividades. Outra característica relevante desse conscientizar-se é fazer-se em práxis, ação-reflexão, dialeticamente, por isso conscientização crítica.
Freire recorre ao binômio – porque os termos encontram-se tensionados – biofilia e necrofilia como chave interpretativa para pensar a atitude, seja de disposição, seja de medo, do ser humano frente à liberdade, bem como para explicar a violência de opressor contra oprimido. Em síntese, a necrofilia manifesta-se como tendência do opressor em sua ânsia de posse a reduzir o sujeito a objeto de seu domínio, controlando-o em todos os aspectos – subjetividade, palavra, cultura, saber, corpo – levando-o a perder a sua qualidade vital de liberdade. O que nega a sua disposição ontológica para humanizar-se. A biofilia, por sua vez, é um movimento de afirmação do sujeito que descobre nitidamente a opressão e o opressor e começa a acreditar em si como ser vocacionado à humanização, sujeito de saber e ou de saber-se, de dever, de direitos e de agente para a transformação histórica que aos poucos se reapropria do impulso vital emancipatório.
O conceito de biofilia está aliado à categoria freiriana de ser mais. Essa, articulando uma visão antropológica, sociopolítica e histórica, diz respeito a uma concepção do ser humano como um processo aberto, no qual o sujeito constrói e reconstrói, dialeticamente, a si, sua vida e o mundo, desafiando-se ao conhecimento e lutando pela emancipação - para Freire, ressaltemos, a libertação é realizada sempre de modo coletivo, nunca individual, uma vez que o individualismo é próprio da estrutura hegemônica. O ser mais é colocado em movimento quando da tomada de consciência das situações e dos agentes de opressão. Essa conscientização crítica impulsiona a esperança e a utopia concreta, impulsos vitais, de modo que tal consciência corresponde a um logos biófilo, uma razão que envolve as relações humanas, a capacidade de relacionar-se com o outro como sujeito, e não objeto, com emoção, comunhão, criatividade e dinamismo, qualidades do que é vivo.
A tensão no binômio biofilia-necrofilia projeta-se, igualmente, entre o ser mais e o ser menos onde o ser menos não é compreendido como mera oposição à vocação humana, mas como uma distorção ou uma perversão dela. Nessa experiência de ser menos, se não há propriamente extermínio de um ser humano, tem-se uma mortificação do sujeito, sua objetificação ou coisificação, por meio da internalização da visão do opressor sobre si como aquele que não tem valor. Numa concepção materialista da existência, ter menos equivale a ser menos, conforme as palavras de Freire:
Para os opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem. [...] Por isso tudo é que a humanização é uma ‘coisa’ que possuem como direito exclusivo, como atributo herdado. A humanização é apenas sua. A dos outros, dos seus contrários, se apresenta como subversão. Humanizar é, naturalmente, segundo seu ponto de vista, subverter, e não ser mais (Freire, 1987, p. 63-64, grifos do original).
Na escola, pela metodologia que Freire denominou bancária, essa posse traduz-se em gestão antidemocrática, construção de projeto político-pedagógico sem participação coletiva, currículo fixo, processos de alfabetização mecânicos e, fundamentalmente, no domínio do saber pelo professor e pela professora e na consequente espoliação das e dos estudantes. No entanto, também os professores e as professoras são destituídos de seu saber pela institucionalidade escolar. Saber, aqui, é tomado em seu sentido amplo e plural - saberes - compreendendo, além dos conteúdos tradicionais, subjetividades (opiniões, crenças, valores), linguagens e culturas.
Na lógica da distorção ou perversão, os sujeitos expostos, reiteradamente, ao mito de que não sabem e não podem saber acabam convencendo-se de sua incapacidade como algo naturalizado e, por isso, imutável – e não como uma consciência distorcida de si e do mundo, tal como expresso pela aluna Meire em sua carta: “os colegas sempre me disseram que eu era feia, e pior é que eu acetei isto, eu sou feia, beiçuda, negra”. Freire nomeia essa característica da opressão como autodesvalia, correlata ao ser menos, e observa que dela decorre uma dependência emocional total do oprimido para com o opressor, expressa em necrofilias: “é este caráter da dependência emocional e total dos oprimidos que os pode levar às manifestações que Fromm chama de necrófilas. De destruição da vida. Da sua ou do outro, oprimido também” (Freire, 1987, p. 71). Situação que fica ainda mais expressa no excerto da carta do jovem Luiz:
Em 1990 chego ao colégio Samuel para cursar a primeira série. Aí começou de fato o que eu nomearia de inferno. A simples menção ao meu nome na chamada era motivo para vários colegas - todos homens - começarem a gritar ‘bicha’. Essa era a palavra mais usada, entre todos os ‘'xingamentos’' da época. Aquilo me causava imensa dor. Porque eu olhava para os outros colegas e queria a vida deles, a vida de quem ouvia o próprio nome na chamada sem ataques. Queria ser invisível aos olhos deles. Os gritos e gemidos que pretendiam me ‘'imitar’' até causavam certa bagunça nessa hora, mas os professores os ignoravam. Parecia um pacto de silêncio diante da evidente perseguição. No recreio era pior. Porque ali, distante dos olhos dos professores, muitos se aproximavam de mim para dizer pessoalmente os insultos. Era assim quase todos os dias do ano, durante uma década. Hoje lamento não ter respondido a todos eles. Mas me calava, talvez porque naquele tempo eu concordasse com eles. Achava minha voz fina demais, meu jeito muito afeminado. Tinha visto minha imagem pela primeira vez em um vídeo de família e ali pude entendê-los: é assim que eles me veem e de fato sou a ‘mulherzinha’ de que tanto falam.
Notemos que o processo de ser mais está para a conscientização crítica – ou o que estamos chamando de logos biófilo – assim como o estado de ser menos está para um comportamento inconsciente, no sentido de não partir da própria vontade do sujeito, mas de outrem. Com a consciência necrofilizada, o sujeito objetificado submete-se, segundo Fromm, ao conformismo dos autômatos, uma forma de autoridade anônima, como o senso comum e a opinião pública típicos da sociedade de massa. Os autômatos conformados
vivem na ilusão de serem indivíduos dotados de vontade própria [com seu eu] enfraquecido [...]. Ele sente, pensa e deseja o que acredita que deve pensar, sentir e desejar: nesse processo mesmo perde seu ego, sobre o qual deve ser erguida toda a segurança de um indivíduo livre (Fromm, 1970 apud Lira, 2015, p. 42-43).
Podemos considerar o sistema educacional brasileiro, com sua acentuada racionalização técnico-administrativa, como um tipo de autoridade anônima que pode produzir docentes como autômatos conformados. A neutralidade e a homogeneização institucional distanciam-se da complexidade emocional de afetos, sentimentos e conflitos, característica da docência, e nega o professor e a professora como sujeitos políticos e socioculturais - pessoas com suas singularidades, corpos, histórias, familiares, pertencimentos étnico-raciais, gêneros, sexualidades e religiosidades.
Nesse cenário de automatismo docente, as necrofilias manifestam-se sem que os professores e as professoras tenham consciência de que estão agindo ou omitindo-se conforme práticas pedagógicas necrófilas que reproduzem o racismo e o sexismo estrutural nas relações socioeducacionais e sociais em geral. Por estrutural, entenda-se que o racismo e ou sexismo não decorre de legislação ou oficialização, tampouco é um ato individual isolado, mas conforma práticas sociais construídas em um processo histórico e político pelas quais condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados e ou generificados são reproduzidas, isto é, atualizadas cotidianamente, no contexto do mito da democracia racial e de uma heteronormatividade compulsória da sociedade.
Paulo Freire (1987) identifica a consciência necrófila que Fromm chama de conformismo do autômato e irracionalismo mitificante como consciência ingênua, correlata a uma cultura do silêncio, na qual os indivíduos seguem prescrições, slogans ou comunicados de vozes impostas. Ou seja, uma cultura antidialógica, sustentada na e pela educação bancária. A necrofilia, portanto, materializa-se em formas que podem passar despercebidas, como o silenciamento de sujeitos, de seus sofrimentos, desejos, corpos, histórias, e não somente nas diferentes manifestações de um autoritarismo sádico. Fromm (1981 apud Freire, 1987, p. 64) identifica a ânsia de posse com a pulsão sádica, entendida como “o prazer do domínio completo de outra pessoa” com finalidade de “converter um homem em coisa”, levando-o a perder sua liberdade, sendo o ser humano coisificado aquele que perde a consciência de si como sujeito capaz de fazer história, tornando-se um objeto, um instrumento para fins alheios, um autômato. Não há educação libertadora, portanto, se não há um amor ao mundo e aos humanos.
Nesse sentido, não é possível uma educação neutra. Ao contrário, para Paulo Freire (1997), a necessária luta ético-pedagógica para a humanização passa pelo princípio maior, a dimensão política. Dizer a palavra verdadeira, para Freire, já é uma ação impregnada da reflexão sobre a realidade concreta, portanto, é práxis que pode transformar o mundo, porque é práxis política. Esse tipo de práxis, por um lado, mobiliza denúncias das muitas injustiças do mundo e, por outro, promove o anúncio de uma nova sociedade mais humana. Segundo Freire, tal práxis constitui uma afirmação da verdade, que exige a não neutralidade da ciência, que enfatiza a prática educativa crítica, cotidiana. Reafirma, também, que homens e mulheres constituem sujeitos de sua história, negando a sua redução a apenas objeto da sociedade. Falar a palavra verdadeira para Paulo Freire, portanto, possibilita o engajamento de todos e todas em torno da construção de um mundo melhor, mais democrático e mais justo: “não há educação neutra. O ato de educar é fundamentalmente um ato político” (Freire, 1997, p. 10).
Afirmar o diálogo verdadeiro, portanto, é o caminho apontado por Freire para a superação do silêncio e da invisibilização necrófila em direção à biofilia. Assim, para o educador, a adoção do diálogo verdadeiro consiste em adotar uma atitude de coragem, e não de medo, em relação à liberdade. Uma diferenciação proposta por Fromm ajuda-nos a entender como é possível libertar-se estando imerso na opressão: tomemos a liberdade para - criar, construir, admirar-se, aventurar-se - e não de grilhões (Lira, 2015). A biofilia pode, assim, ser compreendida como o ato de liberar a potência que cria a própria vida.
Um rol de características antonímicas à necrofilia, enumeradas por Fromm e retomadas por Freire, permite detalharmos as potências da biofilia. O movimento e o dinamismo próprios do que é vivo são duas dessas características e ligam-se à transformação biófila para fazer história – em contraponto à rigidez reacionária necrófila, que conserva e reproduz o presente. A emoção é prerrogativa biófila, em contraste com o esquematismo necrófilo. Comunhão e comunicação constituem outras duas qualidades biófilas (Lira, 2015).
Síntese final
Menga Lüdke (2001) alerta para a importância da pesquisa para a formação de todo professor e professora. Segundo a autora, o ato de pesquisar deve estar presente em todos os níveis de ensino, pois é parte da natureza da docência e deve fazer parte de todo processo pedagógico. É notório, tanto na formação inicial quanto na formação continuada de docentes, que a articulação entre teoria e prática dos saberes da experiência e da reflexão crítica das práticas auxilia na criação de espaços coletivos na escola que podem contribuir com o desenvolvimento de comunidades mais reflexivas. Freire (1997) preconiza que um qualitativo biófilo da educação implica a formação permanente dos educadores que deve estar, necessariamente, baseada em análises das práticas de maneira provocativa, pois, ao contrário, promove-se domesticação, necrofilia na formação crítica desses educadores.
Na tendência desse qualitativo biófilo, as cartas são tomadas como um desafio metodológico humanista ao nos colocarem frente a processos de desumanização sofridos por discentes e docentes no chão da escola. Uma formação humana exige, de todos e todas, aprendizagens sociais que não se limitam aos conteúdos disciplinares, mas traduzem-se em práticas políticas, culturais, coletivas e identitárias, dentre outras. As cartas colocam-nos frente a juventudes que nasceram para ser mais, mas que constantemente são levadas a ser menos. Nesse sentido, suas escrevivências conclamam um processo formativo que seja problematizador das pedagogias desumanizadoras ainda presentes em nossas instituições educativas. As cartas escrevem os limites dessas pedagogias, conduzindo ao debate campos de possibilidades de pedagogias mais biófilas que eduquem estudantes e professores a se conhecerem como sujeitos de direitos. As metodologias de formação humana através das escrevivências e seus diálogos biófilos são ressaltadas como um desses campos de possibilidades pedagógicas.
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Publicado em 02 de abril de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
SOUSA, Cirlene Cristina; SILVA, Liliane Souza e; CORREIA, Licínia Maria; FANTINI, Débora Augusta Rossi. Escrevivências das juventudes negras e LGBTQI+: uma fonte metodológica biófila na formação humana docente. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 12, 2 de abril de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/11/escrevivencias-das-juventudes-negras-e-lgbtqi-uma-fonte-metodologica-biofila-na-formacao-humana-docente
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