Substituição do material didático e seus impactos no (re)planejamento dos conteúdos de Língua Portuguesa

Paulo Henrique Rodrigues Rocha

Especialista em Gestão Escolar (USP) e Aprendizagem Ativa (Unidombosco), graduado em Pedagogia (Uniso), professor da rede pública municipal de Sorocaba

João Paulo Staconi

Mestre em Química (UFSCar), especialista em Ensino Interdisciplinar em Ciências da Natureza e Matemática (IFSP), em História, Ciências, Ensino e Sociedade (UFABC) e em Gestão Escolar (USP), licenciado em Ciências Biológicas (IMES/Fafica), em Pedagogia (Unijales) e em Física (Unimes), bacharel em Engenharia Elétrica (Universidade de Araraquara), coordenador de Gestão Pedagógica Geral na rede pública estadual de São Paulo

A definição dos conteúdos a serem ensinados e aprendidos pelo currículo escolar é um importante ponto de partida para o bom andamento do ano letivo. Com isso, diferentes fatores acabam influenciando nessa ação que deve ser desenvolvida dentro da gestão escolar e em colaboração com os professores.

De acordo com Fernandes (2010), é necessário que compreendamos a construção curricular como um constante processo e não como algo capaz de ser acabado. Nessa visão, as instituições de ensino precisam alinhar cada vez mais suas propostas curriculares com demandas contemporâneas, como é o caso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2018.

Sacristán (2013) aponta que o ordenamento do tempo escolar é definido pelo currículo ao delimitar os conteúdos, os níveis e os graus de exigência. De tal modo, devemos considerar que o ato de definição dos temas e conteúdos perpassa a importância descritiva, alcançando fatores mais complexos do cotidiano escolar. Desse modo, ele precisa ser claro, definido e organizado.

Resgatando uma problematização de Fernandes (2010), o autor indaga aos leitores se é possível ter sentido o processo de seleção de conteúdos ocorrer com atores que estejam longe do espaço escolar, principalmente do âmbito local. Ele afirma que, no processo de escolha dos conteúdos a serem trabalhados, muitas escolas utilizam o livro didático como norteador.

Em consonância com essas ideias está o ponto de partida para a pesquisa que será desenvolvida. A motivação para o tema deste trabalho se deu a partir de uma situação na qual, sem nenhuma expectativa, a gestão escolar informou aos seus professores de que o material didático, utilizado desde o início de funcionamento da instituição, seria substituído. Isso, obviamente, afetaria a maioria das matérias que compõem a matriz curricular da instituição de ensino, dentre elas, a área de Língua Portuguesa, objeto desta pesquisa.

Lopes (2020) cita que a estruturação do ensino de Língua Portuguesa em um contexto contemporâneo precisa ocorrer por meio de unidades temáticas. Por sua vez, elas estão definidas sobre diversos gêneros textuais, proporcionando ao educando o contato com diferentes aspectos (leitura, escuta, escrita e fala) da língua materna.

Retomando elementos relevantes à área escolhida como foco de estudo deste trabalho, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa já orientavam para a necessidade de um olhar atento – do autor do livro didático, da gestão escolar ou do professor – sobre o sequenciamento dos conteúdos de acordo com aspectos relacionados à continuidade orgânica do que deveria ser ensinado e/ou aprendido, tendo como principais pontos: as considerações sobre os conhecimentos prévios do educando, de acordo com o que se objetiva ser ensinado em cada ano letivo e quais são as reais possibilidades de aplicação e compreensão por parte do estudante e a observância de diferentes níveis de complexidade (mesmo dentro de um mesmo conteúdo), levando-se em consideração o grau de autonomia e as especificidades de cada ciclo escolar (Brasil, 1997).

Entretanto, o processo de escolha da nova coleção didática se fez apenas pela participação de indivíduos com cargos acima da gestão escolar na instituição, como: analistas, gerentes e diretores executivos. Após finalizado o processo de seleção, toda a readequação do planejamento curricular caiu à responsabilidade da unidade.

A problemática apresentada no parágrafo acima está longe de ser um caso isolado na realidade educacional do ambiente pesquisado neste trabalho. Em pesquisas e análises sobre a construção do currículo, diferentes atores relatam em suas vivências uma verdadeira situação na qual os gestores escolares e docentes têm a oportunidade de consumir o currículo escolar, partindo das orientações de conteúdos previamente montados, normalmente desenvolvidos pelas editoras responsáveis por produzir e vender as coleções didáticas às escolas (Cavalcanti et al., 2014; Sacristán, 2020).

Partindo de uma realidade próxima da relatada nas referências citadas, esta pesquisa surge da seguinte problematização: quais os impactos causados pela substituição de um material didático no processo de reorganização dos conteúdos? Nosso objetivo é avaliar quais são os efeitos da reestruturação curricular junto ao componente de Língua Portuguesa no planejamento do 3º ano do Ensino Fundamental.

Material e métodos

Os materiais de análise são oriundos da realidade de uma escola particular em Sorocaba, no estado de São Paulo. Tal instituição, que atende alunos da Educação Infantil até o Ensino Médio, funciona desde 2019, e teve seu projeto educacional construído ao longo dos anos de 2017 até meados de 2018, o que fez com que coleção didática escolhida não tivesse tempo suficiente para estar alinhada com a BNCC – que foi aprovada apenas no final do ano de 2018.

Contudo, no decorrer dos dois primeiros anos de funcionamento, no processo de planejamento dos próprios professores e no desenvolvimento de certos documentos instrucionais para os docentes, percebeu-se que, apesar de recente, o alinhamento com a BNCC não poderia ser adiado por muito tempo. Por este motivo, no segundo semestre de 2021 – ainda que nenhum sinal tenha sido dado previamente sobre a efetiva substituição – iniciou o processo de troca de todo o material didático (da Educação Infantil ao Ensino Médio).

Propôs-se, com esta pesquisa documental, de cunho exploratório e descritivo, desenvolver uma situação de confronto entre os materiais obtidos, apresentando os resultados, principalmente, na forma de quadros comparativos, tendo como fundamentação o que discorrem dois autores sobre metodologias que se complementam neste trabalho.

Gil (2017), ao abordar as classificações e técnicas das pesquisas exploratórias e descritivas, as considera com um viés de análise flexível que possibilita a abrangência da diversidade nos aspectos explorados e descritos sobre um mesmo material (ou mais), principalmente para fenômenos pouco estudados cientificamente, como é o caso da presente pesquisa. Sendo assim, foram analisados os seguintes materiais:

  • Coleções didáticas X e Y;
  • Documentos adicionais sobre a organização dos conteúdos (disponibilizados pelas editoras à unidade escolar);
  • Planejamento curricular de 2020/2021 (baseado no material X);
  • Planejamento curricular de 2022 (em construção e baseado no material Y).

Para fins de delimitação da pesquisa, o trabalho se fixou na área de Língua Portuguesa do 3º Ano do Ensino Fundamental, de modo que pudessem ser acompanhados (e analisados) todos os documentos citados. Desse modo, esta pesquisa foi desenvolvida a partir dos seguintes processos:

  • Listagem e identificação de semelhanças e diferenças dos temas e habilidades apresentados nos livros didáticos X e Y;
  • Análise comparativa das sequenciações de conteúdos propostos por cada material e de como estão presentes nos planejamentos curriculares em cada ano letivo.
  • Detalhamento de diferentes eixos dos documentos pesquisados, separados do seguinte modo: formatação, temas, habilidades e planejamentos.

Tendo em vista as características do processo de pesquisa documental, Bardin (2002) aponta para a diferenciação entre a análise meramente documental e a análise de conteúdo: a primeira, trata do processo de pesquisa por meio de classificação-indexação; a segunda, parte da categorização temática como forma de organizar o trabalho. Na análise documental, os resultados expressam a condensação das informações e na análise de conteúdo, as informações coletadas são utilizadas para evidenciar indicadores e levantar problematizações, para além do que está presente no documento.

Logo, possibilitou-se ambos os tipos de análise, haja vista que na observação e no confronto das informações, os aspectos lógicos, temáticos e organizacionais emergiram como pontos importantes no processo de pesquisa.

Já no início da análise dos dados foi possível perceber que a apresentação dos resultados (e sua vinculada discussão) trataria de assuntos diferentes, com dados e valores que, quando apresentados sem o devido tratamento, podem não ser tão claros para o leitor.

É relevante citar que este trabalho não se propôs a julgar a forma com a qual a instituição de ensino utiliza a coleção didática para definir os temas e as habilidades a serem trabalhados durante o ano, mas em verificar, dentro do que foi feito, como ficou a organização curricular em comparação com o modelo anterior.

Resultados e discussões

Esta seção está dividida em quatro subtópicos para melhor apresentação dos resultados da pesquisa desenvolvida. Em um sentido lógico, prezou-se pelo destaque dos aspectos básicos das coleções didáticas X e Y, dando sequência a um processo de aprofundamento até chegarmos aos materiais finais da pesquisa: os planejamentos.

Ela se inicia pelas características de formatação das coleções, passando pelos temas presentes em cada capítulo, dando prosseguimento à observação das habilidades da BNCC que podem ou não ser contempladas nos materiais didáticos para, em conjunto, embasar o que será apresentado no subtópico sobre os planejamentos e está intrinsecamente relacionada com a realidade da instituição educacional pesquisada.

As formatações

O primeiro eixo de análise a ter seus resultados apresentados nesta pesquisa, ainda que abordando elementos preliminares, é o de comparação das características físicas e/ou de formatação dos materiais, levando-se em consideração que ambos foram produzidos para um mesmo período de duração escolar – um ano.

O Quadro 1 destaca propriedades específicas entre os materiais X e Y, mostrando que dentro de uma formatação diferente são entregues produtos com características similares, seja no número de livros, na divisão anual do material ou no número de páginas.

Quadro 1: Comparativo da formatação dos materiais X e Y

Características

Material X

Material Y

Ano de publicação

2014

2020

Número de livros

4

4

Número de apostilas com atividades adicionais

1

0

Número de capítulos (ao todo)

8

12

Periodicidade da divisão do material

Bimestral

Bimestral

Páginas com conteúdo de Língua Portuguesa

304

324

É importante ressaltar que o simples fato de não existir uma apostila de exercícios adicionais no material Y não pode ser colocado, de antemão, como uma característica contra a qualidade dele. Sua relevância no processo de planejamento dos conteúdos deverá apontar se a ausência desse material significa uma perda na qualidade da coleção didática.

Fernandes (2010) menciona que, no final do processo de planejamento, o peso sobre o que será definido estará, principalmente, sobre dois agentes escolares: os coordenadores e os professores. Essa posição de privilégio já serve como alerta para o fato de que, independentemente do material X ou Y, serão as definições desses profissionais que impactarão no processo de ensino-aprendizagem. Por esse motivo, o comparativo serve apenas como embasamento para o grande ponto de atenção: os planejamentos reais e definidos.

Surge outro ponto de atenção no processo de análise inicial: a quantidade de capítulos presente no material Y. Sabendo que a divisão era norteadora do processo de sistematização do planejamento curricular dos anos de 2020 e 2021, torna-se também válida a análise dos resultados de uma nova organização dos capítulos para o ano de 2022.

Em uma perspectiva contemporânea sobre o ensino de Língua Portuguesa, Lopes (2010) e Associação Imagem Comunitária (2020) citam que as divisões didáticas devem ser consideradas a partir de gêneros textuais, tendo os outros aspectos da língua – gramaticais, ortográficos, fonéticos etc. – na participação dentro dessas divisões, ou seja, estando a serviço do texto ou daquilo que queremos comunicar. Dentro dessa visão, torna-se pertinente analisar, em seguida, os aspectos temáticos dos capítulos presentes em cada material didático.

As temáticas

O segundo aspecto a ser comparado está nos temas escolhidos pelos responsáveis no processo de produção das coleções didáticas, como norteadores de cada capítulo. Como já apontado anteriormente, por ser um livro com uma divisão maior de capítulos é razoável compreender que o material Y conseguirá abordar um número maior de temas diversificados.

O Quadro 2 apresenta os temas (em ordem alfabética) e se há ou não presença desse assunto – como norteador de um capítulo – em cada uma das coleções didáticas, podendo ser percebido que apenas um tema está presente em ambos os materiais.

Quadro 2: As temáticas abordadas pelos materiais X e Y

Temas dos capítulos

Material X

Material Y

Anúncios

 

x

Aventuras

x

 

Bilhetes

 

x

Canções

x

 

Cartas

 

x

Demandas sociais

 

x

Fábulas

 

x

Fãs

x

 

Histórias em quadrinhos

x

 

Internet

x

 

Jornais

x

 

Lendas folclóricas

x

x

Mapas mentais e diagramas

 

x

Mistérios

 

x

Poemas e poesias

x

 

Regras e combinados

 

x

Relatórios

 

x

Resultados de pesquisas

 

x

Textos instrucionais

 

x

É possível perceber que há quatro temas a mais no novo material (12) em comparação com o antigo (8). Apenas a abordagem sobre “lendas folclóricas” é contemplada em ambas as coleções didáticas. Analisando tal fato é valido ressaltar que se trata de um assunto bastante estudado em sala de aula, desde a Educação Infantil até fora de contextos escolares. Desse modo, não é possível apontar com exatidão o que motivou cada material na abordagem do assunto.

O fato de os materiais possuírem seis anos de diferença entre suas publicações pode ser um elemento importante de explicação para cada uma das obras terem apresentado focos temáticos tão distintos. Ao pensar que a BNCC determinou as habilidades mínimas a serem trabalhadas, pode-se também considerar que tenha contribuído para a definição dos assuntos que permeariam cada capítulo no material Y.

Fernandes (2010) aborda o fato de que, em tempos modernos, há uma visível dificuldade de a escola conseguir trazer aos alunos uma realidade sobre as práticas de leitura e escrita de forma a prepará-los não apenas como conhecedores de gêneros textuais, mas como aplicadores e usuários dos conhecimentos linguísticos em diferentes práticas sociais.

Essa crítica apresentada pelo autor pode ajudar a apontar uma melhor qualidade nos temas escolhidos pelos autores do material Y, ao abordarem os gêneros textuais, para além dos clássicos artísticos e literários, buscando fazer com o que os estudantes tenham contato com textos e elementos visuais do dia a dia.

Dos oito capítulos apresentados no material X, apenas dois abordam uma temática no qual o aluno estuda assuntos mais relacionados à realidade leitora que vai além dos livros infantis, sendo possível perceber o foco em gêneros textuais como aventura, histórias em quadrinhos, lendas e poemas.

Essa visão de leitura mais abrangente, que não se percebe nesse caso, pode ser compreendida como uma das principais influências da BNCC, homologada após a produção do material, pois é nesse documento que aparecem os campos de atuação (da língua) de forma mais específica e direcionada: vida cotidiana, vida pública, artístico-literário, além da prática de estudo e pesquisa.

Para o material Y é válido destacar que em seus temas é possível perceber uma diversidade de aplicações cotidianas dos assuntos abordados, permeando contextos de comportamento no ambiente escolar, relacionamento com outras pessoas, com a comunidade e com a política, além de diversas situações que nesse momento trazem uma formação mais integral ao educando. Instigando, inclusive, para que o estudante tenha contato com textos e elementos linguísticos de diferentes áreas, acadêmicos ou não, para além do que já é ofertado na coleção didática.

As habilidades

A escolha por abordar apenas as habilidades específicas para o 3º ano foi proposital. Se for levada em consideração que a BNCC apresenta conteúdos coletivos (com os códigos EF15 e EF35), mas também outros especificamente orientados para um determinado ano escolar (EF01, EF02, EF03, EF04 e EF05), compreendemos que as habilidades direcionadas para cada ano precisam ser trabalhadas no tempo correto, pois estão sistematicamente organizadas dentro de um processo lógico com habilidades do ano anterior e posterior ao que o aluno está.

A BNCC apresenta um número extenso de conteúdos a serem ensinados e aprendidos na área de Língua Portuguesa para todo o Ensino Fundamental (Anos Iniciais). Nesse momento, como já citado, serão abordadas aquelas referenciadas no documento oficial pelo código “EF03”. Por isso, no Quadro 3 são listadas as 27 habilidades específicas, bem como informadas sobre a sua contemplação ou ausência nos materiais estudados.

Quadro 3: Habilidades específicas para o 3º ano contempladas em cada material

Habilidades da BNCC

Material X

Material Y

EF03LP01

 

x

EF03LP02

 

x

EF03LP03

 

x

EF03LP04

x

x

EF03LP05

x

x

EF03LP06

x

x

EF03LP07

x

x

EF03LP08

 

x

EF03LP09

 

x

EF03LP10

x

x

EF03LP11

x

x

EF03LP12

 

x

EF03LP13

 

x

EF03LP14

x

x

EF03LP15

 

x

EF03LP16

x

x

EF03LP17

 

x

EF03LP18

x

x

EF03LP19

   

EF03LP20

 

x

EF03LP21

   

EF03LP22

x

 

EF03LP23

   

EF03LP24

 

x

EF03LP25

 

x

EF03LP26

 

x

EF03LP27

 

x

Em números, a comparação de garantia das habilidades é algo ainda mais notória. Se no material X, apenas cerca de 37% das habilidades EF03 são contempladas, na coleção Y há presença de aproximadamente 85% do que orienta a BNCC.

Se o material X não apresenta a habilidade direcionada exclusivamente ao 3º ano, cria-se a dúvida sobre a garantia de aprendizagem, pois não é possível afirmar que o conteúdo suprimido foi ou será utilizado em outros anos letivos.

Surge também outra característica, pertinente à pesquisa, que trata de como estão divididas e contempladas as habilidades na BNCC. Sobre tal aspecto, a BNCC (Brasil, 2018) se define como documento oficial com a função de organizar as práticas de ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa por meio de agrupamentos que representam a realidade do indivíduo no cotidiano. De tal modo, surge então a ideia de apresentá-las em contextos específicos, chamados de “campos de atuação”. Ou seja, representam o lugar onde o aluno utilizará aquela habilidade em sociedade, ainda que muitos dos assuntos possam permear mais uma das áreas apresentadas.

Os gráficos apresentados abaixo nas figuras 1 e 2, buscam representar a participação dos campos de atuação – segundo a BNCC – de acordo com as habilidades encontradas nos materiais X e Y. Corroborando, mais uma vez, com o material Y, que consegue ser mais abrangente às diferentes situações de aprendizagem relacionadas ao uso da Língua Portuguesa.

Figura 1: Distribuição dos campos de atuação do 3º ano nas habilidades contempladas pelo Material X

Nota: Foram contempladas 10 de 27 habilidades

Figura 2: Distribuição dos campos de atuação do 3º ano nas 23 habilidades contempladas pelo Material Y

Nota: Foram contempladas 23 de 27 habilidades

Em consonância com os resultados apresentados acima e aqueles já citados no subtópico anterior, Cavalcanti et al. (2014) defendem a necessidade de entendermos que o ensino da Língua Portuguesa precisa estimular o processo de uma leitura constante, a produção textual – escrita e/ou oralizada – e que, principalmente, tenha no seu processo de construção curricular a necessidade de incorporação de novos temas dentro da realidade do aluno ou de aspectos mais amplos que surjam com o desenvolvimento da sociedade, cujo principal objetivo seja: apresentar relevância ao estudante dentro de diferentes contextos no qual ele possa estar inserido ou se inserir futuramente.

Vale ressaltar que o campo de atuação “artístico-literário” não está presente nas Figuras 1 e 2 por razão de a própria BNCC não apresentar conteúdos particularmente orientados para o 3º ano que estejam relacionados à área, contemplando apenas as habilidades EF15 (do 1º ao 5º ano) e/ ou EF35 (do 3º ao 5º ano).

Os planejamentos

A sintetização das informações é percebida em forma de resultado a partir da observação e da comparação das coleções didáticas adotadas pela instituição. De forma mais direcionada com a realidade da pesquisa, o Quadro 4 apresenta um resumo das características dentro dos planejamentos de conteúdos a serem trabalhados durante o ano, organizados por bimestre, baseados nos Materiais X e Y e adotados pela escola para o seu uso em um ano letivo específico ou por um período maior.

Quadro 4: Comparativo dos planejamentos baseados nos Materiais X e Y

Observações

Material X

Material Y

Disponibilizou espaço no planejamento anual para inclusão de habilidades não contempladas no material?

Não

Sim

Contemplou habilidades não direcionadas para a faixa etária (Educação Infantil, Fundamental II ou Ensino Médio)?

Sim

Não

Apresentou uma sequência lógica das habilidades a serem desenvolvidas?

Não

Sim

Possui observações sobre a possibilidade de o material não ser contemplado em sua totalidade, por motivos de tempo?

Sim

Sim

Deixa de contemplar mais da metade das habilidades da BNCC para o 3º ano (EF15; EF03; EF35)?

Sim

Não

Possibilitou que novos projetos sejam incluídos para que habilidades faltantes sejam contempladas?

Não

Sim

Quantidade ideal da capítulos a serem trabalhados em cada bimestre?

2

3

Possui revisões sistematicamente organizadas para que alterações possam ser feitas no documento?

Não

Sim

O documento onde está detalhado o planejamento é bem-organizado e de fácil compreensão?

Sim

Sim

Os arquivos onde estão os planejamentos baseados nos materiais X e Y apresentam pouca diferença em termos de formatação. Porém, é visível que há uma preocupação maior em tornar esse instrumento uma ferramenta funcional para o trabalho do professor com o novo documento.

Ao apresentar os resultados de sua pesquisa, Fernandes (2010) ressalta o fato de os professores terem apontado, em diferentes depoimentos, a importância do planejamento como um documento que traga compatibilidade entre conteúdo/ recursos e a realidade dos alunos, dando maior sentido para o que se pretende ensinar e aprender. Dessa forma, o resultado apresentado em um planejamento anual precisa nortear o professor, já apresentando instrumentos e caminhos para que o processo de ensino-aprendizagem ocorra da melhor forma possível.

A partir de tal afirmação, torna-se necessário ressaltar que o planejamento antigo, utilizado pela escola, apresentava muitas observações no qual o professor deveria buscar mais informações de complementação para conseguir ensinar o conteúdo presente na apostila. Já com o planejamento novo, poucas são essas situações, haja vista que a nova coleção didática possui maior número de complementos textuais, visuais e audiovisuais.

Ao abordar a prática de planejamento em uma visão que abranja gestores e professores, Fernandes (2010) cita como o planejamento inicial torna-se o grande momento de reflexão sobre o que irá ser colocado em prática durante o ano. Dando foco para esta pesquisa, essa colocação está diretamente conectada com o fato de que os planejamentos – até 2021 – não eram revisitados ao longo do ano, assim, a tarefa de “planejar” não envolvia uma análise periodicamente adequada.

Numa análise crítica sobre a rigidez da construção curricular, adotada por muitas escolas, Sacristán (2020) aborda a necessidade de entendermos que proporcionar um currículo bem-organizado não dá o direito de definirmos o todo pelas coleções didáticas, sem qualquer tipo de abertura para observações e/ou inserções de conteúdos externos. De tal forma, o grande ator impactado nesse cenário é o professor, pois ele, como autêntico planejador, tem sua função suprimida pela já definida organização vinda de ambientes editoriais e mercadológicos.

Assim, trata-se de uma abertura inicial para uma visão mais reflexiva sobre o currículo. Isso foi possível perceber com os planejamentos pesquisados. A decisão da equipe gestora em assumir prazos reais de revisão para tal documento, foi posto em prática no ano de 2022. Nas versões anteriores, não havia um processo sistemático de ação-reflexão-ação do que era feito ao longo do ano, apenas existia um local – no documento – para que os professores e gestores apresentassem suas observações. Para a nova realidade, ficou decidido que um mês antes de cada novo bimestre, o planejamento deverá ser revisitado, adicionando ainda uma revisão final em novembro.

Considerações finais

Pela observação dos aspectos pesquisados, tornam-se evidentes alguns impactos da substituição do material didático na área de Língua Portuguesa. Primeiramente, é razoável citar a importância da participação da equipe gestora em um processo tão impactante para o ano letivo como o de substituir um material didático por outro.

Durante o processo, no exercício de suas funções, a equipe gestora demonstrou, por meio do formato do novo planejamento adotado, maior interesse em analisar a organização dos conteúdos, assumindo seu papel como estimuladora de reflexões sobre o trabalho pedagógico ao longo do ano escolar.

Em seguida, já considerando o fato ocorrido, cabe ressaltar a visível melhora técnica do material Y em relação ao X, buscando uma abordagem mais alinhada com a BNCC, dentro de ideais pedagógicos mais contemporâneos.

Reforço ainda o impacto da coleção didática Y na apresentação de um maior número de objetos de conhecimento, favorecendo uma formação mais diversificada em termos de abordagens da Língua Portuguesa.

Consequentemente, a reorganização dos conteúdos acabou se mostrando mais coerente com as necessidades didático-pedagógicas, tanto do aluno quanto do professor, conforme a faixa etária e habilidades esperadas para estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental. Ainda que toda a situação tenha surgido em um contexto longe do ideal.

Referências

ASSOCIAÇÃO IMAGEM COMUNITÁRIA (AIC). Metodologias ativas em Língua Portuguesa: Fundamental 1. 2ª ed. Belo Horizonte: AIC, 2020.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997.

CAVALCANTI, J. V. P.; SILVA, M. T. M.; SUASSUNA, L. Como os professores definem o que ensinar? Um estudo sobre a construção/prática de currículos de Língua Portuguesa. In: LEAL, T. F.; SUASSUNA, L. (org.). Ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica: reflexões sobre o currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p. 11-30.

FERNANDES, J. A. B. A seleção de conteúdos: o professor e sua autonomia na construção do currículo. São Carlos: EdUFSCar, 2010.

GIL, C. Como elaborar projetos de pesquisa. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.

LOPES, M. G. Fundamentos didático-pedagógicos da Língua Portuguesa: para quê, para quem e o que ensinar? In: LOPES, M. G.; ROSÁRIO, I. C. D. (org.). Fundamentos e métodos para o ensino de Língua Portuguesa. Porto Velho: Edufro, 2020. p. 13-36.

SACRISTÁN, J. G. Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013.

SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3ª ed. Porto Alegre: Penso, 2020.

Publicado em 02 de abril de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

ROCHA, Paulo Henrique Rodrigues; STACONI, João Paulo. Substituição do material didático e seus impactos no (re)planejamento dos conteúdos de Língua Portuguesa. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 12, 2 de abril de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/12/substituicao-do-material-didatico-e-seus-impactos-no-replanejamento-dos-conteudos-de-lingua-portuguesa

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