A ilusão das relações sociais no confinamento – um retrato social no filme "BigBug"

Alexandre Dijan Coqui

Secretário municipal de Educação de Jacaraci/BA, coordenador do Polo UAB, formado em Pedagogia (Unopar) e em Letras (UFPB), especialista em Gestão Educacional (USFM), em Ciências da Linguagem (UFPB) e em Gestão Pública Municipal (UESB), doutor em Ciências da Educação (Absoulute Christian University), pós-doutorando em Ciências da Educação, membro do Grupo de Estudos Semióticos (FFLCH/USP) e da Associação Brasileira de Linguística (Abralin)

A configuração do imaginário na construção da realidade no confinamento

Jacques Aumont (2004) refere-se à Arte em sua obra, tratando do cinema e da pintura como expressões fundamentais que permitem a compreensão de nós mesmos e do mundo. O título da obra, O olho interminável, sugere que a câmera é capaz de ver e registrar a realidade de forma contínua, proporcionando uma visão panorâmica e infinita do mundo. Essa expressão indica que a visão é um dos sentidos fundamentais para percebermos a realidade e nos relacionarmos com as representações visuais.

Assim, a Arte cria conexões entre as pessoas por meio de uma reorganização do que é percebido e experimentado nas relações sociais no mundo pela percepção dos indivíduos da própria realidade. Dessa forma, a Arte é vista como uma forma de política que não se limita ao domínio institucional, mas ao potencial de transformar as relações interpessoais e, consequentemente, a sociedade como um todo.

Nesse sentido, Rancière (2012) afirma que a Arte partilha do sensível e opera nesse universo. Confirmando, Umberto Eco (2015, p. 211) refere-se à imagem como “produto de um contexto cultural e histórico, moldado pelas relações pessoais, sociais e políticas que cercam sua produção e recepção”. A expressão utilizada por Eco, “imagens”, traz um sentido muito mais amplo do que a representação visual, simbolizando os aspectos culturais, políticos e sociais, cuja personificação é moldada por fatores históricos e sociais. Essa simbolização é parte da comunicação e da cultura.

Ao pensarmos na configuração do imaginário nessa construção da realidade no confinamento, nos referimos à maneira como a nossa imaginação e percepções influenciaram na forma como experimentamos e entendemos a realidade, durante esse período de isolamento. Durante a restrição social, ficamos limitados ao espaço físico e social que nos rodeia, levando-nos a uma nova construção de realidade ou uma nova maneira de entender a realidade que nos cerca. Nesse contexto, nossas emoções e pensamentos moldam a nossa experiência com o mundo e com a realidade. A configuração do imaginário pode afetar a forma como nos relacionamos com os outros, como lidamos com os desafios impostos e como entendemos a nossa própria identidade.

Orlandi (2017) aborda o papel fundamental do imaginário na produção e na compreensão do discurso, destacando como ele é influenciado pelas condições históricas e culturais em que é produzido, moldando a forma como as pessoas entendem o mundo. No filme BigBug, durante o período de confinamento, percebe-se como o imaginário influencia na construção e na reconstrução das identidades das personagens que resgatam a essência de seu comportamento social.

Ao propormos uma breve análise sobre a ilusão das relações sociais no confinamento e utilizarmos a produção cinematográfica BigBug, trazemos à reflexão não apenas o que se refere à forma e ao conteúdo do filme, mas também à sua função e ao seu significado para a cultura e a organização social.

Assim, o objetivo está em analisar como as relações sociais acontecem no confinamento, usando para isso a produção cinematográfica e explorando como os indivíduos lidam com a restrição de espaço e de liberdade quando suas relações interpessoais são afetadas em situações como a mencionada.

Ao utilizar o filme BigBug, é possível retratar ficcionalmente as diversas formas de interação entre as pessoas em ambientes fechados, mas nesse caso específico no isolamento. Conseguimos compreender como a reclusão social e o aprisionamento afetam o comportamento dos envolvidos, bem como sua dinâmica de grupo e suas relações (interpessoais e intrapessoais), emergindo o “eu” verdadeiro e não o “eu” social.

Interessa observar que Murray (2021, p. 75), ao discutir sobre a influência das redes sociais, traça essa relação da imagem que produzimos socialmente com a imagem da nossa própria essência: “Vivemos em uma época em que é cada vez mais difícil manter a distinção entre a imagem que as pessoas têm de si mesmas e a imagem que elas querem que os outros tenham delas". Essa é a base de discussão sobre a ilusão das imagens.

Outro olhar neste trabalho se direciona ao avanço tecnológico e como nos tornamos prisioneiros de um sistema. É interessante observar o entrelaçamento entre o homem e a máquina e até que ponto confundimos nossas relações sociais. Do mesmo modo, a influência da propaganda gera o consumismo descontrolado.

Um pouco da Teoria do Caos: uma pequena alteração em um sistema dinâmico pode mudar o comportamento futuro

A Teoria do Caos é um ramo da Matemática que estuda sistemas dinâmicos altamente sensíveis às condições iniciais. Esses sistemas são caracterizados por uma imprevisibilidade aparente, ou seja, pequenas variações nas condições iniciais podem levar a resultados significativamente diferentes ao longo do tempo. Isso significa que, em tais sistemas, pequenas mudanças podem ter grandes consequências. Além disso, a Teoria do Caos tem implicações filosóficas profundas, como a noção de que o mundo é um sistema altamente interconectado e que pequenas ações podem ter efeitos significativos em todo o sistema.

Vivenciamos alterações de grandes proporções com a pandemia da covid-19, que modificou as interações sociais. O contato físico foi substituído por relações virtuais e a ilusão da construção social no confinamento evidenciou um desapego nas relações interpessoais. Murray (2021) ressalta que as pessoas estão cada vez mais solitárias e egocêntricas, não apenas devido à pandemia, mas também em virtude do desenvolvimento tecnológico. Isso se torna um problema alarmante na sociedade.

Uma das mudanças foi a imposição de medidas de distanciamento social, como o confinamento, que restringiram a interação social de muitas pessoas. Isso teve um impacto significativo nas relações sociais, parte importante da vida humana.

Tudo muda quando a peça de um xadrez é movimentada. Mudou a rotina dos indivíduos e consequentemente modificou os padrões sociais. A dinâmica social tomou outro caminho até então desconhecido, assim, o que fazer dentro de um espaço confinado com pessoas ligadas consanguineamente ou por relações afetivas? É um reality show bizarro, sem limites para estabelecer novas relações sociais e fazer aflorar comportamentos reprimidos.

Apesar do contágio pandêmico ser uma mudança de grandes proporções, pequenas alterações ocorreram no confinamento. Um olhar atento para problemas imperceptíveis fez emergir questionamentos como “quem sou eu?” ou “quem é você?”, relações antigas foram ressignificadas e segredos vieram à tona. Essas mudanças, em um sistema de relações sociais dinâmicas, mudam a forma como enxergamos o nosso espaço de convivência.

Murray (2021) destaca a ideia de que a estabilidade das sociedades é muitas vezes aparente e não uma garantia. Ele argumenta que as sociedades humanas estão sempre em risco de colapso devido a várias forças, incluindo conflitos internos, pressões externas e mudanças sociais e culturais. Murray enfatiza a importância de compreender e preservar valores e instituições que sustentem a sociedade, a fim de evitar o declínio e a desintegração social.

Instituições são entendidas como organizações ou estruturas criadas para cumprir uma determinada função dentro de uma sociedade, aqui vimos as relações entre os indivíduos culturalmente. Essas instituições servem para manter a ordem social, a estabilidade e a continuidade da sociedade. Segundo Murray, muitas delas como a política, a cultura e a educação, estão sofrendo uma crise de confiança e legitimidade, o que pode ter consequências negativas para a sociedade como um todo.

Para isso, a produção cinematográfica vem retratando as mudanças e as crises da sociedade. Desde a época do cinema mudo até os dias atuais, filmes têm mostrado as transformações culturais, políticas e sociais de suas épocas. Nos últimos anos, observa-se um aumento no número de filmes que abordam o declínio social e suas consequências. No caso do filme BigBug, o enredo retrata a mudança o comportamento do homem diante do confinamento e o domínio da inteligência artificial. Nesse contexto, os indivíduos se entregam à tecnologia para satisfazer todos os seus desejos, revelando o “eu” sem estar presos aos padrões sociais impostos pela sociedade, mostrando a perversidade e os desejos mais secretos, sem perceberem que são prisioneiros de um sistema tecnologicamente controlado, ou seja, há uma inversão no controle.

Muitas produções cinematográficas retratam personagens desesperadas, lutando para sobreviver em um mundo hostil, quebrando paradigmas, transformando-se de protagonistas a vilães, sem perspectivas de mudança. Essas personagens refletem a condição humana. Além disso, essas histórias nos fazem refletir sobre as nossas próprias vidas e nos ajudam a compreender melhor a complexidade da natureza humana.

A Teoria do Caos, ao estudar os sistemas complexos e dinâmicos que apresentam um comportamento imprevisível e altamente sensível às condições iniciais, é retratado no cinema como narrativa que reflete a complexidade do mundo e as incertezas que permeiam a vida humana. Os filmes Efeito Borboleta (2004) e Donnie Darko (2001) são exemplos de produções que se baseiam na Teoria do Caos para construir enredos complexos e intrigantes. Em ambos os filmes, pequenas ações têm grandes consequências e as escolhas das personagens afetam não apenas suas próprias vidas, mas também o mundo ao seu redor. Já no filme BigBug o efeito não está na mudança imediata de um sistema, mas em pequenas alterações tecnológicas construídas ao longo do tempo e que, por consequência, mudam o destino das pessoas.

De acordo com a Teoria do Caos, pequenas mudanças diárias podem levar a grandes transformações no futuro. Essa ideia é especialmente pertinente em um contexto de confinamento, onde as relações sociais podem ser ilusórias e complexas. Ao refletir a respeito dessa relação com a tecnologia e o impacto que ela exerce sobre nossos comportamentos, podemos nos questionar sobre o nosso papel na sociedade e, ao mesmo tempo, descobrir mais sobre quem somos nesse mundo caótico e imprevisível.

Recomeçar em meio à ilusão: as relações sociais no confinamento a partir da análise do filme BigBug

É importante observar que a verossimilhança é uma das estratégias utilizadas pela linguagem cinematográfica para criar um efeito de realidade e envolver o espectador na trama do filme. O paradoxo da verossimilhança ocorre quando o espectador não consegue distinguir o que é verdadeiro, do que é falso ou indecidível na narrativa, o que pode contribuir para a sensação de realidade. Os autores Charaudeau e Maingueneau (2020) discutem a qualidade de opinião que se opõe ao verdadeiro e que está presente na construção do discurso cinematográfico.

Parece-nos que diferenciar a ficção da realidade não é essencial quando assistimos a um filme ou o analisamos, mas sim compreender o quanto de realidade está presente nessa produção cinematográfica. Na citação da fala da personagem em The analyst, interpretada pelo ator Neil Patrick Harris, há uma questão muito discutida hoje sobre o poder das fake news, tanto no cenário político do Brasil quanto na duração da pandemia da covid-19.

O gado não vai a lugar nenhum. Ele gosta do meu mundo. Eles não querem esse sentimentalismo. Não querem liberdade e nem empoderamento. Eles querem ser controlados. Eles gozam do conforto da certeza (Matrix, 2021).

Dois autores apresentam bem essa realidade: Empoli (2020) cita um momento da política brasileira quando os comunicadores, a serviço de determinado candidato ultranacionalista, utilizaram no limite os conteúdos políticos em plataformas, comprando milhares de números de telefone para bombardear os usuários de aplicativos como WhatsApp com mensagens e fake news. Levitsky e Ziblatt (2018, p. 19), ao falarem sobre o colapso nas democracias, afirmam: “O paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia – gradual, sutil e mesmo legalmente – para matá-la”.

A produção cinematográfica e o paradoxo da verossimilhança serão a base para analisarmos algumas cenas do filme BigBug, adicionado à plataforma de streaming Netflix, do diretor francês Jean-Pierre Jeunet, uma comédia em estilo sci-fi (comédia de ficção científica) sobre inteligência artificial. O curioso no filme são as semelhanças comportamentais das personagens, dos conflitos sociais e a necessidade de autoafirmação, problemas com a autoestima e o consumo no sistema capitalista como hoje, mesmo sendo em 2045. Um futuro distante a apenas vinte e três anos da publicação desse ensaio em 2022. Muda-se o cenário, a propaganda que inunda os espaços da casa conhecendo o que as personagens acreditam que precisam, são os algoritmos tão utilizados na nossa realidade para aproximar o produto do consumidor.

Figura 1: Cartaz do filme BigBug

Fonte: Plataforma de streaming Netflix.

Por um lado, avançamos em tecnologia, mas, por outro, retrocedemos na convivência social. No filme, há um forte apelo pelo consumo exagerado e pela dependência tecnológica, assim como uma súplica pela necessidade de convivência. Bruzzone (2021, p. 43) sintetiza essa realidade e esse futuro: “O inseto olha para cima para a lupa gigantesca e se maravilha... Ele não tem ciência daquele olho que o observa, acha-se observador. Algo semelhante acontece conosco na frente da tela”. Em termos de discurso, parece-nos que o mercado capitalista fala para o consumidor e não com o consumidor, havendo uma relação de “para” e “com”. O primeiro tendo um maior sentido de superioridade e uma posição de controle sobre alguém ou algo e o “como” gera um sentido de relação de igualdade. Cada like ou pesquisa, por mais desinteressado que seja, segundo Bruzzone, afirma uma pegada digital que identifica o indivíduo como um possível consumidor.

O título BigBug, traduzido literalmente como Grande erro, traz o termo bug da linguagem computacional que traduz as falhas ao usar um software ou os lapsos imprevisíveis que comprometem todo o sistema. No jogo essa falha é muito visível, observa-se quando um avatar, por exemplo,fica preso em um determinado espaço e não consegue prosseguir no cenário. Esse é o contexto do filme. Um erro no sistema? Ou os robôs estão vivendo dois lados opostos no controle e segurança dos humanos?

No enredo, temos uma hierarquia de robôs: os Yonyx, uma nova tecnologia de androides que tentam dominar os humanos e usá-los como animais de estimação, expondo-os ao ridículo; e os androides domésticos, que tentam se igualar aos humanos e os admiram. No entanto, esse último tipo de robô aprisiona o grupo de pessoas em um mesmo ambiente.

Os Yonvx criam espetáculos, o filme começa com um deles, muito próximo de um circo de horrores ou um zoológico, onde os humanos são aprisionados e exibidos como atração para os próprios humanos. Pode-se dizer uma metalinguagem humana.

Figura 2: Imagem do filme BigBug

Fonte: Plataforma de streaming Netflix.

As cenas iniciais do filme BigBug não são apenas de animação feitas por robôs e humanos, mas revelam a degradação do homem como instrumento manipulado pela tecnologia. Chauí trata do fenômeno da alienação que ocorre na esfera da consciência: os sujeitos representam suas relações sociais como lhes aparecem, “sendo impossível reconhecerem-se nos objetos sociais produzidos por sua própria ação” (2007, p. 72).

Pode-se dizer que há uma falsa consciência, ou melhor, como discute Chauí, uma ilusão da ordem social determinada pela vida social dentro de um modo de produção capitalista. As imagens onde os humanos são ridiculizados pelos androides, com humanos sendo marcados com ferro em brasa, estabelecem uma conexão com a forma tradicional e dolorosa já ultrapassada na criação de bovinos, utilizada em pleno 2045 por androides Yonvx. Os papéis se invertem na representação social e as pessoas estão alienadas sobre esse espetáculo.

O próprio nome do programa fictício é Homo ridiculus, retomamos o fragmento da fala de The Analyst, em Matrix (2021), ao dizer que o gado (humanos) quer ser controlado. Ao deixarmos marcas digitais tecnológicas e sermos condicionados a consumir e tornarmos manipulados pelo mercado, somos controlados. Bruzzone (2021, p.45), questiona se somos usuários ou produtos: “A massa de dados acumulados e processados é descomunal e tem um valor difícil de dimensionar. Há quem diga que os dados são o novo petróleo”. Grandes empresas são avaliadas de forma bilionária por terem dados dos usuários e isso é controle, no entanto, não nos preocupamos em sermos monitorados, uma vez que temos “o gozo do conforto da certeza” (Matrix, 2021).

É interessante observar que as imagens contidas nas cenas do filme BigBug trazem em si uma carga simbólica da própria degradação humana. Uns assistem o sofrimento do outro como entretenimento e, observa-se aqui, os algozes são inteligências artificiais construídas pelo próprio homem. No livro Imagens apesar de tudo, de Georges Didi-Huberman (2020), há a reflexão sobre a capacidade da imagem representar o sofrimento humano, principalmente em momentos de extrema violência, como em situações de guerra e genocídio. Ao longo da obra, Didi-Huberman discute a importância de se compreender uma imagem em sua complexidade, não como um mero registro fotográfico da realidade, mas como uma construção que carrega consigo toda uma carga histórica, social e cultural.

A produção BigBug utiliza a força da imagem de forma cômica, porém de maneira mais complexa do que meramente um programa de entretenimento. A cultura do ridicularizar para aumentar a audiência, como Umberto Eco (2015) aponta, apresenta o ser humano sob uma forma caricata e estereotipada para gerar humor, levando a uma percepção distorcida da realidade. No filme, a representação do homem leva a essa compreensão, especialmente quando as personagens confinadas assistem a esses programas e debatem entre si o que é considerado entretenimento.

Nesse universo repleto de erros e com múltiplas possibilidades de interpretação, seja em decorrência dos bugs no sistema tecnológico da casa ou nos próprios fundamentos sociais, surge a questão sobre o “quem somos”: meros produtos de um sistema capitalista ou usuários ativos desse mesmo sistema? É interessante considerar Foucault (2020), quando ele afirma que,

para a análise arqueológica, as contradições não são nem aparências a transpor nem princípios secretos que seria preciso destacar. São objetos a ser descritos por si mesmas, sem que se procure saber de que ponto de vista podem dissipar ou em que nível se radicalizam e se transformam de efeitos em causas (Foucault, 2020, p. 186).

Ao tratar da análise arqueológica, Foucault examina os discursos e as práticas que moldam o pensamento e o comportamento humanos em determinadas épocas e sociedades, enfatizando o contexto histórico e cultural em que um discurso ou prática surgem. Ele busca identificar as regras que governam a produção do discurso, incluindo as condições sociais, políticas e econômicas que influenciam sua emergência. É possível compreender essas questões na mudança do comportamento das personagens ao longo do período de confinamento. Ao propor o estudo das contradições e das diferenças no discurso, Foucault permite observar as diferentes ideias e práticas em diferentes épocas e sociedades.

No filme BigBug, tudo se torna possível, a partir do momento em que as personagens entram em isolamento. A porta da residência torna-se uma barreira entre a essência e a aparência construída socialmente.

O termo "ilusão" é o que mais se enquadra ao tratar do isolamento no filme BigBug. Entende-se "ilusão" como uma percepção distorcida da realidade. Zygmunt Bauman (2021) aborda o tema da ilusão como uma das principais características da sociedade contemporânea, na medida em que as pessoas são constantemente expostas a informações que são fabricadas, manipuladas e apresentadas de forma a criar a ilusão de que representam a realidade. Bauman argumenta que a sociedade líquida é marcada pela incerteza, pela precariedade e pelo efêmero, o que leva as pessoas a buscarem formas de segurança e estabilidade em meio a um mundo em constante mudança. Nesse contexto, a ilusão se torna uma forma de escape e de conforto, permitindo que as pessoas acreditem em narrativas ou histórias que as façam se sentir seguras e protegidas.

Não há intenção de mostrar que o contexto reflita uma oposição de conflitos, mas a ilusão em situações sociais que determina diferentes mudanças de comportamento e a influência do mercado tecnológico no controle social. Essas mudanças se transmutam de efeitos para causas. O filme apresenta um aglomerado de ações que possibilitam esse entendimento. Grupos de androides se dividem em aqueles que desejam dominar os humanos e aqueles outros que se propõem a proteger esses seres humanos, pois parecem possuir sentimentos humanos. Há uma inversão de papéis: por um momento, os humanos parecem perder a essência da alma, da sensibilidade e do sentimento, enquanto os androides parecem ter mais alma que os humanos.

No filme, as cenas se passam dentro da casa da protagonista Alice Barelli, interpretada pela atriz Elsa Zylberstein. Ela é uma mulher que vive em um mundo distópico, no ano de 2045. Ela se interessa por objetos antigos e pela escrita, áreas já esquecidas pela maioria das personagens. Toda a narrativa ocorre dentro da casa de Alice, onde as personagens estão confinadas. A produção aborda a dicotomia de uma sociedade distópica, na qual o controle governamental é exercido por uma inteligência artificial que usa os humanos para o seu entretenimento.

No filme, os confinados acreditam que podem controlar a IA por meio de comandos de voz. No entanto, logo descobrem que são controlados pelos androides domésticos e que o comando de voz humano não é suficiente para desbloquear as portas. A questão central aqui não é a inteligência artificial controlando os humanos, mas a relação entre o homem e a máquina. Pereira (2003) discute a conexão entre o homem e o uso de utensílios tecnológicos, observando sua evolução. Para ele, não é possível pensar no homem sem a máquina e a ideia de a máquina comandar o homem ser um mito.

Em uma das cenas do filme, a situação atinge o extremo quando as personagens precisam de um animal para tentar destravar a porta da residência, a fim de conseguir a liberdade. Eles recorrem ao cachorro da personagem Françoise, interpretada pela atriz Isabelle Nanty, que está fora do círculo de confinamento. Essa cena retrata a bizarrice da situação e a condição desesperada das personagens.

Em outras cenas, é possível ver a influência da tecnologia no consumo por meio da interferência constante de propagandas no cotidiano das personagens. Um telão flutuante é apresentado nas ruas da cidade, parando em frente às janelas para exibir anúncios que se adequam às necessidades do ambiente. Quando um utensílio quebra, por exemplo, o telão automaticamente exibe propagandas de utensílios mais modernos e avançados.

Bruzzone (2021) apresenta uma análise tecnológica sobre o registro de dados de acesso a textos, fotos e vídeos na internet. Tudo o que o usuário busca na rede gera informações que classificam comportamentos e, por meio de modelos estatísticos, fazem previsões e direcionam anúncios para as pessoas com maior propensão a se interessarem por determinados produtos ou serviços. Mesmo que o filme seja ambientado em 2045, utiliza-se de um sistema já existente em 2022, sendo apenas o instrumento de propaganda diferente, mas com o mesmo padrão tecnológico. 

O filme oferece diversas possibilidades de análise, mas nossa atenção se volta para a ilusão do comportamento social no confinamento e nas relações sociais que se desenvolvem após o isolamento. Algumas cenas evidenciam essas questões comportamentais, como aquela que apresenta dois personagens estereotipados: o homem, interpretado por Stéphane De Groodt, no papel de Max, que busca o prazer sexual sem afetividade e sinceridade, enquanto a mulher, presa a uma posição histórica de submissão, busca o amor romântico.

Beall e Sternberg (1995) afirmam que o amor é uma construção social e uma experiência emocional traduzida de forma diferente em diversas culturas, de acordo com o período histórico. Cada indivíduo, em sua temporalidade e com suas especificidades culturais, enxerga o amor de maneira diferente, sendo que esse sentimento aparece, em muitos casos, de forma desigual entre homens e mulheres. Ao observar as cenas com as personagens Alice Barelli e Max, é possível ver esse par caricato: o homem em busca do prazer e a mulher em busca do amor, conforme discutido por Neves (2007).

A personagem Françoise, por sua vez, traz para a realidade do confinamento, o seu androide personal, na verdade o seu parceiro sexual, pois cria-se a ilusão do desejo de ser amada, mesmo que por um androide, uma alegoria da paixão. Cena assim já foi realizada como em A.I. Inteligência Artificial, em 2001, com o androide amante interpretado pelo ator Jude Law. A busca não é apenas pelo prazer, mas também pelo sentimento de aceitação da personagem Françoise.

Esse contexto representa o universo discutido por Bauman (2021, p. 22), quando "numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços". Essa é a representação do amor líquido. No caso das personagens Alice Barelli e Françoise, temos a "promessa de aprender a arte de amar como oferta (falsa, enganosa, mas que é ardentemente desejada que seja verdadeira) de construir a experiência amorosa à semelhança de outras mercadorias".

O confinamento, uma alegoria com o Big Brother e suas consequências, é a revelação do real sobre o imaginário. Nada fica atrás das máscaras sociais. Aos poucos, eles se perdem com as pressões diárias do isolamento. Marzochi (2007) reflete sobre esse confinamento como um paradoxo do visível, em que a verdade dos conflitos que vão surgindo ao longo desse processo abre um leque de possibilidades para as relações sociais. Cada personagem, assim, representa a sociedade e suas particularidades.

Da mesma forma, confinados com os humanos, porém de forma voluntária, os androides domésticos possuem a possibilidade de acionar a abertura das portas, mas decidem mantê-las fechadas para proteger os humanos dos androides Yonyx, porém são incompreendidos pelas personagens. Os androides caseiros têm a intenção de parecer com os humanos e acabam demonstrando, no decorrer do filme, mais humanidade do que o próprio homem.

Conclusão

Com a intenção de instigar um maior diálogo com o filme e as questões sociais, o enfoque deste trabalho é abordar questões que devem ser analisadas dentro de um cenário ficcional, porém verossímil, que faz parte de nossas verdades e comportamentos na construção social. Portanto, fica a provocação, baseada em Bruzzone (2021, p. 45), ao questionar se somos usuários ou produtos. Qual é o nosso papel nesse teatro dentro desse espaço no qual estamos confinados? O que somos nesse mundo capitalista que vende a ilusão de liberdade e nos aprisiona em um sistema mascarado pela necessidade de consumo de produtos ou serviços?

Assim, o filme BigBug traz uma reflexão profunda sobre a ilusão das relações sociais no confinamento, mostrando como a sociedade pode ser marcada por uma busca constante por formas de segurança e estabilidade, em meio a um mundo em constante mudança.

Observa-se que toda a segurança é quebrada quando as personagens são isoladas. A ilusão se choca com a realidade quando a suposta liberdade é confinada a um pequeno espaço, pois ele aproxima os indivíduos de suas verdades, impedindo que as pessoas acreditem em suas narrativas ou histórias criadas, fazendo-as se sentirem seguras e protegidas, mesmo que essas narrativas sejam distorcidas e irreais.

Referências

AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

BEALL, Anne E.; STERNBERG, Robert J. The Social Construction of Love. Journal of Social and Personal Relationships, n° 12, p. 417-438, 1995.

BIG BUG. Diretor: Jean-Pierre Jeunet. Entretenimento, 2022.

BRUZZONE, André. Ciberpopulismo: política e democracia no mundo digital. São Paulo: Contexto, 2021.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. Trad. Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2020.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. São Paulo: Cosac Naify, 2020.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015.

EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. Trad. Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2019. (Coleção Espírito do Tempo).

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2020.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MARZOCHI, Ilana Feldman. Paradoxos do visível reality shows, estética e biopolítica. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.

MURRAY, Douglas. A loucura das massas: gênero, raça e identidade. Trad. Alessandra Bonrruquer. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021.

NEVES, Ana Sofia Antunes da. As mulheres e os discursos genderizados sobre o amor: a caminho do "amor confluente" ou o retorno ao mito do "amor romântico"? 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/3xMKWBCmTwGcS3CJkdLxWCS/?format=html#. Acesso em: 5 abr. 2022.

ORLANDI, Eni P. Eu, tu, ele: discurso e real da História. Campinas: Pontes, 2017.

PEREIRA, Luís Moniz. Inteligência artificial: mito e ciências. 2003. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Luis-Pereira-25/publication/237130636_Inteligencia_Artificial_Mito_e_Ciencia/links/00463527ca46b52079000000/Inteligencia-Artificial-Mito-e-Ciencia.pdf. Acesso em: 5 abr. 2022.

RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

Publicado em 30 de abril de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

COQUI, Alexandre Dijan. A ilusão das relações sociais no confinamento – um retrato social no filme "BigBug". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 14, 30 de abril de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/14/a-ilusao-das-relacoes-sociais-no-confinamento-r-um-retrato-social-no-filme-bigbug

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.