O Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais: interações entre os sujeitos escolares e o seu engajamento no ensino remoto

Adriana Eufrásio Braga

Graduada em Engenharia Civil (UFC), especialista em Avaliação (Cátedra Unesco/UnB), mestra e doutora em Educação Brasileira (UFC), professora associada II do Departamento de Fundamentos da Educação da UFC

Anna Cecília Cavalcante Freitas

Graduada em Letras (UECE), especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (UECE), mestranda em Educação (UFC), professora efetiva da rede de ensino do Ceará

Kelma Socorro Lopes de Matos

Graduada em Serviço Social (UECE), mestra e doutora em Educação Brasileira (UFC), pós-doutora em Educação na UFBA e no CES/Universidade de Coimbra), professora titular do Departamento de Fundamentos da Educação da UFC

Este estudo investiga o papel do Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais (NTPPS) da Secretaria da Educação do Ceará (Seduc/CE) durante o ensino remoto em 2020 no que se refere à interação entre sujeitos escolares (estudantes e professores/as), bem como aos seus engajamentos no fazer pedagógico no período de distanciamento social em decorrência da pandemia da covid-19.

O NTPPS é uma unidade curricular do Ensino Médio desenvolvida pela rede estadual de ensino do Ceará desde 2012. Trata-se de uma iniciativa pedagógica voltada à Educação Integral (Gadotti, 2009) que aborda diversas temáticas pertinentes aos contextos das juventudes, por meio de metodologias dialógicas e pelo estímulo à pesquisa (Nobre, 2019). Essa proposta se baseia nos Quatro Pilares da Educação – Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a Viver Juntos e Aprender a Ser (Delors et al., 1996).

Cada um dos pilares suscita inúmeras reflexões. Por ora, esta análise se centra no aprender a ser e aprender a viver juntos, pois como aponta Nobre (2019), os/as estudantes de NTPPS tendem a se identificar com atividades voltadas ao autoconhecimento e às aprendizagens da convivência presentes nas aulas, o que facilita a interação entre os sujeitos envolvidos e o seu engajamento nas atividades. Busca-se, com isso, responder à seguinte questão: quais contribuições advêm do NTPPS, durante o período de estudos remotos em 2020, para a construção de uma ambiência de interação entre docentes e discentes e de engajamento desses sujeitos no fazer pedagógico?

O estudo se justifica pela abrangência do NTPPS, atualmente implementado em mais de 300 escolas da rede estadual cearense, tendo como foco o aprender a ser e o aprender a viver juntos, pois eles se refletem nos referenciais curriculares e na legislação da educação brasileira. Além disso, é fundamental conhecer as estratégias utilizadas nas redes de ensino durante o período atípico de aulas remotas ocorrido em 2020.

Esta pesquisa é de natureza bibliográfica e documental. A primeira etapa se consistiu pelo levantamento de dados analisados e publicados em materiais escritos (Matos; Vieira, 2002). Com isso, discorremos sobre os aspectos da dimensão do aprender a ser e a viver juntos (Delors et. al.,1996) em suas relações com o desenvolvimento da espiritualidade e da aprendizagem na convivência, com base em Boff (2006) e em Jares (2008), além da forma como essas aprendizagens podem ser identificadas nas diretrizes da educação nacional. O estudo bibliográfico também permite que observemos os pressupostos teórico-metodológicos do NTPPS e as considerações de estudos anteriores acerca das interações entre discentes e docentes (Matos, 2003). Esse primeiro momento apresenta ainda algumas visões de estudantes sobre o NTPPS, publicadas por Nobre (2019).

A segunda etapa foi a pesquisa documental e se caracteriza pela análise de documentos que ainda não receberam tratamento analítico. Podem ser materiais escritos ou não escritos, como também produções audiovisuais (Matos; Vieira, 2002). O material de consulta foi o do seminário online (webinar) NTPPS: o Aprendizado Socioemocional no Contexto Atual, realizado pela Seduc/CE em 19 de outubro de 2020 e disponibilizado no YouTube, trazendo o depoimento de uma professora e de um estudante da rede estadual cearense sobre as aulas de NTPPS durante o ensino remoto em uma turma de 1º ano do Ensino Médio.

A técnica utilizada para o tratamento dos dados foi a análise de discurso (Matos; Vieira, 2002). Foram estudadas e relacionadas as falas da professora e do aluno, representante da turma, juntos aos referenciais teóricos.

As contribuições deste estudo estão organizadas em quatro seções, quando serão discutidos os pilares do “aprender a ser e a conviver” pertinentes aos postulados da Educação para o século XXI e sua relação com a educação brasileira. A seção seguinte discorre sobre o NTPPS e o seu potencial promotor de interação e engajamento entre sujeitos escolares, a partir de estudos anteriores analisados sobre o tema. Os resultados serão apresentados e discutidos na quarta seção.

Aprender “a ser e a conviver” no percurso da Educação para o século XXI

No final dos anos 1990, Delors et al. (1996) acreditaram que a educação deveria se organizar em torno de quatro aprendizagens fundamentais: “Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a Viver Juntos e Aprender a Ser”, configurando-se, assim, um “processo permanente de produção da própria pessoa” (Delors et al., 1996, p. 12) e de suas relações interpessoais.

O “aprender a ser” integra as demais aprendizagens e se centra na descoberta e no desenvolvimento de si mesmo como indivíduo, como membro de uma família e de uma coletividade. Nesse sentido, os autores afirmam que a educação “deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa — espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade” (Delors et al., 1996, p. 99). Para Boff (2006), a espiritualidade independe de religiões, pois “se revela pela capacidade de diálogo consigo mesmo e com o próprio coração” (Boff, 2006, p. 51). Nessa perspectiva, o autoconhecimento pode ser considerado um dos elementos que compõem o desenvolvimento da dimensão espiritual, do aprender a ser também trabalhado no âmbito educacional. Essa aprendizagem impacta nas relações humanas, pois a espiritualidade “traduz-se pelo amor, pela sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do outro, pela responsabilidade, e pelo cuidado como atitude fundamental” (Boff, 2006, p. 51).

No que se refere ao “aprender a viver juntos”, Jares (2008) considera que a aprendizagem da convivência é um aspecto essencial na construção de uma cultura de paz, na qual estão incluídos os Direitos Humanos, o respeito interpessoal, o cuidado com o meio ambiente, o diálogo, a solidariedade, a não-violência, o laicismo e o caráter inclusivo das culturas.       

Tomando por base as considerações dos referidos autores, é possível observar alguns dos fundamentos do aprender a ser e a conviver incorporados, progressivamente, à legislação e aos referenciais curriculares da educação brasileira. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, nº 9.394/96), substituiu a legislação de 1971, que não mencionava qualquer elemento pertinente ao autoconhecimento e à aprendizagem da convivência. A LDBEN de 1996 assumiu princípios coerentes quanto ao aprender a conviver, como o respeito à liberdade, ao bem comum e à ordem democrática, assim como o apreço à tolerância e aos laços de solidariedade humana. Em 2013, novos avanços ocorreram com a consideração da diversidade étnico-racial. Em 2014, o Art. 26, parágrafo 9º, postulou que conteúdos relativos aos Direitos Humanos e à prevenção de violências contra a criança, o adolescente e a mulher deveriam ser incluídos como temas transversais nos currículos da Educação Básica. No que se refere à dimensão do autoconhecimento, em 2017, foi estipulado que os currículos deveriam considerar a formação integral dos/as estudantes, incluindo os aspectos socioemocionais. Em 2018, o Art. 12, determinou que os estabelecimentos de ensino teriam a incumbência de desenvolver ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas.

Em 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (PCN) definiam seus objetivos “em termos de capacidades de ordem cognitiva, física, afetiva, de relação interpessoal e inserção social, ética e estética, tendo em vista uma formação ampla” (Brasil, 1997, p. 47), entendendo que esses fatores contribuem para que os/as estudantes compreendam a si mesmos/as e aos outros, reforçando a relação mencionada entre autoconhecimento e convivência. A valorização dos princípios de solidariedade, respeito às diversidades, diálogo e afetividade pode ser observada ao longo de todo o documento. No ano 2000, os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) registraram os mesmos princípios e postularam a organização da educação sob os quatro pilares já apontados (Brasil, 2000).

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, em 2013, para além da LDBEN, defendem uma concepção de escola que, de forma multidimensional, “privilegia trocas, acolhimento e aconchego, para garantir o bem-estar de crianças, adolescentes, jovens e adultos, no relacionamento interpessoal entre todas as pessoas” (Brasil, 2013, p. 25).

Já a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), publicada em 2017, evidencia as dimensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral e simbólica como fundamentais ao processo educativo. Isso é observado, sobretudo, nas competências gerais da Educação Básica. A competência 8, por exemplo, relaciona-se ao caminho do autoconhecimento ao estabelecer, como um dos objetivos da educação, o processo de se conhecer e se apreciar, cuidar de si e reconhecer suas emoções e as dos outros. A competência 9 apresenta os fundamentos da convivência postulados por Jares (2008) ao destacar o exercício da empatia, do diálogo, da resolução de conflitos e da cooperação, do respeito ao outros e aos Direitos Humanos, com acolhimento e valorização das diversidades (Brasil, 2017).

Esse breve resgate histórico tem como objetivo compreender o valor atribuído às dimensões do aprender a ser e a conviver nos postulados da educação brasileira, em consonância com os pilares da educação para o século XXI. Contudo, pode-se conceber a noção de século do ponto de vista cronológico ou simbólico. Nesse sentido, segundo Almeida (2020), um novo século pressupõe mudanças culturais, socioeconômicas e tecnológicas que reorganizam os modos de vida. Foi nessa esteira que Hobsbawm (1995) definiu o “breve” século XX, abreviado em 1991 pela queda da União Soviética, dando fim à era dos extremos que o caracterizou: o antagonismo entre o capitalismo e o socialismo.

Nessa perspectiva, estima-se que a pandemia da covid-19 mudará a dinâmica do mundo contemporâneo, marcando o início do novo século (Almeida, 2020). Nesse contexto, uma vez percebidas as mudanças no fazer pedagógico decorrentes desse marco histórico, valida-se a reflexão sobre os pontos de convergência e divergência entre o que se projetou como a educação para o século XXI e a educação que será ou já está sendo vivenciada nesse século, com destaque aos princípios e às práticas de autoconhecimento e à convivência no âmbito escolar. Por ora, o que se sabe é que a necessidade de distanciamento social em virtude da pandemia ocasionou o fechamento das escolas e a oferta do chamado ensino remoto. Maia et al. (2020) analisam os entraves de ordem socioeconômica que essa oferta acarretou à educação, devido às inúmeras desigualdades sociais entre os/as estudantes do país.

Não obstante, o reconhecimento desses problemas e a necessidade de discuti-los se torna um movimento válido para conhecer e analisar medidas adotadas pelas instituições de ensino e pelos sujeitos do fazer pedagógico, a fim de dirimir as dificuldades do ensino remoto, identificando possíveis caminhos para construir ou manter os vínculos afetivos e as práticas de convivência entre docentes e discentes.

O Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais: ambiência de interação entre sujeitos escolares e engajamento no fazer pedagógico

O Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais (NTPPS) é uma proposta de reorganização curricular do Ensino Médio desenvolvida pela Seduc/CE, em parceria com o Instituto Aliança (IA), uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que desenvolve iniciativas educacionais em âmbito nacional. Segundo Nobre (2019), essa unidade curricular se coaduna aos preceitos da Educação Integral (Gadotti, 2009), pois visa ao desenvolvimento cognitivo, emocional e social dos/as estudantes.

O NTPPS também trabalha com pesquisa. A cada ano, os/as estudantes realizam estudos sobre assuntos de seu interesse, com base nas temáticas discutidas em sala de aula. No primeiro ano, o lócus de investigação foi a escola. No segundo, a comunidade em que vivem e, no terceiro, o mundo do trabalho (Nobre, 2019).

Os temas das aulas são abordados por meio de uma metodologia participativa, com o objetivo de fomentar uma ambiência dialógica, envolvendo estratégias como rodas de conversa, resolução de situações-problema, leitura e produção textual colaborativa, jogos, dinâmicas de grupo e ciclos de debates. As temáticas trabalhadas são: Identidade e Projeto de Vida, Autoestima, Diversidade, Saúdes, Família, Comunicação e Integração, Identidade Cultural, Ética e Cidadania, Participação Política e Mundo do Trabalho (Konzen, 2019).

Os encontros são realizados duas vezes por semana (com duração de 2h para cada encontro), ao longo de todo o Ensino Médio. Os planos de aula da unidade curricular elaborados em 2012 pela Seduc/CE, em parceria com o Instituto Aliança, foram atualizados em 2016. As aulas podem ser ministradas por docentes de quaisquer áreas do conhecimento que participam de uma formação continuada. O pré-requisito para a condução das aulas é a afinidade com os referidos pressupostos teórico-metodológicos centrados no desenvolvimento integral dos/as jovens. Os/as participantes devem ser ouvidos, considerados com respeito, vistos a partir de uma forma positiva, pois são sujeitos com percepções sobre si, sobre a sociedade e, em especial, sobre sua relação com a escola e os/as professores/as.

Os/as alunos/as buscam uma prática educacional com a qual se identifiquem, a partir de conhecimentos que tenham significado para a sua vida cotidiana. Assim, há a possibilidade de encontros na escola, no sentido de se aproximarem os “mundos” dos sujeitos da instituição educacional onde se encontram, muitas vezes, separados, promovendo a construção de uma sintonia entre eles (Matos, 2003).

Num processo de valorizar a visão do/a jovem, Nobre (2019) analisa a percepção dos/as estudantes de uma escola estadual de Fortaleza/CE sobre o trabalho do NTPPS com as diversas dimensões humanas. No que se refere ao desenvolvimento cognitivo, ela apresenta falas de alunos/as, evidenciando como essa proposta ajuda em todas as matérias (Nobre, 2019, p. 85) em virtude da pesquisa que exige a leitura e a escrita de temas que se relacionem com os conhecimentos das disciplinas curriculares. A autora também defende a tese de que o foco no desenvolvimento socioemocional é fundamental para um bom desempenho cognitivo.

No tocante às dimensões social e emocional, os/as alunos/as “demonstram plena consciência de que estão ‘passando por uma transição’ e que a escola tem um papel essencial de compreensão e apoio” (Nobre, 2019, p. 84). A autora indica que nas aulas de NTPPS é possível observar o desenvolvimento da confiança entre os pares, assim como da própria autoconfiança, tornando os/as estudantes mais integrados e participativos (Nobre, 2019).

As falas mostram processos de autodescoberta desses/as jovens quanto ao desenvolvimento da empatia e do respeito mútuo, também em relação ao fortalecimento da autoestima, à ambiência de comunicação com respeito e à interação que se constrói nas aulas. Os temas discutidos e as metodologias utilizadas convidam os sujeitos a manifestarem suas opiniões, seus sentimentos e a compartilharem suas vivências. Na visão dos/as alunos/as, as aulas de NTPPS configuram “uma conversa em que há a possibilidade de ‘se abrir’ para os professores, a oportunidade de ‘ver as nossas opiniões’, ‘se colocar’, de ‘ser ouvido’, ‘interagir com os colegas’” (Nobre, 2019, p. 82). Isso permite inferir que o NTPPS auxilia na prática da espiritualidade, contribuindo para que existam seres humanos melhores a cada dia.

Para Boff, “espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança” (2006, p. 14). Nesse sentido, um dos/as estudantes entrevistados por Nobre declara: “eu me descobri muito do ano passado para cá, eu descobri coisas que eu nunca saberia sobre mim se eu não tivesse o Núcleo, e isso me mudou bastante e vai continuar mudando” (Nobre, 2019, p. 88). Além disso, a autora ainda destaca a ambiência afetiva que se institui nas aulas de NTPPS. O respeito mútuo e a abertura para o diálogo constituem fundamentos essenciais à aprendizagem da convivência (Jares, 2008). A pesquisadora conclui que

a criação e o fortalecimento de vínculos entre os professores e estudantes, baseados no afeto, na atenção e na cumplicidade, promovem, além do bem-estar, aprendizagem significativa e contribuem com a assiduidade e permanência dos estudantes na escola (Nobre, 2019, p. 95).

Sendo assim, os resultados do estudo de Nobre (2019) apontam o NTPPS como iniciativa privilegiada de interação entre os/as estudantes e deles/as com os/as docentes e a gestão escolar, o que contribui para o seu engajamento na rotina da escola. Com base nisso, a Seduc/CE apostou no potencial do NTPPS como uma das estratégias para manter os vínculos estudantis durante o período de ensino remoto, em 2020. As atividades de pesquisa foram suspensas e as aulas passaram a focar exclusivamente no suporte socioemocional dos/das jovens (Ceará, 2021). O tópico a seguir apresenta a análise de uma webinar em que uma professora e um estudante relatam suas experiências com o NTPPS nesse período de encontros virtuais, no que diz respeito à criação e à manutenção dos vínculos em um contexto de distanciamento social.

Conhecer, acolher e respeitar as juventudes

A webinar NTPPS: o Aprendizado Socioemocional no Contexto Atual foi realizada pela Seduc/CE em 9 de outubro de 2020 e está disponível no YouTube no canal da Coordenadoria Estadual de Formação Docente e EAD (CED). O seminário online teve como tema a atuação do NTPPS durante o período pandêmico de ensino remoto. Participaram do debate a professora de NTPPS da Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) André Cartaxo, Ellem Quirino, e o estudante do 1º ano do Ensino Médio da referida escola, Caíque Rodrigues.

As primeiras falas apresentaram a trajetória do NTPPS na escola pública e os pressupostos teórico-metodológicos dessa unidade curricular. O foco desta investigação, no entanto, volta-se aos relatos da professora Ellem Quirino e do estudante Caíque Rodrigues. A docente iniciou sua fala contextualizando a Escola de Ensino Médio de Tempo Integral (EEMTI) André Cartaxo, situada em Mauriti/CE, que passou a funcionar em tempo integral no ano de 2020 e implementou o NTPPS como parte do currículo. A turma de 1º ano também estava conhecendo o NTPPS naquele momento. Segundo ela, a “nova disciplina” funcionava muito bem no ensino presencial, com boa aceitação e participação dos/as estudantes, porém

(com o ensino remoto) houve uma preocupação de como iríamos ministrar essas aulas para os alunos gostarem também, porque as aulas de NTPPS são muito acolhedoras, então é muito aquela coisa olho no olho, de você estar perto. Tem muita questão de abraço, dinâmicas juntos, então a gente ficou preocupada, com medo de não dar certo.

Com essa fala, a professora evidencia a afetividade presente nas aulas como parte essencial à convivência cotidiana (Jares, 2008). Foram utilizadas algumas estratégias para adaptar as aulas ao ensino remoto, com a realização de dez encontros online no primeiro semestre. A professora explicou que as adaptações foram inspiradas nas temáticas dos planos de aula. Nas três primeiras aulas, apresentaram-se os seguintes filmes: Desafiando gigantes, Uma lição de vida e Lion: uma jornada para casa.

A cada filme, a docente lançou questões para que os/as estudantes manifestassem suas opiniões e uma relação dos filmes com as suas vidas. Esse recurso trouxe reflexões e diálogos sobre as suas vidas, no sentido de perceber a importância do apoio familiar, refletir sobre como o acontecimento influencia na construção da nossa identidade, da autoaceitação, da autopercepção e da esperança para um novo tempo. Tais ações revelam a atenção ao processo de autoconhecimento, essencial à formação humana.

Na aula 4, os/as estudantes realizaram a leitura do texto As diversas saúdes, um dos temas trabalhados nos planos de aula do NTPPS do 1º ano, propondo uma reflexão crítica sobre as saúdes que constituem um ser. A partir disso, a professora mediou um debate relacionado à representação da saúde e como o isolamento social estava impactando as suas vidas e de suas famílias. A participação ativa e a sugestão de temas para as aulas conferem a posição de sujeitos do fazer pedagógico, tendo em vista que suas vozes foram consideradas na construção do conceito de saúde e no planejamento dos momentos seguintes.

A professora relatou que o diálogo foi uma constante nas demais aulas e contou com a participação de profissionais de diferentes áreas, a partir dos temas sugeridos pelos/as estudantes. Sobre isso, a professora declarou:

A gente pensou em trazer convidados, que é uma forma de chamar atenção dos alunos para as aulas, porque você trazendo pessoas de fora… eles ficam mais interessados em assistir a aula, em ver como é, porque principalmente trazendo profissionais sobre o tema, né? Então eles fazem muitas perguntas e… interagem ali com aquele profissional.

Essa fala revela a preocupação com o exercício do diálogo, um dos fundamentos do aprender a conviver, segundo Jares (2008). Nesse sentido, a professora afirma:

Nas aulas de NTPPS, os alunos são muito participativos, eles perguntam bastante, falam, falam… conversam, falam experiências de vida, então assim, são alunos que às vezes a gente nem vê falando muito em sala, mas quando a gente começa a falar experiência de vida eles compartilham com os colegas.

O relato acima descreve um cenário em que os/as estudantes se sentem à vontade para participar numa ambiência democrática, pois como “são sujeitos que trazem consigo vontades e experiências” (Matos, 2003, p. 98), a valorização de suas histórias de vida promove o diálogo e a identificação entre pares.

Dentre as temáticas abordadas na experiência em questão, destaca-se uma sobre a diversidade de gênero que faz parte dos planos de aula originais. Ela foi eleita pelos/as alunos/as para compor essa dinâmica de debates com profissionais. Para essa ocasião, contaram com a presença de uma professora universitária. A professora Ellem Quirino também relatou que os/as estudantes solicitaram um debate sobre racismo, que contou com a presença de um estudante de Direito. A compreensão dos papéis de gênero e das questões étnico-raciais é importante no processo de autoconhecimento e de aprendizagem da convivência. Ao conhecer mais sobre os temas em questão, os sujeitos conhecem mais a si mesmos/as, assim como aprendem a respeitar as diversidades. Isso influi diretamente no aprender a conviver consigo e com o outro em seu entorno. A professora concluiu sua fala ressaltando novamente o caráter interativo dessas aulas.

Esses temas, a gente trazendo, eles perguntavam muito, questionavam muito e tinha também ainda a questão de que eram muitos alunos que a gente nem via falando, muitos alunos tímidos que não tinham coragem de falar e eles perguntavam, conversavam bastante na hora das aulas, interagindo, contanto experiências de vida, então assim, foi uma experiência maravilhosa.

O estudante Caíque Rodrigues iniciou sua fala apresentando-se como aluno da referida professora e como secretário geral do Grêmio Estudantil. Afirmou que ali representava os/as estudantes da escola; sobre o NTPPS, declarou:

As aulas de NTPPS são apresentadas pra nós alunos como mais dinâmica do que teórica, já que nelas a gente faz brincadeiras, a gente conversa, a gente cria o diálogo entre nós, a gente não fica tanto preso em algum tema sozinho, a gente procura abordar temas do nosso próprio interesse.

As aulas se basearam nos planos originais, adaptadas ao ensino remoto, a partir da escolha de temáticas específicas eleitas pelos/as discentes, inclusive a docente ressaltou que também tratavam sobre assuntos como: ansiedade, depressão e suicídio. Nesses casos, os/as estudantes tiveram o suporte de uma psicóloga. O estudante Caíque continuou sua fala declarando que

nessas aulas a gente teve muita participação de alunos, que nem sequer apareciam nas aulas, que não ligavam a câmera, que não falavam nada. Eu entendo eles por causa que isso tem que depender muito duma força nossa, por causa que não é tão confortável você tá no seu ambiente de conforto e você ter que ligar a câmera para mostrar seu rosto, pra falar com alguma pessoa que tá longe, a quilômetros de distância de você, que ela não sabe o que você tá passando. É… o fato da aula conseguirem trazer esses alunos pra escola novamente, pra terem essas aulas, essa participação, esse engajamento novamente, pras aulas aumentarem, pra participação dos alunos aumentarem é muito boa.

Esse relato chama a atenção para três elementos que vêm se mostrando fundamentais à construção dessa ambiência de interação e engajamento: o autoconhecimento, a aprendizagem da convivência e a assunção do/a jovem como sujeito do fazer pedagógico. No que concerne ao processo de autoconhecimento, a fala do/a jovem deixa transparecer que o ato de ligar a câmera exige a superação quanto a desafios individuais, que foram dirimidos durante essas aulas devido, principalmente, à apresentação dos temas. Isso, de fato, garantiu um maior engajamento com a turma, que se deu após ouvirem os temas de seu interesse. Conseguiram, inclusive, superar algumas barreiras, como a timidez. Houve crescimento individual e coletivo nessa turma. Ou seja, o conhecimento dialogado, com significado, e o respeito com as solicitações discentes provocaram transformações como seres humanos, que podem usar o conhecimento para o bem social (Boff, 2006).

Quanto à aprendizagem da convivência, essa fala destaca, mais uma vez, a presença constante do diálogo. O/a estudante como sujeito se observa novamente pelo espaço construído de abertura para cada um/a se manifestar e compartilhar suas visões. O aluno Caíque prosseguiu seu relato afirmando que,

ultimamente, na quarentena as pessoas com estresse aumentaram muito, e muitos adolescentes, assim como eu, também têm passado por coisas que a gente não entende. As aulas de NTPPS ofereceram esses temas que também abordam a gente mesmo [...] porque ali você pode se abrir, já que é um ambiente seguro, simplesmente só pra você, ninguém vai te julgar [...] isso que as aulas permitem à gente é algo bem inovador.

Esse caráter inovador, como observa o próprio aluno, pode ser um exemplo para outras aulas, respeitando as demandas discentes. Ele ressalta:

a gente precisa ter um espaço só pra nós… a gente é adolescente, a gente quer simplesmente ter voz, e como não consegue, a gente se sente meio frustrado, e as aulas de NTPPS nos proporcionam isso. Elas nos dão voz.

O estudante encerrou sua fala com essa declaração centrada no signo da voz, algo próprio de quem ocupa o lugar de sujeito. Só usa a voz quem tem algo a dizer e se há alguém para ouvir. Pode ser o próprio ser num processo de autoconhecimento ao refletir sobre a sua vida ou suas emoções em um ambiente de diálogo sobre temáticas diversas.

Diante das falas analisadas, podemos concluir que as aulas de NTPPS possuem grande potencial de promoção de interações entre sujeitos escolares e de engajamento no fazer pedagógico, inclusive em um contexto de ensino remoto. Mesmo durante esse período de distanciamento social, a unidade curricular oportunizou espaços de escuta, diálogos, autoconhecimento e aprendizagem da convivência. Os discentes atuaram como sujeitos em todo o processo de uma nova forma de ensinar e aprender, em que a impermanência se mostrou totalmente visível e presente nas vidas das pessoas.

Conclusão

As atividades de NTPPS contribuem para as dimensões do aprender a ser e do viver juntos, possibilitando um processo de autodescoberta e de descoberta do/a outro/a. Isso se dá devido aos temas transversais abordados e à ambiência de diálogo que se constrói durante as aulas, permitindo um maior engajamento entre os sujeitos envolvidos no fazer pedagógico.

O presente estudo investigou aspectos do NTPPS durante o ensino remoto de 2020, no que se refere à interação e ao engajamento entre estudantes e professores/as durante o período de distanciamento social, em decorrência da pandemia da covid-19.

A análise dos depoimentos da professora e do estudante permite vislumbrar que as aulas de NTPPS se mostraram fundamentais para construir e manter ativos os vínculos entre os sujeitos escolares, sobretudo entre os/as estudantes que se mantiveram engajados, mesmo em meio a um contexto atípico. Isso se observa pela presença de alguns elementos, nessas aulas: o processo de autoconhecimento, a aprendizagem da convivência e a valorização dos/as estudantes como sujeitos da prática pedagógica.

No que se refere ao autoconhecimento, os depoimentos da professora e do estudante descrevem uma boa participação nas aulas, tratando de reflexões sobre a própria vida, suas emoções e o mundo particular de cada um/a. Considerando que o diálogo consigo mesmo prenuncia um caminho de transformação, na visão da espiritualidade de Boff (2006), é possível perceber esse ‘transformar-se’ quando as falas narram o processo do silêncio até a abertura das câmeras e à interação ativa na aula online.

A aprendizagem da convivência se manteve viva com o exercício do diálogo e a abordagem de temas voltados à diversidade, como identidade de gênero e racismo que, segundo Jares (2008), são fundamentais no aprender a conviver. Porém, nenhuma proposta de atividade escolar promove engajamento sem a concepção dos/as jovens como sujeitos. Nesse sentido, os relatos apontam para um processo participativo, em que os/as estudantes puderam não só ter direito à voz na construção dos conhecimentos em sala de aula, por meio da realização de debates, como também puderam opinar sobre os temas que seriam priorizados, dentre os disponíveis nos planos de aula do ensino presencial, contribuindo assim com o próprio planejamento.

Dessa forma, o NTPPS tem contribuído com a construção e a manutenção dos vínculos entre os sujeitos escolares e a escola, tanto no ensino presencial como no remoto, por trabalhar as dimensões do aprender a ser e a viver juntos. Como mencionado anteriormente, essas dimensões ganham cada vez mais destaque na realidade de muitos espaços educacionais.

A importância dessas dimensões no fazer educativo escolar é evidenciada, quando há o engajamento dos/as estudantes que trazem consigo inúmeros desafios de ordem social, pessoal, econômica e metodológica para participarem das aulas remotas, como apontam Maia et al. (2020). 

Foram muitos desafios vivenciados no ensino remoto, tanto para docentes quanto para jovens discentes que, se possuíssem celular, muitas vezes não conseguiam sequer ligar suas câmeras e participar das aulas. Portanto, as aulas de NTPPS, procuraram acolher os/as jovens estudantes e inclui-los/as das mais diversas formas.

Esta análise motiva investigações posteriores quanto às possibilidades de a escola promover uma ambiência de interação entre docentes e discentes no sentido de analisar como as abordagens do aprender a ser e do aprender a viver juntos contribuem para a construção dos vínculos desses sujeitos com a escola. Contudo, a educação desse século certamente assumirá uma nova “face” e revelará de que forma o período de estudos remotos interferiu na concepção e na prática pedagógica brasileira e mundial, bem como se os saberes serão considerados essenciais para o fazer educacional de hoje em diante.

Referências

ALMEIDA, Rogério de. Covid-19, o nascimento de um novo século e os laboratórios sociais. Jornal da USP, 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/covid-19-o-nascimento-de-um-novo-seculo-e-os-laboratorios-sociais/. Acesso em: 24 ago. 2021.

BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC/SEB/Dicei, 2013.

BRASIL. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Brasília, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 24 ago. 2021.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 24 ago. 2021.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC, 2000. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf. Acesso em: 24 ago. 2021.

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Publicado em 07 de maio de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

BRAGA, Adriana Eufrásio; FREITAS, Anna Cecília Cavalcante; MATOS, Kelma Socorro Lopes de. O Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais: interações entre os sujeitos escolares e o seu engajamento no ensino remoto. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 15, 7 de maio de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/15/o-nucleo-de-trabalho-pesquisa-e-praticas-sociais-interacoes-entre-os-sujeitos-escolares-e-o-seu-engajamento-no-ensino-remoto

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