Escritores do Futuro: aprendizagem da leitura e da escrita pela prática para mitigar defasagens na aprendizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental

Raianne Coelho da Silva Carneiro

Professora, pós-graduada em Letras-Libras (Unesa)

Luana Cristina Farnesi

Doutora em Ciências (Fiocruz)

Quando fazemos uma análise histórica do nosso sistema público de ensino, é possível perceber que esse sistema tem fundamentação didática na estrutura clássica da educação bancária. Tal educação tem a transmissão unidirecional do conhecimento como base, utilizando os livros didáticos para extração dos conhecimentos por meio do qual, de maneira transferencial, o professor passa conhecimentos ao aluno. O professor soberano, em seu conhecimento, verticaliza a relação de comunicação no papel de emissor e o aluno é o receptor. Ademais, o código é o conteúdo do livro e o canal de comunicação é representado pela escola (Costa; Batista, 2017; Freire, 1974). É verdade que nas últimas décadas pensou-se sobre essas práticas e a escola tem reavaliado crítica e analiticamente várias práticas educacionais tradicinais. A projeção do educando como o ator da construção do seu próprio conhecimento, estimula a reflexão tão necessária sobre a dualidade entre a educação clássica e a educação reflexiva problematizadora (Libâneo, 2012). Implementar uma educação dialógica nas salas de aulas das escolas públicas é um desafio. Este relato de experiência vem elucidar possibilidades de praticar a educação dialógica nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Observando o cenário educacional do pós-pandemia da covid-19, as mazelas da defasagem no aprendizado vão desde os anos iniciais até o Ensino Médio, ou seja, em quase todos os extratos sociais assistidos pela educação pública. Serão necessários anos de pesquisa para a compreensão desse grave impacto na educação do país. A taxa de abstenção de 55,3% no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020 pode ser considerada um termômetro sobre o impacto da pandemia na educação brasileira. Diante desse cenário, pensando em maximizar a aprendizagem e minimizar a defasagem escolar, criou-se o projeto Escritores do Futuro.

Acreditar na aprendizagem da leitura e da escrita pela prática é levar para dentro da escola a variedade textual existente fora dela. O desafio de criar, incentiva os alunos a interagirem entre si e, com textos simples, porém autênticos, enfrentam a escrita com naturalidade, tendo oportunidade de experimentá-la em sua complexidade e de se desenvolver cognitivamente, testando e reelaborando suas hipóteses em relação ao funcionamento da língua. A dificuldade ou o erro serão vistos como oportunidades para aprender. As atividades em grupo são uma excelente opção para estimular a empatia, a capacidade de liderança e a gestão democrática. Além de estimular a comunicação no âmbito das relações sociais, favorecendo à resolução de conflitos, com respeito e tolerância a aspectos relevantes do processo de ensino-aprendizagem.

O presente trabalho teve os seguintes objetivos: permitir aos alunos vivenciar, desde os anos iniciais do Ensino Fundamental, os usos sociais que se fazem pela escrita, as características dos diferentes gêneros textuais, a linguagem adequada a diferentes contextos comunicativos, além do sistema pelo qual a língua é grafada pelo sistema alfabético, promovendo a autonomia e o protagonismo dos estudantes, além de lhes permitir a compreensão da importância da leitura, desenvolvendo neles habilidades e o incentivo para a construção de livros, a fim de que percebam o próprio desempenho, individual e coletivo, no processo de ensino-aprendizagem, comparando suas trajetórias ao longo do ano letivo. Este relato conta a experiência vivenciada entre os anos de 2021 e 2023, em um projeto focado no letramento e na alfabetização de crianças de uma turma acompanhada desde o 1º ano até o 3º ano do Ensino Fundamental. Aqui, mostra-se uma possibilidade de realizar um trabalho voltado para a autonomia e o protagonismo infantil que apresenta bons resultados na aprendizagem e no desenvolvimento das crianças. Acreditamos que este trabalho vai ao encontro do que Paulo Freire e Magda Soares defendem: a Educação como prática de autonomia e liberdade para os educandos.

De acordo com essess renomados autores, acreditar no aprendizado pela prática é levar para dentro da escola a variedade textual existente fora dela, abrindo aos alunos as portas do mundo letrado.

A alfabetização – o saber codificar e decodificar, o domínio das “primeiras letras”, segundo a definição do dicionário Houaiss – não é mais suficiente. A sociedade atual, extremamente grafocêntrica, isto é, centrada na escrita, exige também o saber utilizar a linguagem escrita nas situações em que esta é necessária, lendo e produzindo textos com competência (Soares; Batista, 2005, p. 50).

Como afirmam Soares e Batista (2005), a língua escrita é complexa, por isso ela deve ser oferecida de forma funcional, ou seja, o professor deve mostrar, com situações práticas, os diversos usos da escrita e a importância de se aprender a escrever no dia a dia. O desafio de criar incentiva os alunos a interagirem entre si e, com textos simples, porém autênticos, enfrentam a escrita com naturalidade, tendo a oportunidade de experimentá-la em sua complexidade e de se desenvolverem cognitivamente, testando e reelaborando suas hipóteses em relação ao funcionamento da língua.

De acordo com a teoria piagetiana, a dificuldade ou o erro são vistos como oportunidades para aprender, portanto essenciais ao processo educativo. As atividades em grupo são uma excelente opção para estimular a empatia, a capacidade de liderança e a gestão democrática, já que de acordo com a teoria sociointeracionista de Vygosky a construção do conhecimento ocorre primeiro no plano externo e social (com outras pessoas) para depois ocorrer no plano interno e individual. O professor possui o importante papel de mediador nesse processo, trazendo avaliações formativas que vão além do teste e da prova, olhando para o aluno integralmente, avaliando também a sua prática durante o percurso.

Visando seguir esses conceitos, durante o período de 2021 até 2023, a professora regente elaborou e colocou em prática o projeto Escritores do Futuro, pautado no questionamento de “O que o seu aluno lê?”. De acordo com Madga Soares e Antônio Batista, não basta só o aluno saber as palavras a serem lidas (Soares; Batista, 2005), pois o letramento precisa ocorrer concomitantemente à alfabetização. Dentre as diferenças entre alfabetizar e letrar, ela cita:

Uma pessoa pode ser alfabetizada e não ser letrada: sabe ler e escrever, mas não cultiva nem exerce práticas de leitura e de escrita, não lê livros, jornais, revistas, ou não é capaz de interpretar um texto lido; tem dificuldades para escrever uma carta, até um telegrama é alfabetizada, mas não letrada (Soares; Batista, 2005, p. 51).

Ao iniciar o ano letivo de 2021, a profssora regente criou um portfólio de produção de gêneros textuais em pastas grampo plásticas. Cada aluno ganhou a sua pasta de produções de texto e, a cada semana, foi apresentado um gênero textual diferente, começando com textos de pequena complexidade (lista, tirinhas, bilhete…) para textos mais elaborados, sempre explicando quais eram as características e finalidades daquele gênero textual a ser aprendido durante a semana. Essa prática avaliativa é muito importante, pois proporciona um diário com informações sobre o desenvolvimento escolar das crianças. Com ele é possível avaliar, de maneira concreta, o processo de ensino-aprendizagem, sobretudo no que se refere à participação dos alunos em sala de aula. É notório que o portfólio escolar se tornou uma importante ferramenta de acompanhamento pedagógico dos alunos.

O portfólio é uma testemunha da ação pedagógica, o registro de como o trabalho ocorreu, a memória de uma mesma proposta desenvolvida em diferentes momentos. A utilização dessa forma de documentação envolve interpretações das dimensões pedagógica e psicológica. Pedagógica porque o portfólio surge como um objeto fundamental de ensino, da valorização da reflexão e da ação do aluno. Psicológica porque mostra um pouco da personalidade de cada aluno, da sua forma de ser e de pensar. Através dessa documentação o professor pode compreender alguns anseios, algumas dificuldades e as conquistas de cada aluno (Smole, 1996, p. 186).

Figura 1: Registro de atividades do portfólio de gêneros textuais do ano letivo de 2021

Outro benefício da prática é o de poder conhecer as competências dos alunos, documentar seu processo e avaliar suas produções, com base nos registros feitos pelos alunos, direcionando as ações pedagógicas, repensando estratégias em sala de aula e reforçando os conteúdos necessários utilizando estratégias diversas.

Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática (Freire, 2019, p. 40).

Ao fim de cada bimestre era mostrado o portfólio dos alunos junto à avaliação individualizada de cada um na qual estavam todas as habilidades trabalhadas, o que o aluno alcançou, alcançou parcialmente ou não alcançou durante o período citado. Esse documento ficava dentro do portfólio e uma cópia era entregue aos pais nas reuniões bimestrais. Dessa maneira, os registros tiveram um papel muito importante na ligação entre a escola e a família, pois os responsáveis podiam ver o desempenho e a evolução de seus filhos, fazer perguntas pontuais sobre os objetivos que foram traçados durante o bimestre, podendo entender melhor a forma de trabalho.

Figura 2: Ficha de avaliação individual bimestral incluída no portfólio

Ao final do 1º e do 2º semestres, desenvolveu-se uma importante atividade de produção de texto coletiva realizada para avaliação do comportamento coletivo dos alunos, visando o desenvolvimento integral do aluno, de acordo com as Competências Gerais da Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018). Elas preparam o aluno não só para as próximas séries, mas forma o seu lado socioemocional. Dentre as competências trabalhadas, destacam-se:

  1. pensamento científico, crítico e criativo;
  2. comunicação;
  3. argumentação;
  4. empatia e cooperação; e
  5. responsabilidade e cidadania.

Tais competências são primordiais para a convivência em sociedade.

Figura 3: Quadro com a formação das equipes

Após a análise dos portfólios, foi possível compreender que existem diferenças nos níveis de aprendizagem de escrita e leitura. Assim, a professora regente estrategicamente definiu os “líderes” de cada grupo. A turma foi dividida em cinco grupos e cada líder teve a autonomia para definir sua equipe de escritores, um por vez, até que todas as crianças, presentes ou não, tivessem um grupo. Importante ressaltar que nessa prática, todos os alunos atípicos também foram incluídos nas equipes. Uma tabela foi desenhada (Figura 3), com o nome de cada representante (a escolha dos líderes era feita de acordo com o nível de leitura e escrita) e, conforme os componentes eram selecionados, a turma conseguia visualizar os nomes que já haviam sido escolhidos. A sala foi organizada de forma diversificada, com cada integrante interagindo com o seu grupo designado. A regente se sentava com as equipes e as ouvia mediando o processo.

Figura 4: Registro de momentos de mediação

Enquanto os outros grupos pensavam entre si, em semicírculo, a regente se sentava com cada equipe, uma por vez, para mediar a escolha do título, as personagens principais, o enredo, o tempo e o espaço. O grupo elegeu um aluno para escrever no papel a história que eles foram criando juntos. A função da regente nessa etapa foi de esclarecer possíveis dúvidas em relação à ortografia e à gramática, não opinando na história em si. Após a finalização do enredo das histórias de todas as equipes, a história foi fragmentada e escrita à mão pelo aluno escriba de cada grupo, utilizando folha A4 branca.

Os alunos escolheram entre si, leram e interpretaram o pedaço da história que iriam desenhar e pintar, mediados pelo líder escolhido. O papel da professora nessa etapa foi o de observar o andamento do trabalho, revisando se o que era desenhado estava de acordo com o que estava escrito na folha de papel A4. Caso não estivesse, ela pedia para o aluno reler com alguém de seu grupo, se necessário, a fim de achar o erro e realizar os reparos em outra folha. Foi entregue uma cartolina branca para o desenho da capa e da contracapa (Figura 5). Nesse momento, o papel desempenhado foi observar o andamento do trabalho, apontando questões de comportamento e participação, bem como de revisar a atividade.

Figura 5: Mediação para a confecção dos cartazes

Ao finalizar toda estrutura da história, organizamos, grampeamos e fixamos o trabalho em forma de livro. Cada equipe apresentou os trabalhos, depois de prontos, para os colegas dos outros grupos e para outras turmas do colégio.

Em turma,os membros do grupo se autoanalisaram por participação na proposta desenvolvida. Nessa etapa, a intenção foi a de oferecer a oportunidade de debates e mediações possíveis dos conflitos, deixando as equipes explicarem a função que cada componente exerce e se essas funções foram cumpridas com êxito aos olhos dos outros participantes. Foi muito rico o debate com os alunos.

Considerações finais

Diante do cenário atual, em que se espera um forte impacto da pandemia na educação, principalmente para os alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, devido a possibilidade de ir à escola lhes ser retirada por cerca de dois anos, é de suma importância o desenvolvimento de estratégias de curto, médio e longo prazos para diminuir tal impacto. Acreditamos que o letramento nos anos iniciais pode se dar por estimulação da escrita de diferentes gêneros textuais, fazendo com que o conhecimento teórico possa vir por construções coletivas, contribuindo para a sua autonomia e protagonismo. As atividades desenvolvidas encorajam o aprendizado centrado no educando e se aperfeiçoam por eles próprios, pelos professores e pela família ao longo do processo de ensino. Acreditamos que os exercícios conduzem o educando a refletir sobre as suas experiências, possibilitando a definição de objetivos para o seu aprendizado.

O trabalho com o portfólio de gêneros textuais, as fichas de avaliação individual e as produções de livros ajudaram os alunos a avaliarem seu próprio desempenho na consolidação do caminho de aprendizagem. O desenvolvimento do projeto contribuiu significativamente à formação docente, de modo que o professor pode rever o seu trabalho pedagógico, partindo das habilidades que o aluno já possui, dando maior enfoque nas habilidades que necessitam de maior atenção, alinhando a rota de acordo com o perfil da turma e traçando novas metas à sua prática docente, durante o percurso, não somente quando o ano acaba.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.

COSTA, Gilmara Ribeiro; BATISTA, Keila Moreira. A importância das atividades práticas nas aulas de Ciências nas turmas do Ensino Fundamental. Revasf, Petrolina, v. 7, n° 12, p. 6-20, abril de 2017.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. 45ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 60ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

LIBÂNEO, José Carlos. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e Pesquisa, v. 1, n° 38, p. 13-28, março, 2012.

SMOLE, K. C. S. A Matemática na Educação Infantil: a teoria das inteligências múltiplas na prática escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

SOARES, Magda; BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Alfabetização e letramento: caderno do professor. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. (Coleção Alfabetização e Letramento).

Publicado em 23 de janeiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

CARNEIRO, Raianne Coelho da Silva; FARNESI, Luana Cristina. Escritores do Futuro: aprendizagem da leitura e da escrita pela prática, como ferramenta para mitigar defasagens na aprendizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 2, 23 de janeiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/1/escritores-do-futuro-aprendizagem-da-leitura-e-da-escrita-pela-pratica-para-mitigar-defasagens-na-aprendizagem-nos-anos-iniciais-do-ensino-fundamental

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