Docências extraordinárias: memórias de Paulo Freire sobre a professora Eunice Vasconcelos

Josélia Gomes Neves

Doutora em Educação Escolar (Unesp), docente do Departamento de Educação Intercultural (Deinter) e do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNIR, líder do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA), coordenadora da Linha de Pesquisa Alfabetização & Cultura Escrita

A produção de escritas de si, além de constituir uma importante possibilidade de conhecimento de diferentes percursos educativos construídos em tempos e espaços diversos, com potencial para a reflexão pedagógica, significa um mecanismo de humanização por valorizar os saberes pessoais e suas interfaces com os saberes sociais.

Significa dizer que os textos biográficos podem possibilitar aprendizagens reflexivas na medida em que favorecem o conhecimento de determinados aspectos sociais e educacionais, situados em temporalidades e espaços distintos. Esses materiais, pelas características narrativas que apresentam, possibilitam um processo de leitura prazerosa e formativa. Em decorrência disso, eles representam uma fonte de saberes para a História da Educação, considerando-se que esse potencial memorialístico nos aproxima de múltiplos modos de ensinar e aprender na escola em determinada temporalidade histórica.

Nessa perspectiva, uma questão importante tem se delineado a partir da reflexão sobre aprendizagem e memória, evidenciada na relação discência/docência em textos biográficos de educadores ou educadoras: quais são as marcas que caracterizam o exercício de certas docências consideradas extraordinárias? Nessa perspectiva, o texto em tela foi sistematizado com o objetivo de apresentar um ensaio a respeito das memórias do educador Paulo Freire, a respeito das características marcantes da professora Eunice Vasconcelos no âmbito de sua alfabetização.

A metodologia adotada no presente estudo foi a pesquisa bibliográfica em interface com a pesquisa (auto)biográfica. Esse procedimento propicia a ampliação da compreensão das trajetórias pessoais, na medida em que viabiliza o ato de “estudar como os indivíduos dão forma às suas experiências e sentido ao que antes não tinham, como constroem a consciência histórica de si e de suas aprendizagens nos territórios que habitam e são por eles habitados” (Passeggi; Souza; Vicenrini, 2011, p. 371), estabelecendo, desse modo, dialogias entre os saberes individuais e os saberes sociais.

A leitura dos escritos freireanos permite afirmar que a reflexão, a partir das memórias, foi um recurso presente em muito de seus trabalhos (Freire, 1989; 1992; 1994; 2020). O exercício do exame das vivências pessoais, além de representar uma possibilidade a mais de pensar as múltiplas facetas dos processos formativos, constituiu uma marca importante na produção do educador, na medida em que, partindo dos saberes da experiência, ele popularizou esse modelo de registro também pessoal como valorização da condição humana.

A discussão sobre os professores e as professoras inesquecíveis que de algum modo marcaram de forma construtiva nossas trajetórias de vida e de formação, tem sido objeto de atenção da Didática no que se refere às relações entre docência e discência. Talvez, por considerar que a memória do ontem pode repercutir no hoje, “no curso atual das representações” (Bergson, 2010, p. 168). Constitui uma interessante oportunidade educativa, na medida em que possibilita a escrita e a socialização de memoriais estudantis, além de disponibilizar elementos de interesse da História da Educação a partir das vivências dos sujeitos.

Aprendizagens e biografias – possibilidades para o fazer formativo

Os indivíduos são sujeitos históricos e não apenas atores sociais [...] é preciso incorporar à análise histórica a ideia de que para compreender o que a escola realizou no seu passado, não é suficiente estudar ideias, discursos, programas, papéis sociais nela desempenhados, suas práticas e métodos de trabalho (Souza, 2000, p. 51-52).

O gênero biográfico ou autobiográfico tem atraído cada vez mais um público específico, basta observar o espaço que os livros que trazem a temática ocupam nas livrarias. Em algumas situações, o interesse é para conhecer melhor determinada celebridade, artista, político, educador(a), cientista, que admiramos. De algum modo, buscamos nesses registros “um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos. Momentos desse mundo podem ser compreendidos por quem não os viveu” (Bosi, 1994, p. 82). Ou talvez, procuramos nesse tipo de texto alguma resposta ou explicação, tendo em vista que um tema complexo de algum modo mobiliza nossa atenção naquele momento: a morte de um filho, o advento de um sequestro, um segundo casamento ou mesmo o recebimento de uma herança, dentre outros.

Em outras ocasiões, a preferência pelo gênero, pode ter sido propiciada pelo contexto escolar, quando uma professora ou um professor, apreciador de histórias de vida, nos indicou a leitura do Diário de Anne Frank (2019), por exemplo, ou de Quarto de Despejo: diário de uma favelada, de Carolina de Jesus (2020). Além da literatura, o cinema contribui com a discussão ao favorecer, em outra linguagem, aproximações com o modo de ver e viver de pessoas anônimas ou conhecidas, determinadas especificidades da condição humana que nos fazem pensar.

Assim, além de se constituir como uma leitura mobilizadora de sentimentos, o contato com textos biográficos propicia um conjunto de elementos importantes para a reflexão educacional, na medida em que disponibiliza informações sobre sujeitos, culturas, concepções de aprendizagem em determinados espaços e tempos, confirmando que

a memória é um dos objetos da história que cada vez mais tem atraído a atenção dos historiadores. Assim, muitas pesquisas no campo da História da Educação vêm procurando compreender o que acontecia no interior da escola, recorrendo a esse tipo de fontes. Neste sentido, as autobiografias, as escritas nas quais os sujeitos falam de si, lembrando suas experiências de escola, têm despertado o interesse de muitos historiadores da educação. Esses estudos têm revelado a importância dessas fontes para a compreensão dos processos escolares (Silva, 2019, p. 31).

Significa dizer que os textos autobiográficos podem expressar muito mais do que imaginamos, porque o exercício de escrever, em si mesmo, já constitui um processo educativo: “os estudos autobiográficos contribuem para nos aproximarmos da escrita como formação” (Camargo, 2010, p. 28). Um contexto que articula as interfaces escrita e leitura, como algo referente a um objeto específico, nos faz lembrar da metáfora da moeda e suas duas faces indissociáveis.

No entanto, a percepção de que os textos autobiográficos podem contribuir para as perspectivas históricas é recente, porque por muito tempo esses materiais não eram considerados relevantes. Na atualidade, há o reconhecimento da “necessidade de desenvolver os métodos de uma história a partir de textos até então desprezados – textos literários ou de arquivos que atestam humildes realidades cotidianas – os ‘etnotextos’” (Le Goff, 1990, p. 46). Essa virada histórica que possibilitou a revisão das fontes documentais veio com a Nova História Cultural, concepção que sustenta que as trajetórias humanas, individuais e coletivas e “tem um passado que pode em princípio ser reconstruído e relacionado ao restante do passado” (Burke, 1992, p. 11). Em síntese, todos e todas temos o direito de contar nossas histórias.

A leitura do gênero textual autobiográfico pode possibilitar experiências outras, na medida em que oportuniza a construção do conhecimento a partir de múltiplas fontes, pois: “conhecer uma versão desta história, diferente daquela que, ao privilegiar crônicas jornalísticas e documentos oficiais da época, tem desprezado preciosos testemunhos daqueles que viveram uma experiência que modificou seus destinos” (Mignot, 2017, p. 264). Dentre essas, os relatos sobre docências extraordinárias que de algum modo contribuíram com nosso modo de ser e atuar na educação, pois

o professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum desses passa pelos alunos sem deixar sua marca (Freire, 1996, p. 39).

A articulação entre a biografia e as aprendizagens são importantes recursos para a reflexão das práticas pedagógicas do passado e da contemporaneidade nos processos de formação docente. Assim, ao propiciar leituras de textos biográficos em cursos de preparação de professores e professoras, além de possibilitar o conhecimento do gênero textual, favorece o conhecimento dos aspectos educacionais presentes naquela narrativa, elemento importante para o próximo passo: escrever a sua própria história.

Aprendizagens e biografias do educador Paulo Freire

A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia - e até onde não sou traído pela memória - me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. [...]. A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço [...], o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras (Freire, 1989, p. 9).

As memórias operam como importantes desencadeadores de lembranças e nesse contexto se presentificam no ambiente escolar, no tempo da alfabetização. Reconhecemos que no decorrer do processo, há complexas relações entre o pessoal e o social. A esse respeito, a canção Meus tempos de criança, de Ataulfo Alves (1967), representa uma ilustração que favorece a reflexão sobre o assunto. São escritos produzidos por um adulto que narra um passado de aprendizagens no início da escolarização, traduzidos em sentimentos de nostalgia e gratidão: "Que saudade da professorinha que me ensinou o beabá...".

Esses registros confirmam que “os escritos autobiográficos permitem que a história da educação inclua em seus discursos também a voz dos sujeitos que se constituíram atores educacionais, e que, portanto, têm muito a nos dizer sobre os processos educativos dos quais fizeram parte” (Silva, 2019, p. 36).

A música, produzida nos anos sessenta, sinaliza representações dos tempos, como “esquemas intelectuais incorporados que criam figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro torna-se inteligível e o espaço a ser decifrado” (Chartier, 1990, p. 17), fornecendo pistas que as práticas sociais dialogam com as vivências escolares. Ela expressa lembranças de infância - a amorosidade, a gratidão do cantor de Minas Gerais por uma docente que foi importante em seu processo de alfabetização.

Significa afirmar que as docências consideradas extraordinárias podem influenciar no processo educativo e a profissionalidade na área educacional. A esse respeito recorremos às memórias de Paulo Freire que, assim como Ataulfo Alves, registrou notas da memória de uma professora que marcou a sua trajetória formativa no começo da escolarização: "A primeira presença em meu aprendizado escolar que me causou impacto, e causa até hoje, foi uma jovem professorinha. [...] uso esse termo, professorinha, com muito afeto. Chamava-se Eunice Vasconcelos (1909-1977)" (Freire, 1994, p. 58).

Inicialmente, o registro dessa memória foi mobilizado em uma conferência realizada no Congresso Brasileiro de Leitura (Cole), ocorrido em Campinas (em novembro de 1981); posteriormente ele a publicou em livro, A importância do ato de ler (Freire, 1989). Foi nessa ocasião que o educador pernambucano discutiu a leitura a partir de sua experiência durante o processo de aquisição da língua escrita, iniciado em casa e continuado na escola com elementos de seu mundo:

ao chegar à escolinha particular de Eunice Vasconcelos, [...] já estava alfabetizado. Eunice continuou e aprofundou o trabalho de meus pais. Com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a "leitura" do mundo. Com ela, a leitura da palavra foi a leitura da “palavramundo” (Freire, 1989, p. 11).

Depois, a produção dessa memória-homenagem foi publicada em dezembro de 1994 pela revista Nova Escola. Um registro que mobiliza lembranças de infância envolvendo proximidades entre o contexto escolar e o ambiente familiar. "A minha alegria de viver, que me marca até hoje, se transferia de casa para a escola, ainda que cada uma tivesse suas características especiais. Isso porque a escola de Eunice não me amedrontava, não tolhia minha curiosidade" (Freire, 1994, p. 58).

Figura 1: Homenagem de Paulo Freire a Eunice Vasconcelos

Fonte: Revista Nova Escola, 1994.

No memorial da professora inesquecível de Paulo Freire, reitera-se que o educador já sabia ler e escrever quando foi matriculado na escolinha particular da docente Eunice Vasconcelos, evidência explicada na atualidade pelos estudos construtivistas em alfabetização. “Eu já sabia ler e escrever quando cheguei à escolinha particular de Eunice, aos seis anos. Era a década de 20. Eu havia sido alfabetizado em casa, por minha mãe e meu pai” (Freire, 1994, p. 58).

De acordo com as pesquisas da psicogênese da língua escrita, existem crianças que já chegam à escola com muitos saberes a respeito do funcionamento do sistema de escrita, porque convivem em ambientes em que pessoas próximas, fazem uso contínuo da leitura e da escrita. Em decorrência disso, conseguem concluir as aprendizagens iniciais de ler e escrever na escola com certa tranquilidade. Entretanto, há outras situações adversas em que meninos e meninas das camadas populares, cujas famílias possuem pouco contato com a cultura escrita, apresentam uma dependência maior da instituição escolar no processo de aquisição da língua escrita (Ferreiro; Teberosky, 1999).

Outra característica presente nos escritos freireanos é a relação educação e sociedade. Nesse sentido, Paulo Freire contextualiza o período de seu ingresso na escola como uma temporalidade social, marcada por grave crise, que produziu privações financeiras atingindo em cheio um expressivo número de famílias brasileiras. Apesar dessa situação, relembrava que o tempo em que aprendeu a ler e a escrever, sob a mediação dos seus pais, havia uma profunda relação entre os saberes formais e sua realidade, estratégia que possivelmente sua professora deu continuidade no contexto escolar.

Minha alfabetização não me foi nada enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha experiência, escritas com gravetos no chão de terra do quintal. Não houve ruptura alguma entre o novo mundo que era a escolinha de Eunice e o mundo das minhas primeiras experiências - o de minha velha casa do Recife, onde nasci, com suas salas, seu terraço, seu quintal cheio de árvores frondosas (Freire, 1994, p. 58).

Os entrelaçamentos entre a realidade do menino pernambucano e a escola, repercutiram posteriormente nas reflexões do educador: "Por que não estabelecer uma necessária 'intimidade' entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos?" (Freire, 1996, p. 17). Uma reflexão que valida as aprendizagens significativas na atualidade.

Outra marca percebida na atuação pedagógica da jovem professora Eunice Vasconcelos foi o trabalho desenvolvido na área de linguagem e que de algum modo influenciou Paulo Freire na docência. Durante certo tempo, ele foi professor de Língua Portuguesa:

Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos. Sem que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma indiscutível amorosidade que eu tenho hoje, e desde há muito tempo, pelos problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira, a chamada língua portuguesa no Brasil. Ela com certeza não me disse, mas é como se tivesse dito a mim, ainda criança pequena: "Paulo, repara bem como é bonita a maneira que a gente tem de falar!..." É como se ela me tivesse chamado. Eu me entregava com prazer à tarefa de "formar sentenças". Era assim que ela costumava dizer (Freire, 1994, p. 58).

Em relação à forma como a escola prosseguiu o trabalho formador referente à leitura, iniciado na casa do educador, as memórias de Paulo Freire informam que ele aprendeu a ler e escrever por meio da formação de sentenças, uma das possibilidades pedagógicas no início do século XX, cuja mentalidade era ancorada "a partir das contribuições da pedagogia norte-americana" (Mortatti, 2019, p. 78), registro que confirma os estudos atuais de alfabetização.

Conhecido na literatura como método da sentenciação, essa proposição está vinculada à lógica analítica veiculada principalmente por meio de cartilhas de alfabetização. A orientação da época consistia em se iniciar o trabalho pedagógico por meio da apresentação de uma frase, preferencialmente extraída da realidade das crianças: "os métodos analíticos (palavração, sentenciação) iniciavam o processo de ensino pela compreensão daquilo que expressasse significado para as crianças, proporcionando ao aprendiz o entendimento analítico do todo para as partes" (Ferreira; Santos, 2014, p. 188).

Paulo Freire disponibiliza um conjunto de detalhes a respeito do trabalho pedagógico da professora Eunice Vasconcelos no âmbito da alfabetização. O levantamento de palavras conhecidas possibilitava a construção das sentenças que posteriormente eram discutidas acerca do que representavam, envolvendo "a estratégia de comparar palavras e isolar nelas elementos conhecidos, para ler e escrever palavras novas" (Gonçalves; Jesus, 2015, p. 50), não se limitando, portanto à memorização, recurso rotineiro do período:

Nunca me esqueço da alegria com que me entregava ao exercício que ela chamava de ‘formar sentenças’. Pedia, primeiro, que alinhasse, em uma folha de papel, tantas palavras quantas eu soubesse escrever e quisesse. Depois, que fosse com elas formando sentenças, cuja significação passávamos a discutir. Foi assim que, a pouco a pouco, fui fazendo a minha intimidade com os verbos, com seus tempos, seus modos, que ela ia me ensinando em função das dificuldades que surgiam. Sua preocupação fundamental não era me fazer memorizar definições gramaticais, mas estimular o desenvolvimento de minha expressividade oral e escrita (Freire, 2020, p. 58).

Vale ressaltar que, apesar de o método de sentenciação evidenciar certa aproximação com o modo de atuação das cartilhas, Paulo Freire informou que o material não foi adotado em seu processo de alfabetização: “Em lugar de uma enfadonha cartilha em que as crianças tinham de decorar as letras do alfabeto, tive o quintal de minha casa – o meu primeiro mundo – como minha primeira escola” (Freire, 2020, p. 57-58).

Algumas discussões informam que o método de sentenciação, assim como o método de palavração, decorrem de uma perspectiva analítica na alfabetização. Nessa orientação pedagógica, a docência inicia o trabalho por meio de uma parte maior da linguagem que tenha sentido para as crianças, ocorrendo depois a decomposição em fragmentos menores, conforme a ilustração que segue: "toma-se a palavra (BOLA), que é analisada em sílabas (BO-LA), desenvolve-se a família silábica da primeira sílaba que a compõe (BA-BE-BI-BO-BU) e, omitindo a segunda família (LA-LE-LI-LO-LU), chega-se às letras (B-O-L-A)" (Mendonça, 2011, p. 28).

Assim como Eunice, outras docentes tiveram seus nomes registrados nos escritos pelo Patrono da Educação Brasileira ou por outros autores e autoras. A esse respeito, Nita Freire, biógrafa e viúva de Paulo Freire, menciona Amália Costa Lima (2017), professora de uma escola particular em que o educador frequentou quando tinha apenas tinha quatro anos. De outro lado, em um de seus escritos biográficos, o educador pernambucano cita as professoras Áurea e Cecília (Freire, 2001) como docências marcantes em sua caminhada escolar.

Além de Eunice, a professora com quem aprendi a “formar sentenças”, somente Áurea, no Recife ainda, e Cecília, já em Jaboatão, realmente me marcaram. As demais escolas primárias por que passei foram medíocres e enfadonhas, ainda que de suas professoras não guarde nenhuma recordação má, enquanto pessoas (Freire, 2020, p. 59).

A leitura da narrativa de Paulo Freire explicita como a relação docência/discência pode impactar de forma construtiva ou não a vida dos(as) estudantes, o que sugere que “a interação professor-aluno ultrapassa os limites profissionais e escolares, pois é uma relação que envolve sentimentos e deixa marcas para toda a vida” (Miranda, 2008, p. 2). Nessa direção, o educador pernambucano, com a amorosidade que sempre caracterizou seus gestos, escreveu um memorial-homenagem, dezessete anos depois de seu falecimento, para sua professora inesquecível, ao som do também saudoso compositor mineiro:

Eunice foi professora do Estado, se aposentou, levou uma vida bem normal. Depois morreu, em 1977, eu ainda no exílio. Hoje, a presença dela são saudades, são lembranças vivas. Me faz até lembrar daquela música antiga, do Ataulfo Alves: "Ai, que saudade da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá” (Freire, 1994, p. 58).

A escrita comovedora do memorial-homenagem de Paulo Freire para a professora Eunice Vasconcelos, reitera que nosso processo de formação evidencia aproximações com docências que admiramos, de modo que "Cada um de nós preserva imagens inesquecíveis do início da vida escolar e da lenta odisséia pedagógica a que se deve o desenvolvimento do nosso pensamento e, em grande parte, a formação da nossa personalidade" (Gusdorf, 2003, p. 1).

O relato do educador pernambucano apresenta elementos importantes para a compreensão de como os meninos e as meninas do Brasil aprendiam a ler e escrever na década de 20, conhecimento possibilitado pela investigação (auto)biográfica e que contribuiu para a História da Educação, pois

o trabalho de pesquisa a partir da narração das histórias de vida ou, melhor dizendo, de histórias centradas na formação, efetuado na perspectiva de evidenciar e questionar as heranças, a continuidade e a ruptura, os projetos de vida, os múltiplos recursos ligados às aquisições de experiência, etc., esse trabalho de reflexão a partir da narrativa da formação de si (pensando, sensibilizando-se, imaginando, emocionando-se, apreciando, amando) permite estabelecer a medida das mutações sociais e culturais nas vidas singulares e relacioná-las com a evolução dos contextos de vida profissional e social (Josso, 2007, p. 414).

Assim, a leitura e o escrito de memoriais sobre os percursos na aquisição da língua escrita, além de fortalecerem a autonomia escritora, propiciam o fortalecimento do campo de saberes referentes à História da Alfabetização. Além disso, favorecem múltiplos exercícios na direção da exploração da pesquisa (auto)biográfica, como recurso metodológico importante para a elaboração do conhecimento, a partir das narrativas de vivências pessoais.

Considerações finais

A intenção principal na elaboração deste escrito foi pensar as possibilidades formativas que podem resultar do conhecimento de textos biográficos para a educação. Com relatos é possível se aproximar de tempos, espaços e modos de ensinar e aprender na escola.

Diante disso, o objetivo do presente texto foi analisar as memórias de Paulo Freire sobre a professora Eunice Vasconcelos, considerada pelo educador como sua professora inesquecível. Uma oportunidade de validar a importância dos textos biográficos na formação, tendo em vista o seu potencial reflexivo para as práticas pedagógicas e humanas.

A metodologia que possibilitou este escrito foi a pesquisa bibliográfica em dialogia com a pesquisa (auto)biográfica. Uma ocasião que demandou o reexame dos escritos freireanos que tratam de seu processo de alfabetização e da relação construída com a professora Eunice Vasconcelos.

Foi possível observar que as docências extraordinárias deixam marcas importantes na trajetória escolar. Elementos relevantes que dinamizam a reflexão a respeito da relação docência/discência no campo da Didática, tanto nas etapas de formação docente inicial como continuada.

Em um relato comovedor, Paulo Freire sistematiza as impressões de amorosidade que marcaram a amizade estabelecida com sua professora alfabetizadora e os impactos na vida do jovem estudante pernambucano.

O relato do educador nos mobiliza a pensar sobre a relevância das subjetividades presentes em nossos processos formativos que resultam de aproximações com as docências que admiramos. No decorrer deste processo, vislumbramos o potencial formador, expresso tanto no ato de escrever, a partir das vivências, como na leitura que repercute, mobilizando novas possibilidades de lembrar, narrar e aprender, por meio desse contínuo entrelaçamento entre o ontem e o hoje.

Referências

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Publicado em 18 de junho de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

NEVES, Josélia Gomes. Docências extraordinárias: memórias de Paulo Freire sobre a professora Eunice Vasconcelos. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 21, 18 de junho de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/21/docencias-extraordinarias-memorias-de-paulo-freire-sobre-a-professora-eunice-vasconcelos

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