Consciência Negra para além de novembro: contribuições para uma educação antirracista na Escola Estadual do Campo Dom Francisco de Aquino Corrêa
Bruno Gonçalves dos Santos
Mestre em Ciências Sociais e Humanidades (UEG), professor da rede estadual de Mato Grosso
Marinete de Almeida Lima e Silva
Mestra em Ensino (IFMT), professora da rede estadual de Mato Grosso
Héliton Luiz Domingos
Especialista em Psicopedagogia (FIC), professor da rede estadual de Mato Grosso
Este relato de experiência visa apresentar as atividades ocorridas no projeto Consciência Negra Para Além de Novembro, desenvolvido ao longo de 2022 na Escola Estadual do Campo Dom Francisco de Aquino Correa, situada no Distrito de Cangas, Poconé/MT, município localizado na baixada cuiabana e que concentra em sua extensão territorial comunidades pantaneiras, ribeirinhas, assentamentos rurais, comunidades tradicionais e 29 comunidades remanescentes de quilombos (CRQ).
Essa pluralidade étnico-racial e cultural é percebida dentro do espaço escolar. De acordo com o projeto político-pedagógico da escola, está documentado que a grande maioria dos alunos não reside na zona urbana; em dados quantitativos, afirma que “54,24% dos alunos moram em outras localidades, sendo elas divididas entre comunidades quilombolas, assentamentos e fazendas, 100% deles dependem do transporte escolar” (Escola Estadual do Campo..., 2021, p. 3), sendo o restante residente no Distrito de Cangas.
O documento esclarece também que “a escola atende a 32 comunidades, sendo elas de agricultores familiares, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, trabalhadores rurais assalariados e quilombolas” (Escola Estadual do Campo..., 2021, p. 7, grifo nosso).
No período da semana pedagógica de 2022, momento em que planejamos e discutimos os projetos a serem trabalhados na escola durante o ano letivo, organizamos um grupo de professores para trabalhar o assunto diversidade, tendo como base a Lei nº 10.639/03. Isso posto, colocamos como desafio trabalhar o tema Consciência Negra com abordagens diversificadas não só em novembro, mas trazer o tema para debate e reflexão durante outros períodos do ano. Isso explica o nome do projeto.
O principal objetivo do projeto é implementar a Lei nº 10.639/03, reconhecendo a diversidade étnico-racial presente na escola Estadual do Campo Dom Francisco de Aquino Correia, à superação do racismo, ao fortalecimento das identidades, à valorização das diferenças e o respeito mútuo, pois “cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados” (Munanga, 2005, p. 17, grifos nossos).
Entendemos que o racismo permeia a realidade brasileira e, consequentemente, o interior das escolas. Nesse sentido, concordamos com Gomes (2005, p. 52) quando define que
;o racismo é, por um lado, um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como: cor da pele, tipo de cabelo etc. Ele é por outro lado um conjunto de ideias e imagens referente aos grupos humanos que acreditam na existência de raças superiores e inferiores. O racismo também resulta da vontade de se impor uma verdade ou uma crença particular como única e verdadeira.
Em todas as ações procuramos desenvolver alguns objetivos específicos, como a habilidade (EF09HI04) da DRC do Mato Grosso, que se refere a discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil; compreender a diversidade étnica, cultural de nossos alunos e alunas; conhecer as diversas contribuições dos povos negros e indígenas para a formação do país; desconstruir narrativas eurocêntricas sobre a História do Brasil; socializar saberes e histórias das diversidades das comunidades de nossos e nossas estudantes.
De acordo com as Orientações Curriculares para Educação das Relações Étnico-raciais propostas pela Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (Seduc-MT), “historicamente, as escolas centraram seus currículos num padrão eurocêntrico, privilegiando dessa forma a cultura de origem branca, sendo muitos elementos da história e da cultura afro-brasileira e indígena silenciados ou abordados de forma equivocada ou estereotipada” (Mato Grosso, 2010, p. 76).
Entendemos a escola como espaço estratégico na luta contra o racismo. Por isso, as ações do projeto Consciência Negra Para Além de Novembro foram desenvolvidas no sentido de trazer para dentro dos muros da escola a discussão racial, superar as lacunas presentes no currículo tradicional e, assim como preconiza a Lei nº 10.639/03, valorizar “a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” (Brasil, 2003). Nas próximas linhas iremos relatar as ações desenvolvidas no projeto.
Ação 1: Ciclo de palestras e debates sobre a Lei Áurea (maio de 2022)
Na semana do dia 13 de maio utilizamos as aulas de História para realizar um ciclo de palestras e debates no sentido de compreender, com perspectiva crítica, os reais impactos da Lei Áurea. Percebemos a importância do movimento abolicionista no Brasil, mas procuramos mostrar como o racismo e o trabalho escravo continuaram mesmo com a lei. Valemo-nos também do minidocumentário A Guerra do Palmares, da série Guerras do Brasil.doc, disponível na Netflix, para que alunos e alunas tivessem uma dimensão das lutas de resistência e do movimento negro no Brasil. Na sexta-feira, último dia, reunimos todas as turmas na quadra da escola para a realização de um evento com exposição de cartazes, apresentações de dança, de siriri e recitações.
Ação 2: Criação do grupo de siriri Araras do Pantanal (junho de 2022)
No intuito de estabelecer práticas educacionais que promovam o protagonismo juvenil, foi criado com os alunos e alunas da escola um grupo de siriri para realizar apresentações. O grupo é organizado pelos próprios e próprias estudantes sob a orientação dos funcionários e funcionárias.
Ação 3: Oficina de pintura de telas (junho de 2022)
Em junho foi realizada uma oficina de pintura de telas e confecção de máscaras na escola com o tema Consciência Negra. Convidamos uma professora de Artes da Comunidade Quilombola do Mata-Cavalo para ministrar a oficina.
Ação 4: Participação no IV Encontro de Educação Escolar Quilombola (setembro de 2022)
Em setembro, participamos, com um grupo de professores, professoras, alunas e alunos, do IV Encontro de Educação Escolar Quilombola em Abolição, nos dias 21, 22 e 23 de setembro, na cidade de Santo Antônio do Leverger. O encontro é organizado anualmente pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Escolar Quilombola da Universidade Federal do Mato Grosso. Nesse encontro, os professores puderam participar de atividades acadêmicas, como apresentar seus trabalhos e conhecer os diversos projetos desenvolvidos em outras escolas quilombolas do Mato Grosso. Nossos alunos e nossas alunas vivenciaram importantes momentos de troca de experiências com alunos e alunas de outras escolas; foi de fato um intercâmbio cultural.
Ação 5: “Chá com as pretas” (outubro de 2022)
No mês de outubro, convidamos a psicóloga Camiéle Benedita e a vice-prefeita de Poconé/MT, Soenil Sales, para realizar uma roda de conversa com nossos alunos e nossas alunas. Na ocasião, foram abordados temas como: saúde mental e racismo estrutural, entre outros. Mas o foco das conversas girou em torno das experiências de vida dessas duas mulheres negras que ocupam lugares de relevância na sociedade.
Ação 6: Participação no evento cultural da Consciência Negra na Escola Estadual Quilombola Tereza Conceição de Arruda, no complexo de Quilombos do Mata Cavalo (novembro de 2022)
No dia 18 de novembro levamos alunos e alunas para o evento cultural da Consciência Negra na Escola Estadual Quilombola Tereza Conceição de Arruda, no complexo de Quilombos do Mata Cavalo, localizado no município de Nossa Senhora do Livramento/MT. Nessa oportunidade, pudemos vivenciar parte das profusas expressões culturais do quilombo por meio de apresentações de músicas, danças, visita à casa de cultura da escola e feira gastronômica, entre outras atividades.
Ação 7: Participação no XV Encontro da Consciência Negra, realizado na Comunidade Quilombola do Chumbo, Poconé (novembro de 2022)
No dia 20 de novembro, alunos e funcionários da escola participaram do tradicional evento em comemoração ao Dia Consciência Negra realizado pelo Quilombo de Nossa Senhora do Chumbo, localizado na cidade de Poconé/MT. No evento, houve pertinentes falas de lideranças da comunidade debatendo políticas públicas de combate ao racismo e como a comunidade se encontra nesse contexto; o encontro contou também com a participação de autoridades do estado e do município.
Ação 8: Culminância do projeto Consciência Negra para Além de Novembro na Escola Estadual do Campo Dom Francisco de Aquino Correa
Em 23 de novembro ocorreu a culminância do projeto em nossa escola. Naquele momento houve feira, apresentações artísticas, exposição de telas, máscaras, bonecas e fotografias; representantes de Comunidade Quilombola do Chumbo realizaram falas e apresentações de siriri. Toda a escola se mobilizou para realizar o evento, que encerrou no plano simbólico as ações do projeto.
De acordo com a história de colonização do nosso país, o racismo emerge como problema estrutural contra o qual devemos “mobilizar todas as forças vivas da sociedade para combatê-lo. Entre essas forças, a educação escolar, embora não possa resolver o problema sozinha, ocupa um espaço de destaque” (Munanga, 2005, p. 17).
Contudo, assim como é apontado nas Orientações Curriculares para Educação das Relações Étnico-raciais do Mato Grosso, entendemos que “temas como raça, etnia e identidades estão cada vez mais distantes do ambiente escolar”, sendo “necessário acolher urgentemente temas culturais no ensino” (Mato Grosso, 2010, p. 82). Diante dessa necessidade, o projeto Consciência Negra Para Além de Novembro foi pensado e desenvolvido no sentido de dialogar, refletir e valorizar as diversidades étnico-raciais presentes no interior da escola, do município de Poconé e do Estado de Mato Grosso como um todo.
À guisa de conclusão, vale ressaltar que não nos reservamos de discutir o racismo somente nas ações, até porque o racismo está presente na estrutura da nossa sociedade. Logo, abordamos o tema em conversas em sala de aula, no pátio, na sala dos professores. Enfim, as ações realizadas provocaram amplas reflexões sobre o racismo na escola, bem como inspiração e motivação para continuar e ampliar o projeto em 2023, até quem sabe um dia se tornar algo cotidiano no ambiente escolar.
Referências
BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 25 fev. 2023.
ESCOLA ESTADUAL DO CAMPO DOM FRANSCISCO DE AQUINO CORREA. Projeto político-pedagógico. Poconé, 2021.
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Comunidades remanescentes de quilombos. s/d. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551.
GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. História. Brasília: Ministério da Educação/Secad, 2005. p. 39-62.
MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Educação. Orientações Curriculares: Diversidades Educacionais. Cuiabá: Defanti, 2010.
MATO GROSSO. Documento de referência curricular. Ensino Fundamental - anos finais. Cuiabá, 2018. Disponível em: https://sites.google.com/view/bnccmt/educa%C3%A7%C3%A3o-infantil-e-ensino-fundamental/documento-de-refer%C3%AAncia-curricular-para-mato-grosso.
MUNANGA, Kabengele. Apresentação. In: MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. 2ª ed. Brasília: MEC/Secad, 2005. p. 15-20.
Publicado em 25 de junho de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
SANTOS, Bruno Gonçalves dos; LIMA E SILVA, Marinete de Almeida; DOMINGOS, Héliton Luiz. Consciência Negra para além de novembro: contribuições para uma educação antirracista na Escola Estadual do Campo Dom Francisco de Aquino Corrêa. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 22, 25 de junho de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/22/consciencia-negra-para-alem-de-novembro-contribuicoes-para-uma-educacao-antirracista-na-escola-estadual-do-campo-dom-francisco-de-aquino-correa
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