A trajetória da Educação de Jovens e Adultos no Brasil a partir das concepções de alfabetização instrumental e formação humana integral
Vanessa Aparecida Deon
Mestre em Letras (Unicentro), graduada em Ciências Econômicas e Pedagogia (Uninter)
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade da Educação Básica reconhecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/96, que no Art. 37 destaca: “A Educação de Jovens e Adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no Ensino Fundamental e Médio na idade própria” (Souza, 2011, p. 16).
No Brasil, durante muito tempo, a EJA foi negligenciada. Em pleno século XXI, ela ainda se faz necessária. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2018, o país apresentou uma a taxa de analfabetismo de 6,8%; isso significa que 11,3 milhões de pessoas com mais de 15 anos não sabem ler nem escrever. Ainda verificou-se que a taxa de analfabetismo é menor nos centros urbanos, enquanto nos assentamentos, comunidades indígenas e quilombos a taxa é mais elevada.
Além disso, de acordo com os dados do IBGE (2018), a Região Nordeste foi a que apresentou a maior taxa de analfabetismo, com13,9%; isso equivale a quatro vezes as taxas estimadas para as Regiões Sudeste e Sul, que apresentaram as taxas de 3,5% e 3,6%, respectivamente. Na Região Norte, essa taxa foi de 8,0% e no Centro-Oeste, de 5,4%.
Ainda segundo os dados, os homens apresentaram índice de analfabetismo de 7%, enquanto as mulheres tiveram 6,6%. Em relação às pessoas pretas ou pardas, a taxa de analfabetismo foi de 9,1%, o que significa mais que o dobro da observada entre as pessoas brancas, 3,9%.
De acordo com os dados apresentados pela Gazeta do Povo (2019), “no ano de 2018, apenas treze estados atingiram a meta de redução do analfabetismo estipulada para o ano de 2015. “Desse modo, o Brasil não alcançou a meta parcial, que seria reduzir a taxa de analfabetização para 6,5%. Atualmente, a meta final do Plano Nacional de Educação (PNE) é erradicar o analfabetismo até o ano de 2024.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), toda pessoa com mais de 15 anos de idade que não sabe ler nem escrever é considerada analfabeta. Nesse sentido, a EJA se faz necessária devido às altas taxas de analfabetismo ocasionadas por trajetórias educativas “acidentais”, ou seja, muitas pessoas não tiveram oportunidade de estudar na idade considerada adequada; isso faz com que muitos estejam com idade acima do permitido para cursarem o ensino regular.
O objetivo geral deste trabalho é compreender a trajetória da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, visto que é marcada por programas governamentais e iniciativas da sociedade civil. Seus objetivos específicos são: 1) Conhecer o perfil dos sujeitos da EJA; 2) Fazer um breve percurso sobre a evolução das políticas educacionais para a EJA no Brasil, desde o período do Brasil Colônia até os dias atuais; 3) Verificar quais foram as políticas educacionais adotadas pelos governos a partir de duas concepções de alfabetização: a instrumental e a formação humana integral.
A partir dessas premissas, o artigo traz as seguintes questões: de que forma se apresenta historicamente a EJA no Brasil? Os diversos programas e projetos referentes à EJA alteram a estrutura das relações sociais?
Para a realização deste trabalho, utilizamos metodologicamente a pesquisa qualitativa, cunho bibliográfico. Para isso, consultamos documentos oficiais referentes à EJA e obras que tratam da temática.
Os sujeitos da EJA
Os sujeitos a quem se destina a EJA são aqueles que não puderam concluir seus estudos na idade considerada adequada, ou seja, 15 anos para o Ensino Fundamental e 18 anos para o Ensino Médio. Segundo Souza (2011, p. 19), “a maioria deles é jovem, tem idades entre 15 e 29 anos, e estão retomando os estudos geralmente com a perspectiva de obter certificação para conquistar o primeiro emprego, enquanto outros buscam melhorar a condição do emprego atual”.
Ainda segundo a autora, outros estão em função de repetência e desistência, retornando em busca da ampliação da escolaridade. Dessa forma, “os sujeitos da EJA são diversos: trabalhadores, aposentados, jovens empregados e em busca do primeiro emprego; pessoas com necessidades especiais” (Souza, 2011, p. 20).
Na fase inicial do Ensino Fundamental, do 1º ao 5º ano, a maioria dos analfabetos tem idade acima de 40 anos; muitos desses sujeitos são mulheres que não tiveram oportunidade de estudar porque tinham que cuidar dos seus filhos. Na segunda fase (do 6º ao 9º ano e Ensino Médio), geralmente são pessoas mais jovens.
Muitos dos sujeitos da EJA têm trajetória marcada pela exclusão, que se dá por diversos motivos: condição socioeconômica, reprovações, desistências, evasão, entrada precoce no mercado de trabalho, mudança de cidade e residência em localidades rurais.
Segundo Souza (2011, p. 17), “na primeira metade do século XX, os principais sujeitos da educação de adultos eram migrantes de várias localidades do rural brasileiro, que se dirigiam para as cidades”. De acordo com a autora, por muito tempo esteve presente a ideologia de que o trabalhador rural não precisava de estudos, pois a ideia era a de que ele tinha somente de trabalhar no campo e, para isso, não era necessário estudo.
Até a década de 1950, “o adulto que não sabia ler nem escrever era considerado deficiente e incapaz de aprender” (Kleiman, 2000, p. 17). Nesse sentido, colocava-se sobre o próprio indivíduo a culpa por não ter concluído os estudos em idade adequada.
Segundo Souza (2011), o analfabetismo era visto como causa do subdesenvolvimento do país. Para mudar esse cenário, as autoridades políticas do país dedicaram atenção a essa parcela da população com o objetivo de ensiná-los apenas a decodificar a escrita,ou seja, não levavam em conta a experiência de vida desses sujeitos no processo de aprendizagem. Dessa forma, havia interesse em mudar as estatísticas, mas não havia interesse em provocar rupturas para superação dos reais problemas sociais.
Por outro lado, na década de 1960, o analfabetismo passou a ser visto como consequência da desigualdade social. Nesse período, surgem os movimentos populares liderados por Paulo Freire, com a finalidade de levar em conta a experiência de vida dos sujeitos da EJA, ou seja, os movimentos populares se contrapunham à pura decodificação da escrita.
Desse modo, o analfabetismo passou a ser visto como consequência da desigualdade social. Nas palavras de Souza: “as condições sociais e a desigualdade social, somadas às frágeis políticas educacionais, integram o rol de fatores que contribuem para a existência de analfabetos” (Souza, 2011, p. 18).
Com base nesse panorama, observamos que o papel da EJA é de suma importância para combater o analfabetismo e, consequentemente, a desigualdade social. A EJA não cumpre mais apenas o papel de alterar dados estatísticos, mas também de fortalecer o direito à educação e promover a melhoria na qualidade do processo educativo.
A EJA e as concepções instrumental e formação humana integral
No decorrer da história do Brasil, a trajetória da EJA se apresenta a partir de duas concepções de alfabetização: a instrumental e a formação humana integral. A seguir, veremos que ambas se revezam no percurso histórico da EJA no país.
De acordo com Souza (2011, p. 25), “na concepção instrumental é valorizada a técnica de ensino, como memorizar e codificar palavras, sem a preocupação com processos educativos que estabelecem a relação entre o mundo da escola e da vida”.
Nessa vertente, o objetivo é comprovar, por meio de dados estatísticos, a ampliação do índice de escolaridade dos brasileiros, a fim de o país obter financiamentos junto aos organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e bancos internacionais. Sendo assim, o Brasil precisa reduzir as taxas de analfabetismo para poder financiar seus programas e projetos.
Nessa concepção, a alfabetização fica restrita a ensinar a decodificação, com a finalidade de certificação para atuação no mercado de trabalho. Portanto, não há abertura para a ampliação da visão de mundo do aluno.
Por outro lado, na formação humana integral, a educação é vista como um direito, pois saber ler e escrever é um direito de todos previsto na Constituição de 1988. Essa concepção, segundo Souza (2011), é sustentada pela experiência de Paulo Freire, que defendia a educação dialógica.
Nesse sentido, é levada em conta a bagagem cultural do aluno e, a partir da dialogicidade entre professor e aluno, busca-se entendimento para que o aluno possa participar da vida política, social e econômica do país em igualdade de condições.
Portanto, nessa vertente, a leitura de mundo vem junto com a leitura da palavra, e a alfabetização vem acompanhada do letramento. O aluno é o sujeito de sua aprendizagem, e a preocupação é com o conhecimento, não apenas com a certificação. Nessa concepção, busca-se a transformação social e relações de trabalho mais humanizadas.
Um breve panorama histórico da EJA no Brasil
Faremos um breve percurso sobre a evolução das políticas educacionais para EJA no Brasil, desde o Brasil Colônia até os dias atuais, a fim de verificar quais foram as políticas educacionais adotadas pelos governos.
A partir disso, poderemos refletir por que algumas posturas foram adotadas e como os diferentes momentos políticos no país trouxeram ora avanços, ora retrocessos para a EJA. De acordo com Stange e Santos (2010),
em tese, a Educação de Jovens e Adultos tem seu início no Brasil desde a época do descobrimento, quando o principal objeto da aprendizagem era dirigido tão somente ao trabalho agrícola, com menor ênfase ao trabalho manual artesanal. O foco era, então, consolidar uma economia de base agrícola em que o ensino à leitura não era o centro do processo (Stange; Santos, 2010, p. 10).
No período do Brasil Colônia, havia o objetivo de difundir o catolicismo e de obter mão de obra. Para isso, os jesuítas catequizavam os índios e os escravos, a fim de ensinar a ler e escrever apenas para o domínio do código, ou seja, numa concepção instrumental.
No governo do Marquês de Pombal (1760), o Estado passou a controlar financeira e ideologicamente a educação. Nesse período, não há registros de alfabetização de adultos.
Em 1808, com a chegada da Família Real ao Brasil, a educação passou a ser destinada apenas à elite. Segundo Souza (2011, p. 35), “a população pobre era a mais atingida pela falta de acesso à escola; as mulheres mais pobres não recebiam instrução, enquanto as da elite recebiam educação em suas casas”.
Por outro lado, eram necessários trabalhadores para atender a corte. Devido a isso, implantou-se a alfabetização de adultos, criando um movimento de relativa “elitização”, ou seja, apenas para os trabalhadores da corte. De acordo com Piletti (1988, p. 165), “a realeza procurava facilitar o trabalho missionário da Igreja, na medida em que esta procurava converter os índios aos costumes da Coroa Portuguesa". A visão em relação ao analfabeto adulto era de ignorante e incapaz, e o objetivo da alfabetização era “civilizá-los”.
De acordo com Souza (2011), a Constituição de 1824 não fazia restrição ao voto do analfabeto, embora excluísse a maioria da população do processo eleitoral, pois só poderiam votar pessoas selecionadas de acordo com seus rendimentos anuais. Segundo Paiva (1987, p. 73), a Constituição de 1891 eliminou esse critério de seleção e passou a considerar a instrução escolar do eleitor.
Em 1827, foi implementado no Brasil o Método Mútuo ou Método Lancaster, com a lei de 15 de outubro. O objetivo desse método era alfabetizar rapidamente um grande número de pessoas. Segundo Cordiolli (2011),
a solução foi a adoção do Método Lancaster de ensino mútuo, pelo qual os estudantes ensinavam um grupo de dez estudantes em estágio menor de aprendizagem sob orientação de inspetores. O estudante “professor” era denominado decurião, que ensinava as decúrias (Cordiolli, 2011, p. 74).
No período do Primeiro Império (1822-1831), de acordo com a Constituição, a instrução primária era gratuita para todos os cidadãos. Em 1827, foi instituída a Lei de Educação Primária e determinada a fundação de escolas de primeiras letras.
De acordo com Cordiolli (2011), durante o Governo Regencial (1834), as províncias passaram a ser responsáveis pelo Ensino Primário e Secundário. Nesse período surge em Niterói a primeira Escola Normal do Brasil e, no Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II, que estabelecia as diretrizes para o Ensino Secundário.
Segundo Souza (2011, p. 73), “o ato adicional de 1834 atribuía aos governos provinciais o tratamento das questões da educação fundamental das crianças e, por extensão, dos adultos”.
Apesar de todas essas mudanças, as oligarquias econômicas locais não tinham interesse em alterar as condições de vida da população. Desse modo, as escolas de primeiras letras raramente foram efetivadas; muitas vezes a educação só ocorria nas residências de professores.
A primeira constituição brasileira (Carta Magna) data de 1824, logo após a Proclamação da Independência do Brasil, ocorrida em 1822. Ocorre que nessa época a cidadania se restringia àqueles considerados livres e libertos, uma vez que o modelo de produção era baseado no trabalho escravo, o qual perdurou até 1888, quando aconteceu a Abolição da Escravatura (Souza, 2011, p. 72).
Em 1879, a partir do Decreto nº 7.242, foi prevista a criação de cursos para analfabetos livres ou libertos do sexo masculino. De acordo com Souza (2011, p. 73), “era um período escravocrata em que a preocupação com a instrução pública começava a ganhar fôlego, uma vez que os índices de analfabetismo eram alarmantes”. Nesse período, a escolarização tornou-se critério de ascensão social, referendada pela Lei Saraiva, de 1882, que logo foi incorporada à Constituição Federal de 1891, impedindo o voto de analfabetos (Paraná, 2006, p. 17).
Em 1885, o Regime de Escolas de Instrução primária de Pernambuco traz com detalhes a prescrição para o funcionamento das aulas destinadas a receber alunos maiores de 15 anos. Nessa mesma década, o índice de analfabetismo brasileiro era altíssimo. “Essa realidade pode ser comprovada pelos dados do Censo Nacional de 1890, que verificou a existência de 85,21% de “iletrados” na população total brasileira” (Paiva, 1983 apud Paraná, 2006, p. 16).
Desse modo, no Segundo Império (1840-1889) não houve significativo avanço na perspectiva educacional, e as poucas iniciativas efetivadas foram realizadas pela Igreja Católica e pelas evangélicas.
Segundo Cordiolli (2011, p. 75), na Primeira República (1889-1930) instituíram-se vários direitos educacionais a partir da Constituição Federal de 1891, mas que em grande parte não foram efetivados. Nesse período, Benjamin Constant propôs diversas medidas para o funcionamento das escolas: a inclusão de disciplinas científicas, a laicidade da educação e a educação para o trabalho.
A visão em relação ao analfabeto adulto nessa época era de um indivíduo improdutivo e incapaz. O objetivo da alfabetização nesse período era a regeneração do povo, vencer a vergonha nacional causada pelo alto índice de analfabetismo no país, por meio da Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, e campanhas. A alfabetização era feita nas escolas pela elite e por voluntários.
Devido ao alto índice de analfabetismo no Brasil, em 1915 surge o método de desanalfabetização desenvolvido por Abner de Brito, que propunha alfabetizar em sete lições (Brasil, 1999). No início do século XX, surgiram diversos movimentos sociais e foram efetivadas diversas reformas educacionais. Segundo Cordiolli (2011, p. 77), foram elas:
a de São Paulo, conduzida por Sampaio Dória (1920); a do Ceará, por Lourenço Filho (1923); a da Bahia, por Anísio Teixeira (1925); a de Minas Gerais, por Francisco Campos (1927); a do Distrito Federal, por Fernando de Azevedo (1929); a de Pernambuco, por Carneiro Leão (1929); e, novamente, a de São Paulo, por Lourenço Filho (1930).
Em 1921, na conferência interestadual ocorrida no Rio de Janeiro, foram criadas escolas noturnas para adultos com duração de um ano. “Em 1925, por meio da Reforma João Alves, surgiu o ensino noturno para jovens e adultos, com o intuito de atender aos interesses da classe dominante” (Paraná, 2006, p. 17). Em 1930, iniciava-se um movimento contra o analfabetismo cujo objetivo era aumentar o número de eleitores.
Na Segunda República, com a chegada de Getúlio Vargas ao governo (1930-1945), foram tomadas diversas ações referentes à área educacional, como o desenvolvimento do PNE (1936). Além disso, “a partir da Constituição Federal de 1934, foram instituídas no Brasil a obrigatoriedade e a gratuidade do Ensino Primário para todos” (Paraná, 2006, p. 17). Nesse período, foram instituídas as escolas profissionalizantes.
Num período da década de 1940 em que os levantamentos de dados demonstravam que o analfabetismo era uma das características do subdesenvolvimento do país, as autoridades políticas dedicaram atenção a essa parcela da população, com o intuito de que adquirissem formação para “decifrar” os códigos da escrita (Souza, 2011, p. 17).
Nessa época, a alfabetização era realizada nas escolas por voluntários, o método utilizado era o silábico, baseado na educação das crianças, e o objetivo era diminuir os altos índices de analfabetismo.
Assim, a educação escolar passou a ser considerada baluarte do progresso e do desenvolvimento da nação. O analfabetismo foi compreendido como um “mal e uma doença nacional” e o analfabeto como “inculto, preguiçoso, ignorante e incapaz” (Paraná, 2006, p. 17).
No governo de Getúlio Vargas, a educação foi utilizada como instrumento de propaganda política. Para isso, foram realizadas diversas ações referentes à educação. As escolas implantadas foram poucas em relação à demanda, servindo como base para propagandas do governo com o intuito de ligar a escolarização à profissionalização de adolescentes e jovens. Nesse sentido, continuava a concepção instrumental de alfabetização.
Na chamada Terceira República (1945-1964), o analfabetismo era um problema grave no país e, por meio de políticas municipais, com o apoio das igrejas e dos movimentos sociais, foram promovidas ações populares de alfabetização para adultos. Com isso, ocorreram conquistas por meio da formação de sindicatos, entidades estudantis e movimentos populares.
Em 25 de agosto de 1945, ocorreu a aprovação do Decreto nº 19.513, tornando oficial a Educação de Jovens e Adultos. “A educação de adultos foi referendada pela dotação de 25% dos recursos do Fundo Nacional do Ensino Primário (FNEP), destinados, especificamente, ao ensino da população adulta analfabeta” (Paraná, 2006, p. 17).
Em 1946, surgiu a primeira Lei Orgânica de Ensino Primário (Decreto-Lei nº 8.529), mas a campanha não obteve êxito devido à falta de experiências que dessem suporte às ações governamentais (Brasil, 1946).
Em 1947, foi criada a Campanha Nacional de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), estimulando a criação de programas nacionais de educação internacionalmente. Em 1958, foi instituída a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA). Entretanto, no final dos anos 1950, muitas críticas foram dirigidas às campanhas, devido ao caráter superficial do aprendizado, bem como à inadequação dos programas, modelos e materiais pedagógicos, que não condiziam com as especificidades dos adultos.
Durante muito tempo, a EJA teve o intuito de superar o atraso daqueles que não sabiam ler nem escrever, adotando uma concepção instrumental de educação, sem levar em conta a experiência de vida dos trabalhadores (Souza, 2011, p. 21).
Foi somente a partir de 1961, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 4.024, que a educação passou a ser direito de todos. A partir disso, ficou determinado que as pessoas maiores de 16 anos pudessem fazer exames de madureza e, por meio deles, obter certificado de conclusão de Curso Ginasial, sem ter que frequentar o ambiente escolar.
Além disso, na década 60, iniciaram-se os Movimentos de Educação de Cultura Popular (MCP), inspirados por Paulo Freire.
Essa nova perspectiva também estava associada a um contexto de efervescência dos movimentos sociais, políticos e culturais. Dentre as experiências de educação popular daquele período, destacaram-se o Movimento de Educação de Base (MEB), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); os Centros Populares de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE); e o início da execução do Plano Nacional de Alfabetização (PNA), de janeiro a abril de 1964, pelo governo federal, para uma política nacional de alfabetização de jovens e adultos em todo o país, coordenada por Paulo Freire (Paraná, 2006, p. 18).
Esses movimentos buscavam a transformação social, pois o analfabetismo era visto como consequência de uma sociedade injusta e não igualitária.
Os movimentos populares, em meados do século XX, dedicaram atenção à educação de adultos. Paulo Freire, associado a uma equipe de educadores comprometidos com a mudança social, é um dos educadores que sistematizou uma concepção de educação com objetivo de dar outra intencionalidade política à educação e à EJA, que se contrapunha à concepção instrumental (Souza, 2011, p. 21).
Nesse período, a concepção de alfabetização era o uso da leitura e da escrita como ferramentas de conscientização e compreensão. Os objetivos da alfabetização eram atender às demandas internacionais e às demandas dos movimentos populares, com o intuito de reduzir os altos índices de analfabetismo.
Foi nesse período que surgiu o “Método Paulo Freire”, pautado numa educação dialógica que valorizava a cultura popular e a utilização de palavras geradoras. Segundo o autor,
essas palavras são chamadas geradoras porque, através da combinação de seus elementos básicos, propiciam a formação de outras. Como palavras do universo vocabular do alfabetizando, são significações constituídas ou reconstituídas em comportamentos seus que configuram situações existenciais ou, dentro delas, se configuram. Representativos das respectivas situações e da experiência vivida do alfabetizando, passam para o mundo dos objetos. O alfabetizando ganha distância para ver sua experiência: “admirar”. Nesse instante, começa a descodificar (Freire, 1987, p. 6).
Em 1963, o método Paulo Freire foi aplicado na cidade de Angicos, localizada na região central do Rio Grande do Norte. A partir desse método, trezentos adultos aprenderam a ler e escrever em quarenta horas. Esse método ganhou grande visibilidade em níveis nacional e internacional.
Desse modo, para o autor, a dialogicidade entre aluno e professor é o fio condutor do processo de ensino-aprendizagem, ou seja, deve-se levar em conta a experiência de vida e os saberes trazidos pelos alunos.
Nesse mesmo ano, Paulo Freire passou a integrar o grupo para elaboração do Plano Nacional da Alfabetização, junto ao Ministério da Educação, processo que foi interrompido devido ao Golpe Militar de 1964.
Durante a Ditadura Militar, a concepção de alfabetização voltou a ter caráter instrumental, ou seja, visando o domínio do código e a preparação para o mercado de trabalho. As aulas ocorriam nas escolas e os professores eram semipreparados, contratados e voluntários.
Os objetivos da alfabetização eram: preparação de mão de obra e contenção dos movimentos sociais. Desse modo, com o regime militar se iniciaram a perseguição e a repressão dos movimentos sociais, pois a alfabetização deveria restringir-se à alfabetização funcional.
De acordo com Souza (2011, p. 51), “em 1964 iniciaram-se os trabalhos da Cruzada ABC, em parceria entre a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento internacional (Usaid), governos federais e estaduais e agências privadas”.
Em 1967, surgiu o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), iniciado na cidade do Recife, na Paraíba e Sergipe. O Mobral visava à alfabetização funcional de jovens e adultos, com o objetivo de o analfabeto adquirir a leitura, a escrita e o cálculo. “Houve poucos avanços nos 15 anos de vigência do Mobral, haja vista que, dos quarenta milhões de pessoas que frequentaram aquele movimento, apenas 10% foram alfabetizados” (Paraná, 2006, p. 18). Em 1971, o governo militar instituiu o Ensino Supletivo, por meio da Lei n° 5.692/71, de caráter tecnicista.
Na Lei nº 5.692/71, havia um capítulo para o ensino supletivo, e o Parecer nº 699/72 do Conselho Nacional de Educação (CNE), que regulamentava os cursos supletivos seriados e os exames com certificação. A organização curricular e a matriz do Ensino Supletivo seguiam a proposta curricular do ensino regular, porém de forma compactada, não denotando qualquer especificidade à população jovem e adulta no processo de escolarização (Paraná, 2006, p. 19).
A partir de 1985, a concepção de alfabetização passou a englobar as duas correntes: a instrumental e a formação humana integral. O governo extinguiu o Mobral e criou a Fundação Educar (Fundação Nacional para Educação de Jovens e Adultos).
Nesse período, a alfabetização passou a ser realizada nas escolas tanto por professores preparados como por voluntários. Nesse contexto, o analfabeto não era mais visto como incapaz, e sim como um sujeito que não teve oportunidade de estudar na idade adequada. Com a Constituição de 1988, é assegurada a educação como direito do cidadão e dever do Estado.
Seção que pactua a educação como direito de todos.
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil, 1988).
Em 1990, denominado Ano Internacional da Alfabetização, o objetivo era baixar as estatísticas do analfabetismo no Brasil, buscando especialmente formar mão de obra qualificada para o mercado de trabalho, bem como baixar as estatísticas de analfabetismo no país.
No entanto, segundo Bello (1993), no decorrer da década de 1990 ocorreram parcerias entre organizações não governamentais (ONGs), municípios, universidades, grupos informais, fóruns estaduais e nacionais em prol de melhorias da Educação de Jovens e Adultos.
Na década de 1990 em diante, é possível constatar no país a existência de um conjunto de programas voltados à EJA, entre eles estão: Centros de Educação de Jovens e Adultos (Ceebjas), Programa Brasil Alfabetizado, com parcerias entre secretarias estaduais de Educação e entidades da sociedade civil (Souza, 2011, p. 54).
Desse modo, segundo a autora, a trajetória da EJA é marcada por programas governamentais, campanhas, movimentos sociais, defesa de proposta pedagógica específica e por debates nos espaços públicos, como os encontros estaduais, os Enejas. Apesar disso, nessa década, contraditoriamente, a EJA passa a ser vista como um investimento oneroso.
Ainda na década de 1990, foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, na qual a EJA passa a ser considerada uma modalidade da Educação Básica nas etapas do Ensino Fundamental e Médio e com especificidade própria (Paraná, 2006, p. 21).
Além disso, a partir da Lei nº 9.394/96, foi reduzida a idade para os exames de conclusão do Ensino Fundamental e Médio. Desse modo, substituiu-se a idade estabelecida pela Lei nº 5.692/71, passando para 15 anos a inscrição e realização de exames no Ensino Fundamental e 18 anos para Ensino Médio. (Paraná, 2006).
Na década de 90, se iniciaram as discussões sobre o Plano Nacional da Educação (PNE) e foram criados diversos programas, como o Programa de Alfabetização Solidária (Alfasol), Mova (SP), Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (PNAC), Programa de Alfabetização Solidária (PAS) e o Programa Nacional da Reforma Agrária (Pronera).
A partir das discussões e experiências da Educação de Jovens e Adultos na década de 1990, no ano 2000 foram promulgadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (DCNEJA). “Tais diretrizes superaram a visão preconceituosa do analfabeto ou iletrado como inculto ou apto apenas a tarefas e funções ditas desqualificadas no mundo do trabalho” (Paraná, 2006, p. 22).
Em 9 de janeiro de 2001, foi sancionada a Lei nº 10.172, responsável pelo PNE. Esse documento estabelece as diretrizes e metas para a educação em nosso país a cada dez anos, com o intuito de que sejam cumpridas até o fim dos prazos estabelecidos.
O PNE (2001-2010), no tocante à EJA, tinha como objetivo erradicar o analfabetismo adulto no período de 10 anos, garantir a oferta de EJA de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental para 50% da população de 15 anos ou mais no período de cinco anos, assegurar a oferta de EJA de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental para 100% da população de 15 anos ou mais em dez anos, dobrar a capacidade de atendimento da EJA do Ensino Médio em cinco anos, quadruplicar a capacidade de atendimento de EJA do Ensino Médio em dez anos, implantar a EJA em unidades prisionais e nos estabelecimentos que atendem jovens e adolescentes infratores, ofertando os Ensinos Fundamental e Médio, bem como o Ensino Profissionalizante (INEP, 2004).
Em 2003, foi lançado pelo governo Lula o Programa Brasil Alfabetizado, com o objetivo de promover a superação do analfabetismo de jovens com 15 anos ou mais. Em 2005, foi criado o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), cujo objetivo era atender jovens de 18 a 24 anos que concluíram a 4ª série do Ensino Fundamental, mas não concluíram a 8ª série e que não tivessem vínculo formal no mercado de trabalho. Em 2007, o Projovem subdividiu-se nos seguintes programas: 1) Projovem urbano; b) Projovem Campo; 3) Projovem adolescente e d) Projovem trabalhador.
Em 2006, a partir do Decreto nº 5.840, foi lançado o Programa Nacional de Integração Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), com o objetivo de formação continuada de trabalhadores em nível médio e técnico, obrigatoriamente ofertado nos institutos federais de educação ciência e tecnologia.
Em 2014, foi aprovado pelo governo de Dilma Rousseff o segundo PNE (2014-2024), por meio da Lei nº 13.005. Foram estabelecidas vinte metas, entre elas três referentes à EJA:
Meta 8: elevar a escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos, de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo no último ano de vigência deste Plano, para as populações do campo, da região de menor escolaridade no País e dos 25% mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Brasil, 2014, p. 33).
Meta 9: elevar a taxa de alfabetização da população com 15 (quinze) anos ou mais para 93,5% até 2015 e, até o final da vigência deste PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional (Brasil, 2014, p. 35).
Meta 10: Oferecer, no mínimo, 25% das matrículas de educação de jovens e adultos nos Ensinos Fundamental e Médio, na forma integrada à educação profissional (Brasil, 2014, p. 37).
De acordo com Tokarnia (2020), o analfabetismo no país vem caindo, conforme aponta a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2018. A pesquisa mostrou que a taxa de analfabetismo no Brasil passou de 6,8%, em 2018, para 6,6%, em 2019. Apesar da queda, o Brasil ainda tem 11 milhões de brasileiros com mais de 15 anos que não sabem ler ou escrever.
Verificamos que durante muito tempo na história da EJA foram criados diversos programas com caráter instrumental, que nem sempre eram efetivados e, dessa forma, não garantiam a emancipação dos jovens e adultos.
Tais características, entretanto não alteram sua marca histórica: ser uma educação política e pedagogicamente frágil, fortemente marcada pelo aligeiramento, destinada, predominantemente, à correção de fluxo e à redução de indicadores de baixa escolaridade e não à efetiva socialização das bases do conhecimento. E comprometida com a permanente construção e manutenção da hegemonia inerente às necessidades de sociabilidade do próprio capital e não com a emancipação da classe trabalhadora (Rummert; Ventura, 2007, p. 33 apud Souza, 2011, p. 156).
Por outro lado, a EJA não deve mais cumprir apenas o papel de alterar dados estatísticos, mas fortalecer o direito à educação, promovendo a melhoria da qualidade no processo educativo.
Considerações finais
Neste trabalho buscamos apresentar, num breve contexto, a trajetória da EJA no Brasil. Para isso, apresentamos um histórico da evolução das políticas educacionais para EJA desde o Brasil Colônia até os dias atuais.
Os sujeitos da EJA são aqueles que não puderam concluir seus estudos na idade considerada adequada. Em sua maioria, pessoas mais velhas que estão retomando seus estudos ou que não tiveram oportunidades de estudar. Sujeitos trabalhadores, que tem uma trajetória marcada pela exclusão.
Durante a História da Educação no Brasil, observamos que se revezam duas concepções de alfabetização, a instrumental e a formação humana integral. Na primeira, o objetivo era apagar o analfabetismo para atender às exigências dos organismos internacionais. Na segunda concepção, a educação era vista como direito de todos, sempre considerando a bagagem cultural do aluno e a partir da dialogicidade entre professor e aluno. O maior objetivo nessa concepção é a transformação social e as relações de trabalho mais humanizadas. A preocupação é com o conhecimento, e não apenas com a obtenção de certificação.
Verificamos que a história da EJA no Brasil passou por muitas mudanças, estagnações e progressões e que as concepções de alfabetização se revezam, trazendo ora avanços, ora retrocessos; observamos que foram criados diversos programas; contudo, as políticas educacionais nem sempre foram efetivas.
Ademais, entendemos que o papel da EJA é de suma importância para combater o analfabetismo e, consequentemente, a desigualdade social. A EJA não deve mais cumprir apenas o papel de alterar dados estatísticos, mas fortalecer o direito à educação, promovendo a melhoria na qualidade do processo educativo.
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Publicado em 02 de julho de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
DEON, Vanessa Aparecida. A trajetória da Educação de Jovens e Adultos no Brasil a partir das concepções de alfabetização instrumental e formação humana integral. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 23, 2 de julho de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/23/a-trajetoria-da-educacao-de-jovens-e-adultos-no-brasil-a-partir-das-concepcoes-de-alfabetizacao-instrumental-e-formacao-humana-integral
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