Expressões urbanas: falar é preciso

Diana Cler Rodrigues de Souza

Mestranda em Estudos de Lingugens (UFMS), professora do Ensino Fundamental no Mato Grosso do Sul

É curioso entender o que é a linguagem e como ela atua ao nosso redor; isso pode se tornar uma tarefa árdua e às vezes penosa para quem se propõe a isso. Mas, em contraponto, D’Oliveira (1999), na introdução à obra Investigações filosóficas, de Wittgenstein, traz uma reflexão que facilita o entendimento e permite criar inúmeras outras reflexões. O autor afirma que talvez não seja sábio buscar o significado do que é linguagem, mas seria talvez mais interessante e prudente tentar entender como ela funciona, como num ato de “abrir os olhos para ver e desvendar” de forma prática como ela acontece no nosso cotidiano.

Essas funções, ou formas de acontecer, são “formas de vida” (D’Oliveira, 1999). A vida acontece, o tempo passa, independentemente do que nos propomos a fazer, e as manifestações artísticas e de resistência moldam espaços e memórias de grupos e comunidades.

Por vezes, a linguagem – e com isso nos referimos a algumas formas específicas dela – constitui a única maneira que alguns possuem para ser ouvidos, vistos e conhecidos. Enquanto estamos em ambientes que “podam” nossos gostos e opiniões, é nas ruas da cidade, nos seus muros, que muito pode ser dito.

Iniciamos com esta reflexão a fim de propor um pensamento mais profundo sobre as expressões urbanas – manifestações estas que envolvem desde a arte urbana, os slams (competição de poesia falada criada por Marc Smith nos Estados Unidos, mais especificamente em Chicago, nos anos 1980, e trazido ao Brasil em 2008 por Roberta Estrela D’Alva) e a cultura do hip hop, até os pixos ou tags (marca gráfica com uso de letras, assinatura dos grafiteiros, colocada próxima à obra ou apenas um sinal de passagem por determinado lugar) espalhados pelas cidades.

Por vezes, pode-se considerar as origens e formas dessas manifestações como não importantes, tendo em vista que, para uma população privilegiada, não periférica, de status social mais elevado, são manifestações marginais e de regiões periféricas, que não agregam valor ou status ‘culto’/cultural para os espaços historicamente legitimados. Mas, se pensamos por outro ponto de vista, podemos questionar a necessidade que determinados indivíduos têm de atuar produzindo essas linguagens e expressões comuns à urbe.

Gagnebin (1999), na introdução de seu livro História e narração em Walter Benjamin, apresenta a ideia de um “fluxo constitutivo da memória”, ou seja, o movimento humano, histórico, social e individual que molda a identidade de um determinado lugar/espaço por meio das lembranças.

Pensando em lugares que não cedem o poder de fala e de opinião e que não permitem a mudança para a população que os vivencia, em grande maioria periférica e marginalizada, compreende-se que as expressões urbanas como movimento de revolta e como forma indireta de se fazer ouvir – “o poder de fala” –, mesmo que de forma transgressora, se mostra necessário. Por muitas vezes são essas manifestações-linguagens que criam as lembranças e a identidade de determinado espaço, o que nos permite entender a fala do autor (Gagnebin, 1999) no sentido da persistência do movimento social que os constitui. Tais manifestações delineiam ou elucidam, mas não “fecham em caixinhas” as opiniões, mazelas, necessidades e gostos de determinada região.

Heidegger afirma que

a linguagem é a expressão humana de movimentos interiores da alma e da visão de mundo que os acompanha. [...] Em sua essência, a linguagem não é nem expressão nem atividade do homem. A linguagem fala [...]. A linguagem prova indiscutivelmente que é expressão (Heidegger, 2003, p. 14).

Linguagem, nesse sentido, é toda forma de produção de sentido, e ainda a tentativa de comunicação de uma ideia, de um sentimento ou de outros elementos intrínsecos ao ser. O modo como essas ideias são transmitidas e lembradas constitui e define a cultura de um lugar. Sugerimos destacar a expressão os “movimentos interiores da alma” e as “visões de mundo que os acompanha” (Heidegger, 2003, p. 14). No momento de sua escrita, o autor – que vivenciava um tempo no qual talvez sequer se supunha a existência de manifestações como as existentes na contemporaneidade – define de forma direta o que as expressões urbanas significam para aqueles que precisam ser ouvidos e que veem nelas uma forma de (r)existência.

A “essência” da linguagem seria, talvez, a capacidade de comunicar aquilo que em alguns espaços apresentava-se como indizível.

Figura 1: Série fardo, Leo Mareco, 2022

Fonte: Arquivo do artista em rede social.

Quando muitas vezes é impossível falar (no sentido literal de articular a voz e o idioma) em espaços de poder e de decisões que afetam a sociedade, a arte (as artes visuais e outras expressões) atua como uma intérprete, ou melhor, como um mensageiro, falando por muitos, constituindo sua voz.

A obra do artista Leo Mareco nos ajuda a entender o que Kilomba (2019) ressalta como o conhecimento e o mito do universal. Apesar de o conhecimento (aqui colocado e entendido no sentido da informação) estar disponível amplamente, é como se tapássemos os olhos para não ver que, enquanto muitos tinham a possibilidade de ficar em suas casas, de certa forma protegidos e seguros durante uma pandemia que matou centenas de milhares de pessoas, outros arriscavam suas vidas trabalhando de forma precária para que terceiros usufruíssem de conforto. Esses trabalhadores, em grande maioria pobres e marginalizados, provavelmente não tiveram a proteção apropriada para que não fossem contaminados.

A autora põe em pauta a validação do que é o conhecimento “verdadeiro” e “válido”, partindo do ponto de vista da questão racial (Kilomba, 2019). Mostra-se totalmente possível entender, no contexto acadêmico – um lugar de relações de poder fortemente demarcadas –, que essas relações de poder podam e sufocam aqueles que tentam trazer à tona suas questões. Aliás, não apenas dentro da academia, mas em todo o seu entorno.

De acordo com Kilomba (2019), as manifestações/expressões artísticas urbanas têm o poder de escrever

com palavras que descrevem a minha realidade, e não com palavras que descrevem a realidade de acadêmicas/os brancas/os, pois escrevemos de diferentes lugares. Não escrevo do centro, escrevo da periferia. Este é também o lugar da minha teoria, pois situo o meu discurso na minha própria realidade [...], um discurso que tem tanto de político quanto de pessoal e poético (Kilomba, 2019, p. 58, grifos nossos).

Reitera-se que a perspectiva racial que a autora traz em seu texto pode facilmente ser aplicada em outros momentos e situações. Kilomba (2019) ainda acrescenta que

quando produzimos conhecimento, os nossos discursos não incorporam apenas palavras de luta, mas também de dor – a dor da opressão. E, quando escutamos os nossos discursos, também se escuta a dor e a emoção contidas em sua precariedade: precariedade, segundo hooks, de ainda sermos excluídas/os dos lugares a que acabamos de “chegar”, mas onde dificilmente podemos “ficar” (Kilomba, 2019, p. 59).

Não apenas as artes visuais, mas outras linguagens, como a música, com o rap e outras manifestações do hip hop, em grande medida trazem de forma lírica esses discursos de dor e mostram a precariedade de muitas existências que são desconhecidas por nós:

Eu sei, sei cansa
Quem morre ao fim do mês
Nossa grana ou nossa esperança
Delírio é equilibro
Entre o nosso martírio e nossa fé
Foi foda contar migalha nos escombros
Lona preta esticadas, enxada no ombro
E nada vim, nada enfim
Recria sozinho
Com a alma cheia de mágoa e as panela vazia
Sonho imundo só água na geladeira
E eu querendo salvar o mundo
No fundo é tipo David Blaine
A mãe assume, o pai some de costume
No máximo é um sobrenome
Sou o terror dos clone
Esses boy conhece Marx
Nós conhece a fome
Então serra os punho sorria
E jamais volte pra sua quebrada de mão e mente vazias
Quem costuma vir de onde eu sou
Às vezes não tem motivos pra seguir
Então levanta e anda, vai, levanta e anda
Vai, levanta e anda
(Emicida; feat. Rael, Levanta e anda, 2014).

Com essa reflexão, percebemos que, além de uma expressão pessoal dos sentimentos de dor e opressão, estamos em um lugar que pode não nos pertencer de fato. A precariedade em viver, seja pelo lugar, pelas condições de saúde ou financeiras, é ainda acrescida pela opressão daqueles que têm o poder para criar os discursos e manipular.

Em contraponto, a arte de conflito e de denúncia cede lugar também à valorização e à oportunidade de enaltecer quem precisa do espaço de escuta.

Figura 2: Sem título, Leo Mareco

Fonte: Arquivo do artista em rede social, 2023.

Figura 3: Sem título, Leo Mareco

Fonte: Arquivo do artista em rede social, 2023.

Nas obras acima, o artista enaltece ao colocar crianças pretas carregando instrumentos que representam suas ideias e suas atitudes de subversão aos padrões e exclusões sociais. Desse modo, coloca-se não somente a arte como um ato político – o que já diz muito quando a relacionamos à questão da resistência –, mas também se destaca que a fé nas crianças é que permitirá um futuro diferente daquele antes determinado pelo espaço e pelo poder. Podemos então ter um olhar de esperança.

Água em escassez bem na nossa vez
Assim não resta nem as barata (é memo'!)
Injustos fazem leis e o que resta pr'ocês?
Escolher qual veneno te mata
Pois somos tipo...
Passarinhos
Soltos a voar dispostos
A achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
(Emicida; Vanessa da Mata, Passarinhos, 2015).

Percebemos a combinação de duas realidades: aquilo que é e a potência do ser/ter. Como “passarinhos” que passaram por diferentes provações, encontramo-nos dispostos a buscar novos “ninhos” – lugares de escuta, acolhimento e afeto – que permitam que o melhor em nós se desenvolva. Para Kilomba (2019, p. 67-69),

a margem não deve ser vista como mero espaço periférico, de perda e privação, mas espaço de resistência e possibilidade. [...] É aqui que se põem em causa, desafiam e desconstroem as fronteiras opressivas estabelecidas pela “raça”, pelo gênero, pela sexualidade e pela dominação de classe. [...] A margem é um lugar que alimenta a nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar novos mundos e novos discursos alternativos (Kilomba, 2019, p. 67-69).

Inspirados por James Baldwin (2019), percebemos que não se trata da busca individual pela liberdade, mas de um projeto coletivo. Buscamos mudar a realidade na qual nos encontramos. A periferia, vista com homogeneidade, como se todos que vivem nela tivessem os mesmos gostos, sofrimentos e prazeres, é tida e tratada com o mesmo desprazer. Argumenta o autor:

Temos de fazer o que podemos e fortificar e salvar uns aos outros – não estamos nos afogando numa autodisplicência apática, sentimo-nos suficientemente dignos para enfrentar até mesmo forças inexoráveis para mudar o nosso destino e o destino de nossos filhos e a condição do mundo! (Baldwin, 2019, p. 7).

Por fim, uma última imagem:

Figura 4: Sem título, Leo Mareco

Fonte: Arquivo do artista em rede social, 2023.

É o “estudo da nossa própria marginalidade que cria a possibilidade de emanarmos como novos sujeitos” (Kilomba, 2019). Saber e entender o lugar de onde viemos é o que permite, como ressalta a autora, sermos “resistência e possibilidade”.

Referências

BALDWIN, James. Carta para minha irmã Angela Davis. 2019. Disponível em: https://traduagindo.com/2019/09/10/carta-para-minha-irma-angela-davis-por-james-baldwin/. Acesso em: 28 fev. 2024.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1993.

D’OLIVEIRA, Armando. Introdução. In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

EMICIDA; DA MATA, Vanessa. Passarinhos. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2015.

EMICIDA; RAEL. Levanta e anda. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2014.

GAGNEBIN, Jeanne. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1999.

GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979. 

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MARECO, Leo. Campo Grande – MS. Instagram em: @marecoleo. Disponível em: https://www.instagram.com/marecoleo/. Acesso em: 28 fev. 2024.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

Publicado em 09 de julho de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

SOUZA, Diana Cler Rodrigues de. Expressões urbanas: falar é preciso. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 24, 9 de julho de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/24/expressoes-urbanas-falar-e-preciso

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