A Literatura Infantil na construção do processo de escrita com crianças na fase pré-escolar

Monique de Figueiredo Pagels

Professora da SME/RJ, pedagoga (UFRJ), especialista em Alfabetização, Leitura e Escrita (UFRJ), e em Educação Especial e Inovação Tecnológica (UFRRJ), agente de Gestão para Resultado de Aprendizagem

Rejane Maria de Almeida Amorim

Professora associada da Faculdade de Educação da UFRJ, bolsista de Produtividade Acadêmica (PA1-Cecierj), doutora em Educação (PUC/SP), mestra em Mídia e Conhecimento (UFSC), graduada em Pedagogia e especialista em Educação (Unoesc), professora de Didática nos cursos de licenciatura (presencial) e coordenadora da disciplina Fundamentos da Educação IV do Consórcio Cederj (a distância), pesquisadora e vice-coordenadora do Grafe

Este relato de experiência sobre o uso da Literatura para a construção do processo de ensino da escrita tem por objetivo destacar a sua prática promissora no desenvolvimento da linguagem de crianças em turmas de pré-escolar, com alunos de cinco anos.

Acreditamos que as práticas alfabetizadoras têm papel importante na Educação Infantil (EI) diante de um trabalho contextualizado voltado ao lúdico, uma vez que percebemos um real interesse na escrita e na leitura por parte dos alunos na fase pré-escolar. Não se trata de realçar a prática da alfabetização, mas de construir esse processo que percorre muitos caminhos e não nega a possibilidade de escrita a quem desejar.

Considerando que o currículo da EI, múltiplo e diverso, propicia uma trajetória repleta de sentidos, a Literatura precisa fazer parte da rotina das crianças. A leitura literária colabora para o fortalecimento desse processo da escrita em crianças quando as leva às narrativas, experiências e interações. Iniciadas na infância, elas acontecem de forma natural e prazerosa, criando um laço com o desenvolvimento integral da criança, seja para a escrita, seja para o desenvolvimento da capacidade de argumentação, na construção de hipóteses ou na sua criatividade.

Quando a criança se interessa pela escrita de forma genuína e se enxerga com esse potencial, começa aos poucos a desenhar as suas hipóteses. O professor, mediador desse processo, deve ter um olhar atento para analisar o que está para acontecer e onde o desenvolvimento está latente. Pensando nessa questão, trabalhamos neste estudo com o conceito de zona de desenvolvimento proximal de Vygotsky (2007).

Além desse conceito, Vygotsky (2007) acena para a intervenção do professor no desenvolvimento da criança como um sujeito ativo que age sobre o ambiente, além de sofrer influência do seu entorno, configurando o que acontece com a criança no contexto em que está inserida. Destacamos a importância da leitura literária na escola como uma intervenção pedagógica e como um estímulo ao desenvolvimento do seu potencial de escrita.

Partimos do estudo de documentos vigentes como o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), em que encontramos orientações sobre a prática da linguagem oral e escrita, e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), base norteadora para os currículos. Utilizamos o relato de experiência como metodologia, focando no desenvolvimento de dois projetos literários desenvolvidos em 2019 em um centro integrado de educação pública (CIEP) localizado no Jacaré, na Zona Norte do Município do Rio de Janeiro. Eles criaram as condições favoráveis para o desenvolvimento do processo da escrita, apoiado em mediações, intervenções e interações às temáticas trazidas pela Literatura e entrelaçadas às experiências de vida.

Este relato está dividido em três partes:

1 - Leitura, escrita e Literatura Infantil: o que dizem os documentos?;

2 - Leitura e escrita na Educação Infantil: sentidos e significados dados pelas crianças; e

3 - Na prática, a teoria é outra?

Leitura, escrita e Literatura Infantil: o que dizem os documentos?

O Referencial Curricular Nacional para a EI (1998) é um documento norteador de muitas práticas no cotidiano da sala de aula, ajudando a nortear o trabalho:

O Referencial foi concebido de maneira a servir como um guia de reflexão de cunho educacional sobre objetivos, conteúdos e orientações didáticas para os profissionais que atuam diretamente com crianças de zero a seis anos, respeitando seus estilos pedagógicos e a diversidade cultural brasileira. (RCNEI, 1998, p. 7).

O RCNEI (Brasil, 1998) recomenda aos profissionais da EI que organizem suas práticas de forma a promover e “ampliar gradativamente as crianças, possibilidades de comunicação e expressão, além de orientar o estímulo de gêneros literários, vivências com as escritas, e apreciação pela leitura” (p. 131). Nele, há vários destaques sobre a importância dessa prática no contexto escolar, visto que a Literatura amplia as possibilidades de comunicação e expressão. O fato de ouvir histórias, ter contato com vários gêneros literários, livros, revistas e jornais favorece o interesse pela leitura e contribui para a formação de um sujeito leitor. O professor incentiva a criança tornando esse momento da leitura uma atitude frequente, com novas descobertas.

A BNCC (Brasil, 2018) se estrutura em cinco campos de experiência, estabelecendo objetivos e propostas curriculares para todas as escolas públicas e privadas de Educação Infantil. Nesse documento, com foco na EI (de 4 anos a 5 anos e 11 meses), destacamos o campo “Escuta, fala, pensamento e imaginação”, cujos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento reforçam o uso da Literatura, sugerindo ao professor o hábito da leitura:

As experiências com a literatura infantil, propostas pelo educador, mediador entre os textos e as crianças, contribuem para o desenvolvimento do gosto pela leitura, do estímulo à imaginação e da ampliação do conhecimento de mundo. Além disso, o contato com histórias, contos, fábulas, poemas, cordéis etc. propicia a familiaridade com livros, com diferentes gêneros literários, a diferenciação entre ilustrações e escrita, a aprendizagem da direção da escrita e as formas corretas de manipulação de livros (Brasil, 2018, p. 42).

De acordo com a BNCC (Brasil, 2018), a Literatura se mostra como uma porta de entrada de muitas possibilidades, permitindo a inserção no mundo da Arte, da expressão e dos diferentes gêneros que podem ser trabalhados com as crianças, como: o conto de fadas, as lendas, os clássicos, as parlendas, os trava-línguas, entre outros. Eles oferecem a oportunidade de construção de memórias e valores. Essas oportunidades afloram na EI quando não há uma limitação para o imaginário. Assim, concordamos com Queirós (2019, p. 125):

Liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são os elementos que fundam a infância. Tais substâncias são também pertinentes à construção literária. Daí a literatura ser próxima da criança. [...] Nesse sentido é indispensável a presença da literatura em todos os espaços por onde circula a infância.

No decorrer da formação acadêmica do professor nos deparamos com as muitas visões sobre a importância da Literatura na escola. Para Sônia Kramer, a Literatura “nos permite o sentimento de aventura da descoberta, da compreensão do outro, ela nos ajuda a sentir a dor do outro, e pensando no outro, ela nos incita a pensar sobre nós mesmos” (Freitas, 2002, p. 2).

Nesse ponto, podemos refletir sobre a Literatura de forma não escolarizada. Seu propósito principal é oportunizar às crianças experiências além do seu cotidiano, com a Literatura perpassando os muros da escola e sendo levada para dentro do seu ambiente familiar. Não podemos aqui nos eximir de uma Literatura que tenha como veículo principal a escola. Para Soares (2011) essa escolarização é inevitável: “Defendemos que essa escolarização é inevitável, porque é da essência da escola a instituição de saberes escolares, que se constituem pela didatização ou pedagogização de conhecimentos e práticas culturais” (2011, p. 33).

Na maior parte das escolas, a contação de histórias está no cotidiano das crianças desde o berçário, pois ainda quando bem pequenas o docente oferece e dá acesso aos livros de diversos formatos para manuseio e brincadeiras. Conforme vão crescendo, começam a reproduzir o adulto na leitura do livro. As crianças folheiam os livros e contam a história da sua forma, muitas delas acompanhadas de músicas. Para Smolka (2008), a Literatura Infantil é um meio profundamente lúdico de linguagem escrita, estabelecendo no processo de aquisição da escrita um significanteelemento mediador.

Leitura e escrita na Educação Infantil: sentidos e significados dados pelas crianças

O ambiente em que a criança está inserida pode proporcionar uma prática alfabetizadora. A criança partilha de um mundo simbólico com experiências vividas em seu cotidiano que já a fazem interpretar signos antes mesmo da sala de aula. Nesse sentido, a escola pode oferecer experiências diversas com a escrita, como: cartazes e listas de chamadas - desde que esses estímulos façam sentido para as crianças. A escrita deve ser "relevante à vida" (Vygotsky, 2007, p. 143), integrando suas experiências vividas. Éessa ligação entre os saberes que a criança já traz consigo de casa. O professor participa como mediador desse processo, tendo como ponto de partida a realidade da criança. O processo permite um conhecimento de mundo significativo. Na turma da Educação Infantil trazida para este trabalho, algumas das propostas de leitura e escrita desenvolvidas foram: roda de leitura e conversa, trabalho com revistas e jornais, lista de rotina diária e escrita espontânea.

A rotina deve promover conhecimentos que ocorram a todas as crianças para não ser privilégio de um grupo. A criança deve ser colocada como protagonista do processo. O olhar do docente deve ser cauteloso para o processo em que ela está inserida a fim de ampliar as suas possibilidades e descobertas. A intervenção do professor é essencial, buscando entender a realidade da criança, proporcionando a ela diferentes formas de auxílio que facilitem a sua aprendizagem. “A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o momento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer” (Freire, 2019, p. 39). Compreender que cada criança tem um ponto de partida diferente vai na contramão do pensamento de uma escola onde todos aprendem da mesma forma em um mesmo ritmo.

As experiências das crianças em relação ao universo da leitura e escrita vêm de muito antes da sua entrada em sala de aula. No início do ano letivo as crianças da fase pré-escolar chegam à escola com uma leitura de mundo. A maior parte delas conhece símbolos e escritas cotidianas, seja por anúncios, embalagem de produtos ou outros espaços/atividades do seu dia a dia. Por esse motivo, entendemos que o processo da escrita não ocorre de forma linear, mas de forma processual. Para Freire (2019) a leitura do mundo precede a leitura da palavra.

Neste estudo, identificamosanecessidade de mediação de determinadas situações que estavam em processo de maturação nos alunos. Entendendo que para algumas crianças a escrita de palavras já fazia sentido, a mediação buscou trabalhar na zona de desenvolvimento proximal, uma vez que ela já é o produto amadurecido e compreendido pela criança. Para Vygotsky (2007, p. 164),

a zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.

Vygotsky (2007) prevê ainda que a zona de desenvolvimento proximal é o instrumento facilitador para os professores no sentido de facilitar o entendimento a respeito do desenvolvimento das crianças. Ele reitera que o professor poderá usar esse método para se apropriar não somente do que a criança já internalizou, mas do seu processo em formação, o que ainda está para desabrochar.

Muitas perguntas permearam o estudo que aqui apresentamos, tentando delinear o desenvolvimento e o progresso das crianças, assim como sugere Smolka (2008) a respeito dealguns questionamentos compartilhados na prática: “Como percebemos as crianças? O que elas dizem sobre a sua vida, seu cotidiano? O que conhecem sobre a escrita no contexto em que vivem?” (2008, p. 23).

A análise desses pontos se tornou primordial para dar vida aos projetos de Literatura, uma vez que a turma era uma constante leitora por conta das rotinas da roda de leitura. Instigar as crianças a falarem das suas vidas e conhecer quais eram as suas preferências, percebendo como elas se apropriavam da Literatura dos livros sugeridos ou escolhidos por elas, nos proporcionou a construção de um ambiente facilitador desse processo.

Esclarecemos que as práticas produzidas não têm o objetivo de evidenciar a capacidade de determinada criança ou de alfabetizá-la na fase pré-escolar, pois entendemos a alfabetização como um constante movimento. A construção da escrita perpassa muitos caminhos. A escrita das crianças, por meio dos rabiscos e desenhos, já representa a sua história. A leitura que ela faz dos desenhos e das situações rotineiras da sala de aula, mostra a sua realidade. Trazer Literatura para a sala de aula, a partir dos diálogos e da convivência com os amigos, serevela uma prática pedagógica significativa. Essas práticas não podem ser limitadas a um processo individualista e solitário (Smolka, 2008).

E na prática, a teoria é outra?

Refletindo sobre os projetos realizados neste relato, percebemos que as teorias estão enraizadas em nossa formação e se sucederam de forma natural. De acordo com Amaral (2007), tecendo a teia onde teoria e prática se entrelaçam no registro de observações feitas pelo professor, apresentamos recortes de vivências com uma turma no ano 2019, em uma escola municipal na zona norte do Rio de Janeiro, com alunos na faixa etária de 5 e 6 anos de idade, em pequenas situações nas quais as crianças puderam se colocar como leitoras e escritoras em situações reais dentro do grupo.

Retomamos, neste momento, o nosso principal objetivo, que é analisar as experiências da Literatura no processo de construção da escrita na Educação Infantil, tendo como base a experiência realizada no cotidiano escolar, uma vez que a Literatura “cria novas condições e novas possibilidades da troca de saberes, convocando os ouvintes/leitores a participarem como protagonista no diálogo que se estabelece” (Smolka, 2008, p. 80).

A sala de aula na Educação Infantil traz diversas oportunidades de crescimento e construção de saberes, uma vez que não possui uma norma sistemática de avaliação (como provas e avaliações regulares). Ela permite que se usufrua desse ciclo de forma natural, por meio das experiências.

Dentre alguns projetos realizados com a turma de pré-escola II, em 2019, destacamos os projetos de Literatura realizados com os livros Menina bonita de laço de fita, de Ana Maria Machado, e Rápido como um Gafanhoto, de Audrey e Don Wood.

Projeto 1: Livro Rápido como um gafanhoto

O primeiro projeto a ser trabalhado foi com o livro Rápido como um gafanhoto, (de Audrey e Don Wood). O livro faz associações entre animais e características humanas.

Figura 1: Capa do Livro

Iniciamos o momento da leitura explorando o livro e suas ilustrações. O livro já chama a atenção por seu tamanho grande e seu colorido. Após ler o livro e ser interrompida por algumas crianças quando algo lhes chamava a atenção, continuamos com a roda de conversa: momento em que cada criança tem a oportunidade de falar se gostou da história, da personagem, o que mais gostou, dentre outros, pois “quando entro em sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, e suas inibições; um ser crítico e inquietador” (Freire, 2019, p. 47).

Quando as perguntas cessaram, começamos a listar em uma cartolina os adjetivos que o livro estabelecia: rápido, lento, pequeno, grande, triste, feliz, bom, mau, frio, quente, frágil, forte, barulhento, quieto, valente, meigo, corajoso, medroso, educado, travesso, preguiçoso e trabalhador. Nesse momento, a professora foi a escriba. A partir dessas escritas, as crianças puderam se identificar, de forma voluntária, associando qual qualidade lhes era mais próxima. A maior parte das crianças escolheu rápido, talvez porque a lista fosse grande demais para lembrarem de todos os adjetivos e, também, porque trabalhamos o termo que está em destaque já no título do livro. Duas crianças (irmãos gêmeos) se enxergaram em um adjetivo pejorativo. Entendemos que é muito importante desconstruir essas relações, ouvindo e percebendo o que o aluno tem a dizer, apoiando-o para gerar autoconfiança nele.

Para oferecer mais sentido ao projeto, em um segundo momento, fomos até o pátio da escola e começamos a relacionar os animais que encontramos aos adjetivos que conhecemos no livro trabalhado. Primeiro, ao passear pelo extenso pátio do CIEP, foram registrados os bichinhos que as crianças encontravam: formiga, passarinho, gavião, pombo, lagarta e borboleta. Após a incansável busca por outros, voltamos para nossa sala e os relacionamos com as suas possíveis qualidades.

Durante o projeto, sempre conversávamos sobre a importância de compreendermos o outro como um ser diferente de nós,respeitando as diferenças, sem classificar o amigo, mas o reconhecendo a partir de suas qualidades. Por meio dessa e de outras interações, percebemos como se faz imprescindível a leitura literária na escola. Ela é um potencial criador de oportunidades de interação social e de reconhecimento de si e do outro, para além de uma construção de identidade positiva.

Depois desse movimento, realizamos uma brincadeira sobre como enxergamos a nossa turma. Foram sugeridas as palavras que estavam no livro. Estávamos abertos a novas possibilidades. Esse foi um momento muito interessante e de bastante interação. Ouvimos todos com muito cuidado e registramos as palavras sugeridas pelas crianças que alvoroçadas apareceram com outras palavras, além das usuais: quente e chata, por exemplo. Pedimos que a criança descrevesse o que entendia como quente para que então pudéssemos transcrevê-la para o nosso painel (Figura 2). Foi muito curioso o entendimento da palavra ‘quente', pois algumas falaram do sentido literal. Sugeri que olhássemos a palavra no dicionário para então decidirmos se era viável ou não colocá-la em nosso mural. Na busca pelo sentido da palavra, o dicionário a define como: (sentido figurado) vivo, animado, acalorado. Diante da leitura do significado da palavra quente, a turma optou por relacioná-la em nosso mural como uma das qualidades da nossa turma.

Ao escrever ‘quente’ no quadro, um dos alunos relacionou a sílaba ‘que’ ao nome da professora (Monique), que sempre estava escrito no canto do quadro. De forma espontânea, alguns alunos também relacionaram os seus nomes aos adjetivos descritos pela turma, associando a letra e/ou a sílaba ao seu nome e aos nomes dos amigos.

A última etapa, mas não findada do projeto (por considerar que muitos desdobramentos aparecem à medida que as crianças vão sugerindo), foi a escrita das hipóteses dos alunos a partir das experiências que tiveram durante todo o projeto. Foi sugerido que fizessem um desenho que os representasse e uma escrita que sugerisse a maneira de como eles se enxergavam. Nesse momento, algumas crianças copiaram aleatoriamente as letras do alfabeto e outras construíram escritas a partir do som das vogais.

Durante a escrita, conseguimos identificar algumas estratégias que auxiliaram as crianças que estavam com dificuldades de escrever, pois algumas crianças insistiam em dizer que não sabiam escrever da forma convencional de escrita. Nesse sentido, começamos a colocar no quadro palavras que as crianças já sabiam ler/escrever. Por exemplo, alguns produtos do cotidiano. Mostrar para as crianças o que elas já sabiam identificar com imagens/desenhos as encorajou ao ato da escrita. Assim, podemos

delinear o futuro imediato da criança e seu estado dinâmico de desenvolvimento, propiciando o acesso não somente ao que já foi atingido através do desenvolvimento, como também àquilo que está em processo de maturação (Vygostsky, 2007, p. 98).

Figura 2: Quadro

Fonte: Arquivo das autoras.

Figura 3: Capa do livro

Nesse primeiro momento, trabalhamos com a releitura da história da maneira que os alunos a entenderam (de forma voluntária, os alunos puderam contar a história, como na Figura 4). Diante disso, a turma se manifestou concordando ou não com o que era falado. No percurso do projeto, a oralidade foi explorada a partir das diversas situações, entendendo que muitas vezes o problema da escrita vem da pouca oralidade e da expressão contida. Estimular a confiança das crianças é fundamental para mostrar que é possível a participação, valorizando cada conquista do seu desenvolvimento para que se sinta segura e motivada.

Figura 4: Contação da história

Projeto 2: Livro Menina bonita do laço de fita

A criança que recontava a história (Figura 4) estava com grande dificuldade de se comunicar com os amigos. Uma criança tímida que usava a expressão corporal para demonstrar seus sentimentos. A partir da sua inserção nas atividades do projeto, a grande conquista em recontar a história de Menina bonita do laço de fita lhe trouxe autonomia e revelou o seu desejo em integrar-se às atividades propostas. Nesse sentido, entendemos que a criança mencionada tinha um ponto de partida diferente em relação aos demais amigos da turma. O professor, como mediador e com o auxílio da Literatura, possibilitou a sua inserção no mundo da leitura como protagonista da sua história.

Neste projeto trabalhamos a identidade racial das crianças negras, a fim de que se sentissem pertencentes e confiantes. Destacamos que nessa turma ocorreram situações do cotidiano em que parte das meninas rejeitava o cabelo por não ser liso. Citamos aqui em especial uma aluna com baixa autoestima. Uma forma que encontramos de abordar o tema foi escolher a criança para ser a representante da história, a “menina bonita” da nossa turma. A escolha dela foi realizada com uma votação em sala de aula. Seu nome foi colocado no quadro e todos que concordassem poderiam copiar o seu nome para colocar em uma urna improvisada com caixa de sapato.

Figura 5: Aluna mostra um cartaz com a frase Menina bonita do laço de fita

Após a escolha da nossa “menina bonita”, propusemos à turma que escrevesse um convite para a participação na festa da menina bonita, em sala. Juntos, elaboramos um convite com data e hora para que pudéssemos imaginar nossa festa. A partir desse projeto, elaboramos alguns desdobramentos, como a escrita de um trabalho coletivo. Indicamos a escrita do nome do livro, Menina bonita do laço de fita com recortes em jornal. Dividimos a turma em dois grupos: um deles precisava recortar as letras da palavra “Menina bonita” e o outro, as letras de “laço de fita”. É interessante ressaltar o processo de interação com o outro, conforme destaca Vygotsky: “Numa atividade coletiva ou sob a orientação de adultos, usando a imitação, as crianças são capazes de fazer muito mais coisas” (2007, p. 101).

Figura 6: Crianças em atividade de recorte

Figura 7: Crianças recortam jornais

Percebe-se que a interação entre elas permitiu que aquelas crianças com dificuldade de encontrar alguma letra fossem auxiliadas pelas mais “experientes”. Um dos grupos organizou a forma como trabalhariam e uma menina, com mais habilidade, passou a recortar as letras encontradas, enquanto os outros as procuravam.

Considerações finais

Ao refletir sobre os projetos apresentados, registramos um avanço da turma em relação à organização da escrita e seus saberes, como também a ampliação do vocabulário, pois foram estimulados a serem potenciais criadores de sua história, recontamos durante muitas aulas as histórias preferidas e criando suas próprias histórias. Como cita o RCNEI,

A narrativa pode e deve ser a porta de entrada de toda criança para os mundos criados pela literatura. “A criança aprende a narrar por meio de jogos de contar e de histórias. Como jogos de contar entendem-se as situações em parceria com o adulto, os jogos de perguntar e responder, em que o adulto, inicialmente, assume a condução dos relatos sobre acontecimentos, fatos e experiências da vida pessoal da criança. Estimulando as perguntas e respostas, o professor propicia o estabelecimento da alternância dos sujeitos falantes, ajudando as crianças a detalharem suas narrativas (Brasil, 1998, p. 129).

Relacionando tais práticas envolvendo a Literatura e as diversas possibilidades de construir a escrita, partindo do princípio de que a escrita vai muito além do aprender a escrever para então escrever, as crianças puderam se aventurar nesse universo, desenvolvendo segurança para se apropriarem desse sistema no registro do que desejavam.

Ambos os projetos foram ao encontro de trabalhos coletivos, com a oportunidade de cada criança se expressar cercada de interação com as demais, entendendo que ela fará amanhã sozinha o que hoje faz no coletivo, por cooperação (Vygotsky apud Smolka, 2008, p. 58), partimos do princípio de que a construção do processo de escrita leva em conta os papéis e as funções sociais, apoiados na importância na construção dos saberes.

Após a conclusão dos dois projetos notamos, claramente, o avanço das crianças em relação ao processo de construção da escrita por meio das experiências com a Literatura. A progressão, nesse sentido, foi notada pelos registros feitos em sala daparticipação da turma, além da ampliação do vocabulário, da interação com o outro e de como a criança se vê como escritora/leitora.

No exercício da docência, é necessário possibilitar conhecimentos para que a criança contrua significados essenciais, relacionando a teoria e a prática. Sem essa associação, “valorizando o que as crianças já conhecem, podemos trazer à sala de aula saberes socialmente construídos na prática comunitária” (Freire, 2019, p. 31) Assim, tecer esses caminhos, nos possibilitauma prática com sentido. Concordamos com Vygotsky, quando ele afirma que

muitos educadores, reconhecendo que a velocidade de aprendizado pode variar de criança para criança, isolam os "aprendizes lentos" de seus professores e companheiros através do uso de instrução programada e muitas vezes mecanizada (Vygotsky, 2007, p. 164).

Colocamo-nos do lado oposto dessa prática. Assim, buscamos nesses dois projetos a participação das crianças como protagonistas e percebemos que nesse intenso movimento, com trocas de experiências e diálogo,há possibilidades de escrita que transcorrem com naturalidade, fazendo sentido para as crianças.

A mediação do processo possibilitou que muito do que estudamos teoricamente aparecesse na classe, assim como o desejo de investir em práticas autorais, colocando todos como sujeitos de suas aprendizagens. Isso nos permitiu visualizar a construção de hipóteses de escrita enquanto refletiama respeito de seus aprendizadosna escrita, conforme nos fala Freire:

A prática educativa como processo do conhecimento e não como processo de transmissão do conhecimento é uma coisa linda, porque enquanto o educando começa a conhecer o objeto proposto, o educador reconhece o objeto no processo de conhecimento que o educando faz, quer dizer, no fundo é um ciclo de conhecer, que inclusive confirma o conhecimento. Esse processo é de uma indiscutível boniteza (Freire, 2007, p. 175).

Referências

AMARAL, Heloísa. Na prática a teoria é outra? Revista Na Ponta do Lápis, São Paulo, ano III, nº 5, 2007.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. v. 2: Formação Pessoal e Social. Brasília: MEC/SEF, 1998.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 59ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. Indaiatuba: Vila das Letras, 2007.

FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Leitura, escrita, formação de professores: velhos temas de pesquisa numa “entrevista com Kramer” em novo formato. Teias, Rio de Janeiro, ano 3, nº 5, jan./jun. 2002.

MACHADO, A. M. Menina bonita do laço de fita. Il. Claudius. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2010.

SMOLKA, A. L. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, Aracy Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Brina; MACHADO, Maria Zélia Versiani (org.). Escolarização da leitura literária. 2ª ed., 3ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de; ABREU, Júlio (org.). Sobre ler, escrever e outros diálogos. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

VYGOTSKY, Lev S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

WOOD, A.; WOOD, D. Rápido como um gafanhoto. Il. Gilda de Aquino. São Paulo: Brink-Book, 2008.

Publicado em 23 de julho de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

PAGELS, Monique de Figueiredo; AMORIM, Rejane Maria de Almeida. A Literatura Infantil na construção do processo de escrita com crianças na fase pré-escolar. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 26, 23 de julho de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/26/a-literatura-infantil-na-construcao-do-processo-de-escrita-com-criancas-na-fase-pre-escolar

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