Uma perspectiva histórica para formação de professores de Biologia: as contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica para organização de uma disciplina
Simone Sendin Moreira Guimarães
Doutora em Educação Escolar (UFG)
Cristina da Costa Krewer Mascioli
Doutora em Ciências Biológicas (UFG)
Rones de Deus Paranhos
Doutor em Educação (UFG)
A formação de professores é um desafio no Brasil. Atrelada à desvalorização sociofinanceira, a oferta dos cursos de licenciatura pelas instituições de Ensino Superior de maneira “acelerada”, em pouco tempo, de forma parcelada ou modular, a distância (sem projeto próprio) ou como “complemento” de outras profissões são só alguns enfrentamentos para formar um bom professor. Essa lógica, que considera a profissão docente apenas como complemento de outra profissão, está associada ao histórico modelo formativo que seguia a fórmula “3+1”.
Nesse modelo, as disciplinas pedagógicas, encaradas quase como um complemento técnico e com duração de um ano, vinham depois de três ou quatro anos de disciplinas de conteúdo específico. Assim, para formar um professor era necessário um conjunto de disciplinas “científicas”, apresentadas em um tempo mais longo, e outro de disciplinas pedagógicas, que, ministradas em no máximo um ano, forneceriam as bases pedagógicas para que um biólogo, por exemplo, pudesse se “transformar” em um professor de Biologia.
Os cursos de formação alinhados a essa perspectiva (em especial até o final do século XX) tinham, em geral, duas unidades/departamentos/institutos distintos normalmente justapostos na tarefa de formar professores de Ciências/Biologia: os institutos responsáveis pelo domínio dos conteúdos específicos da área a ser ensinada e as faculdades/áreas da Educação, responsáveis pelo preparo pedagógico-didático (Saviani, 2009).
Assim, quando se discute a formação de professores de Ciências/Biologia, é necessário considerar o dilema que, muitas vezes, está no cerne da profissionalização: a dissociação entre os dois aspectos indissociáveis da função docente, a relação forma-conteúdo. Para Saviani (2009), as faculdades de Educação tendem a reunir os especialistas das formas abstraídas dos conteúdos, enquanto os institutos e faculdades correspondentes às disciplinas da Biologia reúnem os especialistas nos conteúdos abstraídos das formas que os veiculam. Atrelada a essa dissociação entre forma e conteúdo, há a dissociação entre o produto e os processos que originaram os produtos (conceitos científicos) que são ensinados na escola nas aulas de Ciências/Biologia. Para Kopnin (1978), a superação da lógica formal necessita da compreensão de que um conceito (científico) é uma ideia que se desdobra ao longo do tempo (história) e que, para compreender a essência de um objeto (conceitos científicos/biológicos), é necessário resgatar o desenvolvimento de seu processo histórico.
Quando se separa o processo de seu produto, e o ensino corre na forma de definições, perde-se a essência do objeto e a aprendizagem fica prejudicada, constituindo-se apenas em atividades mentais de memorização. Assim, para realmente conhecer um objeto (conceito) é fundamental conhecer sua história. Ou, como indica Saviani (2013), é necessário que estudantes (principalmente futuros professores) “não apenas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas aprendam o processo de sua produção” (p. 9). Porém, nos cursos de formação de professores de Biologia, percebe-se a centralidade na apresentação de produtos (normalmente no formato de definições) em detrimento dos processos (atividade científica sócio-historicamente contextualizada).
No sentido de organizar um componente curricular que pretende discutir a disjunção forma versus conteúdo, bem como a separação produto versus processo na formação de professores de Biologia é que se insere a proposta pedagógica apresentada aqui. Para isso, a organização teórica do componente curricular que se pretende explicitar considerou como referenciais teóricos a história e a filosofia da Biologia, expressas nos estatutos do conhecimento biológico (Nascimento Jr., 2010; Nascimento Jr.; Souza; Carneiro, 2011; Nascimento Jr.; Souza, 2016), a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) (Saviani, 2009; 2013) e sua didatização (Gasparin, 2012).
Sinteticamente, para Nascimento Jr. (2010), a partir de uma análise da história e da filosofia da Biologia, é possível elencar os elementos necessários para compreensão do conhecimento biológico numa perspectiva histórica e filosófica. Para o autor, eles podem ser apresentados na forma de quatro estatutos estruturantes: 1) o Estatuto Ontológico, que traz em si as questões centrais da visão de mundo da Biologia sobre seu objeto de investigação; 2) o Estatuto Epistemológico, relacionado ao “como” o conhecimento científico é produzido, ao método científico, ao conceito de teoria científica e modelos explicativos para Biologia, além do sentido de lei nessa ciência; 3) o Estatuto Histórico-Social, que diz respeito ao contexto histórico no qual o pensamento biológico foi construído; e 4) finalmente, o Estatuto Conceitual, que se relaciona aos temas estruturantes que sintetizam as principais áreas da Biologia, assim como as cinco teorias responsáveis pelos seus fundamentos (que constituem os elementos centrais da Biologia); esses conceitos (considerados nucleares) envolvem a ideia de: transmissão (Teoria da Herança); organização (Teoria Celular); equilibração (Teoria da Homeostase/Equilíbrio Interno); interação (Teoria do Ecossistema) e variação (Teoria da Evolução).
Na proposta da disciplina/componente curricular Educação em Ciências e Biologia I (ECB I) relatada aqui, esses conhecimentos biológicos são apresentados atrelados a uma proposta pedagógica explícita, a PHC. Assumimos aqui que a PHC é uma proposta pedagógica transformadora, que tem como ponto de partida e de chegada a prática social dos sujeitos que aprendem (Gasparin, 2012) para que, a partir da mudança nessa prática social, seja possível superar as desigualdades da sociedade brasileira (Saviani, 2013). Para ele, a PHC é uma teoria que procura reconhecer os limites da educação e superá-los por meios da reorganização dos sistemas de ensino, bem como pela elaboração de processos pedagógicos. Quando pensamos em seus fundamentos, é possível perceber que sua base é a lógica dialética do movimento real – histórica.
Em síntese, a formação defendida nessa proposta é aquela que busca desenvolver no futuro professor “o exercício de sua autonomia intelectual no processo de organizar a atividade de ensino dos conceitos científicos” (Gasparin, 2012, p. 4). Essa dinâmica considera que o futuro professor saiba a natureza dos conceitos nucleares da Biologia a serem ensinados (Biologia) e os aspectos teórico-pedagógicos da organização do trabalho docente na relação com as metodologias empregadas para esse ensino (Guimarães; Paranhos, 2020).
Contexto da proposta
O curso de Licenciatura em Ciências Biológicas no qual essa disciplina e a proposta formativa estão inseridas é antigo (mais de 40 anos), oferecido pela Universidade Federal de Goiás na regional Goiânia/GO no contexto do Instituto de Ciências Biológicas (ICB). Esse curso teve seu projeto pedagógico (PPC) reestruturado pela última vez em 2015. Na época, o Núcleo Docente Estruturante (NDE) considerou, entre outros elementos, a importância do domínio conceitual, sócio-histórico, epistemológico e ontológico da Biologia na sua relação orgânica com os elementos pedagógicos e políticos inerentes à prática pedagógica (UFG, 2017).
O curso é oferecido pelo ICB em dois turnos: integral (com duração mínima de quatro anos) e noturno (com duração mínima de cinco anos). Em 2023, tem 277 estudantes ativos; aproximadamente 65 professores compõem o seu corpo social. Desses, a maior parte está vinculada ao ICB, porém há também docentes do Instituto de Química (IQ), do de Física (IF), da Faculdade de Educação (FE) e do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP), entre outros institutos que eventualmente ofertam componentes curriculares ao curso.
Em 2015, durante a reestruturação do PPC, foi implementada a disciplina Ensino de Ciências e Biologia I (ECB I) (UFG, 2019), oferecida pelo Departamento de Educação em Ciências (DEC/ICB). Desde sua efetivação, a disciplina ECB I vem desenvolvendo uma formação docente a partir dos Estatutos do Conhecimento Biológico, propostos por Nascimento Jr. (2010), conferindo integração entre os processos da ciência e seus produtos. Em 2018, a disciplina ECB I agregou a essa proposta formativa a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), desenvolvida por Saviani (1984; 2009; 2013) como suporte pedagógico, considerando também a sua didatização elaborada por Gasparin (2012), gerando, assim, mais organicidade entre forma e conteúdo na formação dos futuros professores. A disciplina é oferecida aos estudantes, no fluxo regular, no 3º período (segundo ano) do curso em seu turno integral e no 5º período no turno noturno.
O projeto aqui relatado foi desenvolvido na disciplina ECB I (UFG, 2019), em 64h/a (quatro aulas de 50 minutos por semana) no primeiro semestre de 2019 (entre 14 de março e 11 de julho de 2020), com 33 estudantes (a maioria do fluxo, com entrada em 2018), um monitor (graduação) e uma estudante de mestrado em estágio de docência pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências e Matemática (PPGECM) da UFG. A disciplina foi conduzida no espaço físico do Laboratório de Estágio Supervisionado e Ensino de Ciências (Lesec). Na graduação, além do desenvolvimento das aulas, o espaço é usado pelos estudantes para o preparo das atividades a serem apresentadas na disciplina ECB I e posteriormente nos estágios. O Lesec é um espaço também utilizado por estudantes de pós-graduação (mestrado e doutorado) do PPGECM/UFG, o que promove a integração entre graduação (formação inicial) e pós-graduação (formação continuada/pesquisa) e colabora para o fortalecimento dos processos formativos de todos os envolvidos.
Desenvolvimento da proposta
Objetivo da disciplina
Considerando a Pedagogia Histórico-Crítica como fundamento pedagógico, o objetivo da disciplina foi debater as bases teórico-epistemológicas do ensino de Ciências/Biologia, problematizando a relação entre o conhecimento científico e a educação escolar para ampliar a consciência dos futuros professores sobre o ato de ensinar-aprender Ciências da Natureza. Foram objetivos específicos da disciplina:
- Compreender as bases epistemológicas do ensino de Ciências/Biologia a partir dos Estatutos do Conhecimento Biológico (Ontológico, Sócio-histórico, Epistemológico e Conceitual) para subsidiar teoricamente o futuro professor;
- Problematizar o conhecimento científico e a natureza da ciência (NdC) na sua relação com a escola para superar o ensino de uma ciência a-histórica e acrítica;
- Discutir os planos de curso, unidade e aula a partir da Pedagogia Histórico-Crítica para possibilitar a análise crítica e a proposição de intervenções relacionadas à dinâmica escolar;
- Estimular o movimento de planejar, desenvolver e avaliar atividades pedagógicas para ampliar a autonomia intelectual e profissional dos futuros professores.
Para elaboração desses objetivos, foram considerados o perfil do egresso do curso (UFG, 2017) e a fundamentação teórica já indicada e relacionada à história da Biologia e à PHC.
Conteúdos curriculares
O projeto desenvolvido na disciplina ECB I foi organizado em espiral para que a todo o tempo os conteúdos anteriores fossem acessados com nova profundidade no processo formativo. Para descrever de maneira mais clara, os conteúdos trabalhados estão reunidos em cinco blocos. Considerando os objetivos formativos da disciplina, em cada bloco descrevemos, além do conteúdo, a pergunta problematizadora (usada na disciplina como elo entre a prática social (profissional) dos futuros professores e a instrumentalização) e os textos lidos pelos estudantes, que fundamentavam o debate e as demais atividades pedagógicas. A seguir, apresentamos esses três elementos e uma pequena descrição das atividades realizadas.
- Bloco 1
- Conteúdos: caracterização do conhecimento científico; a autonomia da Biologia; os Estatutos do Conhecimento Biológico.
- Pergunta problematizadora: todas as ideias sobre ciência são válidas? O que caracteriza a Biologia enquanto ciência?
- Referências teóricas principais: Nascimento Jr.; Souza; Carneiro (2011); El-Hani (2006).
- Atividades: debates; elaboração e apresentação de um mapa conceitual/linha do tempo sobre a construção histórica de um conceito biológico; produção de sínteses (textos sobre as aulas).
- Bloco 2
- Conteúdos: n natureza da ciência (NdC); a organização da Biologia na Educação Básica: conceitos nucleares da Biologia.
- Pergunta problematizadora: qual é a natureza da Biologia enquanto ciência? Quais conceitos científicos biológicos são nucleares? Por quê?
- Referências teóricas principais: 1) Bizzo (2012); Beltran; Saito; Trindade (2014).
- Atividades: debates; avaliação/análise de livro didático; produção de síntese (prova teórica individual).
- Bloco 3
- Conteúdos: teorias pedagógicas; a PHC (histórico e fundamentos); elementos da PHC (problematização/instrumentalização/catarse).
- Pergunta problematizadora: como e por que “ensinamos como ensinamos”? É possível superar a “intuição” ao elaborar uma aula?
- Referências teóricas principais: Saviani (2013); Gasparin (2012).
- Atividades: debates; elaboração de planos de aula: produção de síntese imagética.
- Bloco 4
- Conteúdos: planejamento curricular; elementos do plano de ensino; a didatização da PHC.
- Pergunta problematizadora: ao repensar uma aula e elaborar um plano é possível aprender mais? Como superar um plano de ensino “Frankstein”?
- Referências teóricas principais: Gasparin (2012).
- Atividades: debates; reelaboração de planos de aula.
- Bloco 5
- Conteúdos: o ato pedagógico; avaliação na PHC.
- Pergunta problematizadora: como o trabalho coletivo auxilia as produções individuais? É possível conduzir o processo ensino-aprendizagem sem foco na avaliação como punição?
- Referências teóricas principais: Gasparin (2012); Gasparin (2011).
- Atividades: execução das aulas preparadas; avaliação individual e coletiva das atividades.
Procedimentos didáticos
Como indicado anteriormente, a disciplina ECB I desenvolvida no primeiro semestre de 2019 apresentou carga horária de 64h distribuídas em 4h/a semanais. No primeiro momento, eram 35 estudantes matriculados; posteriormente, houve dois cancelamentos e o semestre transcorreu com 33 alunos ativos e a presença de um monitor (graduação) e uma aluna de pós-graduação.
Nos dois primeiros dias de aula, foram realizados uma dinâmica de apresentação e um diálogo para explicitar a prática social inicial aos estudantes. Nesse momento, os professores recolheram elementos sobre as impressões dos estudantes acerca do ensino de Biologia e suas experiências como alunos desse componente na Educação Básica. Também foram levantados os conhecimentos prévios dos estudantes sobre o papel da escola, Educação, ensino de Biologia e prática pedagógica.
Com base nesses elementos, o plano de curso da disciplina ECB I foi finalizado e organizado num modelo espiral. Assim, cada um dos temas debatidos foi retomado na relação com os temas posteriores em mediações que complexificavam as relações das teorias com as práticas a serem desenvolvidas na Educação Básica brasileira.
Novamente, para organizar melhor a descrição da proposta neste artigo, utilizaremos a estrutura do tópico anterior e a divisão em cinco blocos temáticos. No geral, cada um dos blocos teve início com uma pergunta (problematização) cuja resposta foi perseguida a partir do debate (mediado) sobre um texto previamente lido. Esse debate e as explicações da professora sobre o tema da aula constituíram o processo de instrumentalização. No final, pequenas sínteses (escritas ou imagéticas) foram produzidas. Essas sínteses foram consideradas momentos de catarse (parcial) do processo, visto que foram o produto da síncrese-análise da temática estabelecida para a aula. Além disso, foram desenvolvidas outras atividades, como avaliação/análise de livro didático, produção de linhas do tempo e mapas conceituais, entre outras.
- Atividades do Bloco 1:
- Problematização: todas as ideias sobre ciência são válidas? O que caracteriza a Biologia enquanto ciência?
- Debate: um texto previamente indicado (Nascimento Jr.; Souza; Carneiro, 2011) e lido foi utilizado como mediações de suporte (na relação com a problematização). Para esse debate, os estudantes já trouxeram por escrito algumas questões que facilitaram a dinâmica da atividade. Nesse bloco, o tema discutido mais recorrentemente (além dos estatutos da Biologia) foram as concepções equivocadas de ciência presentes nas aulas de Biologia na Educação Básica.
- Mapa conceitual/linha do tempo sobre a construção histórica de um conceito biológico: em grupo, os estudantes escolheram um conceito biológico atrelado a uma das cinco teorias biológicas (herança, homeostase, celular, ecossistema e evolução). Para essa pesquisa os estudantes foram estimulados a consultar os artigos publicados na Revista de Filosofia e História da Biologia. Essa atividade não foi construída em apenas uma aula, visto que demandou várias pesquisas em artigos especializados sobre história da Biologia para a compreensão do conceito e para a produção do seu percurso lógico-histórico (sempre na relação com o ensino).
- Produção de sínteses: no final de cada bloco (aproximadamente três semanas), os estudantes construíram sínteses. Nesse primeiro bloco, a síntese considerou o debate na relação com as pesquisas sobre os conceitos biológicos escolhidos e seu percurso lógico-histórico de construção.
Corroborando Guimarães e Paranhos (2020), é importante explicitar que a formação que se defende aqui é aquela que possibilite o exercício de sua autonomia intelectual ao organizar a atividade de ensino. Entre outras coisas, isso envolve a demarcação dos conceitos nucleares a serem ensinados, que serão apreendidos pelos estudantes via história da Biologia e a compreensão das relações dos aspectos epistemológicos, ontológicos, sócio-históricos e conceituais. A Figura 1, proposta por Nascimento Jr., Souza e Carneiro (2011), sintetiza esse movimento relacional.
Figura 1: Síntese dos Estatutos do Conhecimento Biológico
Fonte: Nascimento Jr., Souza e Carneiro, 2011, p. 232.
- Atividades do Bloco 2
- Problematização: qual é a natureza da Biologia enquanto ciência? Quais conceitos científicos biológicos são nucleares? Por quê?
- Debate: um texto previamente indicado (Bizzo, 2012) e lido foi utilizado como mediação e suporte (na relação com a problematização). Para esse debate, os estudantes já trouxeram por escrito algumas questões que facilitaram a dinâmica da atividade. Nesse bloco, o tema mais recorrente no debate foi o “como” superar o ensino de Biologia só pautado no “produto” da ciência, desconsiderando seu processo. Além desse, o debate sobre o que é NdC e como avançar no ensino “sobre ciência” foi uma preocupação demandada pelos estudantes.
- Avaliação/análise de livro didático de Biologia: em grupo, os estudantes escolheram um livro didático de Biologia a partir de uma temática de interesse. Posteriormente, a professora discutiu a avaliação realizada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e a ficha de avaliação utilizada pelo Ministério da Educação (MEC). A ficha foi adaptada e os estudantes analisaram os elementos relacionados à natureza da ciência e sua história. Erros relacionados às concepções equivocadas da ciência também foram analisados.
- Produção de sínteses: no final desse bloco, os estudantes construíram uma síntese que considerou o debate sobre a NdC (Biologia) na relação com as práticas pedagógicas realizadas na escola e a dependência (não autonomia) do professor em relação ao livro didático. Essa síntese foi uma “prova” dissertativa e individual.
- Atividades do Bloco 3
- Problematização: como e por que “ensinamos como ensinamos”? É possível superar a “intuição” ao elaborar uma aula?
- Debate: a partir do texto previamente indicado (Saviani, 2009) e lido, os estudantes trouxeram por escrito algumas questões que facilitaram a dinâmica da atividade. Nesse bloco, o tema mais recorrente foi a relação da PHC com a abordagem histórica dos conteúdos biológicos e os desafios de planejar um currículo dentro dessa proposta pedagógica.
- Produção de plano de aula: em dupla, os alunos foram desafiados a produzir um plano de aula considerando a PHC como fundamento pedagógico e a história da Biologia como elemento para discutir a relação processo-produto do conhecimento biológico a ser ensinado. Nesse primeiro momento, o exercício foi pensar o tema, a problematização e os objetivos de aprendizagem considerando o “o que ensinar” na relação do “para que e para quem ensinar”.
- Produção de sínteses: no final desse bloco, a síntese foi um mapa conceitual sobre o conceito a ser ensinado na aula na relação com as atividades de instrumentalização que se pretende utilizar nas “aulas simuladas”.
A Figura 2 mostra o modelo de um plano de aula utilizado na disciplina.
Figura 2: Modelo de plano de aula utilizado pelos estudantes na disciplina
Fonte: Adaptado de Gasparin, 2012.
- Atividade do Bloco 4
- Problematização: Ao repensar uma aula e elaborar um plano, é possível aprender mais? Como superar um plano de ensino “Frankstein”?
- Debate: a partir do texto previamente indicado (trechos do livro de Gasparin, 2012) e lido, os estudantes trouxeram por escrito algumas questões que facilitaram a dinâmica da atividade. Nesse bloco, os temas mais recorrentes foram relacionados com a implementação de uma proposta baseada na PHC na “prática”; assim, as dúvidas eram sempre “como” fazer na escola de Educação Básica.
- Reelaboração de plano de aula: depois de atendimentos individuais com a professora e os monitores, as duplas fizeram correções nos planos (em especial relacionadas ao “para que ensinar” e à problematização) e eles foram finalizados incorporando os processos de instrumentalização e catarse (considerando esse momento como a avaliação do plano elaborado). Essa atividade de reelaboração foi considerada a síntese do Bloco 4.
- Atividade do Bloco 5
- Problematização: como o trabalho coletivo auxilia as produções individuais? É possível conduzir o processo ensino aprendizagem sem foco na avaliação como punição?
Esse bloco foi considerado o momento de catarse de todo o processo de ensino-aprendizagem e envolveu a execução de uma “aula simulada”, considerando em sua elaboração e execução os aspectos do movimento histórico dos conceitos ensinados, bem como os princípios da PHC didatizados por Gasparin (2012). É importante destacar que os estudantes puderam montar seus grupos para o desenvolvimento dessas aulas e escolher os temas, considerando a BNCC (Brasil, 2018) e o Currículo de Referência do Estado de Goiás (Goiás, 2022), que seriam ensinados.
As aulas são consideradas simuladas porque foram ministradas na universidade para os próprios colegas de classe (professores em formação). Entendemos que essa prática, embora não reproduza a dinâmica da Educação Básica, dá a esses estudantes em formação inicial a possibilidade de elaborar e desenvolver uma prática pedagógica referenciada teoricamente que supera a reprodução dos modelos “ambientais” com os quais esses estudantes tiveram contato durante toda a vida escolar como alunos.
Também é importante ressaltar que todo o planejamento e a execução dessas aulas contaram com a orientação da professora em horários previamente estabelecidos e com o auxílio do monitor da disciplina. O monitor é um estudante que já havia cursado e sido aprovado anteriormente na disciplina e que concorreu à vaga dentro do programa de monitoria da universidade.
Durante as apresentações, a aula foi avaliada pelos professores, pelo monitor e pela bolsista (estágio em docência) e dois ou três estudantes que também tinham em mãos uma ficha de avaliação que considerou os elementos teóricos (biológicos e pedagógicos) e práticos. Com essa organização, ao final de cada uma das “aulas simuladas” a turma se reuniu com os professores para discussão do desenvolvimento da atividade. O grupo que ministrou a aula fez inicialmente uma autoavaliação indicando dificuldades (em especial relacionada ao domínio dos conceitos biológicos) e pontos que consideraram positivos. Posteriormente, os estudantes que também avaliaram o grupo discutiram suas impressões com a constante mediação da professora. Dessa maneira, foi possível perceber o crescimento de todos – de quem ensinou e de quem avaliou a atividade. Esse processo de avaliação será explicado melhor a seguir.
Avaliação
Numa proposta como a desenvolvida na disciplina ECB I, é difícil separar as atividades da avaliação sem que pareça uma repetição de elementos já descritos aqui. Porém, na tentativa de detalhar melhor esse item, é possível indicar que a avaliação foi processual e baseada, como toda a proposta, numa perspectiva histórico-crítica. Assim, da prática social inicial (primeiros dias de aula) até a catarse (efetivação das “aulas simuladas”), os alunos foram avaliados quali-quantitativamente a partir de todas as atividades desenvolvidas dentro da disciplina e já descritas. Para que essa proposta se efetivasse com clareza para os estudantes, todos os critérios avaliativos que seriam considerados em cada uma das atividades foram detalhados e disponibilizados pelos professores no plano de curso de ECB I no início do semestre.
Os instrumentos (individuais e coletivos) utilizados para avaliação foram:
- Bloco I: Individual: participação em debate (anotações no caderno de campo da professora) e produção de síntese escrita; Coletivo: produção da linha do tempo sobre o conceito biológico.
- Bloco II: Individual: participação em debate (anotações no caderno de campo da professora) e prova dissertativa; Coletivo: avaliação de livro didático.
- Bloco III: Individual: participação em debate (anotações no caderno de campo da professora) e produção de síntese imagética; Coletivo: elaboração de planos de aula.
- Bloco IV: Individual: participação em debate (anotações no caderno de campo da professora); Coletivo: reelaboração de planos de aula.
- Bloco V: Individual: execução das aulas preparadas e autoavaliação; Coletivo: avaliação em roda de conversa.
É importante destacar que, embora todos os blocos (I - V) e fases do processo pedagógico sejam considerados avaliativos, são também utilizados como “pequenas paradas” para que a professora e os estudantes possam apreciar o que se realizou até o momento, uma vez que a síntese final da disciplina (catarse) foi o momento da “aula simulada”.
Consideramos que a “aula simulada” foi nossa catarse, pois foi “a fase em que o professor e os alunos evidenciam e apreciam o quanto cresceram” (Gasparin, 2011, p. 1.980). Em relação aos estudantes é pertinente dividir a catarse em duas etapas. No primeiro momento de catarse (execução da “aula simulada”), foi possível ver materializada a síntese dos conceitos e conteúdos estudados ou, como considera o autor citado, foi possível perceber a relação do “conhecimento primeiro, que possuíam no início do estudo [...] com o novo conhecimento que o professor lhes apresentou” (p. 1.980). Na maior parte dos estudantes observou-se um avanço significativo em relação à compreensão dos conceitos estudados, bem como dos aspectos pedagógicos do processo. Porém, em 10 dos 33 estudantes esse momento não teve os avanços mínimos objetivados na disciplina e as “aulas simuladas” ainda se constituíram numa reprodução de experiências empíricas vivenciadas anteriormente como alunos de Educação Básica.
No segundo momento da catarse (discussão coletiva ou roda de conversa sobre a “aula simulada”), todos os estudantes conseguiram perceber seus avanços e suas limitações, ou o quanto não conseguiram avançar na proposta. Nesse sentido, foi possível perceber que aqueles que não atingiram os objetivos da disciplina tinham grande insegurança teórica, que foi materializada no medo da mudança e na opção por desenvolver uma aula pautada na reprodução de uma prática já experimentada empiricamente como estudantes. Foi nesse segundo momento que os estudantes perceberam o que já sabiam ou o quanto ainda falta para realizar novas sínteses (com a possibilidade de refazer alguns passos do processo pedagógico). Mas, como esse processo é subjetivo, a professora mediou o desenvolvimento da atividade para que cada um pudesse ter essa percepção individual.
Finalmente, é importante destacar que as discussões foram pautadas pela ideia de que o colega de classe, na formação inicial, não é inimigo ou concorrente (incentivando uma meritocracia individualista), mas um parceiro de aprendizagem, que vai ombrear junto depois de formado os desafios da docência na Educação Básica.
Considerações finais
Embora este artigo se constitua num relato de experiência e não tenha o compromisso de quantificar resultados, acreditamos que seja possível realizar algumas inferências. Apenas um estudante foi reprovado na disciplina (pela não realização das atividades); nove estudantes tiveram que refazer atividades para reelaborar suas sínteses e se apropriar melhor dos conteúdos trabalhados; e 23 atingiram de maneira satisfatória os objetivos pretendidos pela disciplina, o que foi considerado positivo pela professora que mediou a disciplina.
Mesmo entendendo os limites apresentados por Galvão, Lavoura e Martins (2019) em relação à didatização da PHC elaborada por Gasparin (2012), os esquemas propostos pelo autor, quando problematizados dialeticamente, ajudaram os estudantes a desenvolver uma práxis mais crítica em relação ao seu fazer pedagógico. Além disso, como já indicado por Martins, Paranhos e Guimarães (2019), "discutir um ensino de Ciências considerando a HFC seria através da PHC, haja vista as contribuições da primeira para a compreensão do objeto de ensino (conhecimento científico) e a segunda, que demarca a intencionalidade do ato pedagógico organizado para a apropriação conceitual" (p. 276).
Finalmente, entendemos que os resultados dessa experiência indicam inicialmente que, quando os futuros professores de Biologia começam a compreender a história da ciência que ensinam – Biologia – na relação com os fundamentos teóricos dos modos de ensinar, se apropriam com mais radicalidade dos conceitos da própria ciência e podem ensinar melhor.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS (UFG). Resolução Cepec nº 1.527 - Projeto pedagógico do curso de graduação em Ciências Biológicas. Goiânia: UFG, 2017.
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Publicado em 23 de julho de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
GUIMARÃES, Simone Sendin Moreira; MASCIOLI, Cristina da Costa Krewer; PARANHOS, Rones de Deus. Uma perspectiva histórica para formação de professores de Biologia: as contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica para organização de uma disciplina. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 26, 23 de julho de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/26/uma-perspectiva-historica-para-formacao-de-professores-de-biologia-as-contribuicoes-da-pedagogia-historico-critica-para-organizacao-de-uma-disciplina
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