A orbicularidade em Macondo
Eduarda Rocha do Nascimento
Professora, mestranda em Letras (PUC-Rio)
Uma das obras mais famosas da literatura hispano-americana é Cem Anos de Solidão, escrita pelo grandioso Gabriel García Márquez, ou, como o apetece, o popular “Gabo”. O autor colecionou diversos prêmios, como o Nobel de Literatura (1982), o Rómulo Gallegos (1972) e o Literário Internacional Neustadt (1972), entre outros. Amor em Tempos de Cólera, Crônica de uma Morte Anunciada, A Revoada e Os Funerais da Mamãe Grande são algumas obras da extensa produção feita pelo escritor, sendo seu magnum opus o texto que desencadeia o trabalho em questão.
A ideia do livro engravida o autor durante o trajeto de sua casa até Acapulco, no que seriam férias em família; de fato, esse repouso não ocorre, pois Gabriel retorna e pare por quase dois anos esse incrível e grandioso universo de Macondo. O enredo, bastante peculiar, acompanha sete gerações da família Buendía-Iguarán; a primeira geração é formada pelo casamento entre os primos José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, junto com os “três” filhos do casal: José Arcadio, considerado um jovem forte e trabalhador; Aureliano, o oposto de seu irmão, introspectivo e calmo; Amaranta, uma jovem amargurada; e Rebeca, que seria uma quarta filha do casal, visto que foi enviada da antiga aldeia fundada por José Arcadio Buendía sem pai nem mãe.
A história acompanha a ascensão e fim dessa família juntamente ao cigano Melquíades, que sempre ia e voltava a Macondo, aldeia fundada por José Arcadio Buendía, para vender àquela comunidade utensílios que já eram objetos comuns naquela época, como dentadura, por exemplo; mas, pelo afastamento da cidade, de certa forma o cigano promovia um processo de modernização daquele espaço. A narrativa traz coisas do dia a dia da família, até fatos que colaboram para que o livro seja considerado o marco do realismo mágico, como o fato de a personagem Rebeca se alimentar de terra e reboco da parede quando estava nervosa e até mesmo uma chuva que durou cinco anos. A manipulação do tempo feita pelo autor pode confundir o leitor, devido ao fato de os nomes dos personagens sempre se repetirem ao longo dessas sete gerações, sendo a primeira Úrsula a personagem que une tudo isso, pois ela vive mais de cem anos e acompanha todas as gerações.
As crianças haveriam de recordar pelo resto de sua vida a augusta solenidade com que seu pai se sentou à cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela ferida aberta de sua imaginação, e revelou a elas sua descoberta: - A terra é redonda feito uma laranja (Márquez, 1967, p. 12).
O afastamento geográfico de Macondo acaba por colaborar para a ideia de solidão expressa no título da obra, em conjunto com a própria solidão dos personagens, por mais que o contexto seja de que a história se passe no começo do século XIX e o mundo já saiba que a terra é redonda. Esse pensamento de José Arcadio Buendía caracteriza-se como uma modernidade, visto ser um pensamento formulado após diversas análises e estudos, ou seja, o que atende ao empírico e em um tempo e espaço em que ninguém cogitaria tal hipótese.
A comunidade já estava considerando o patriarca louco, mas em uma dessas idas e vindas de Melquíades ele afirma, na frente de todos, que José Arcadio Buendía é um homem à frente de seu tempo e confirma aquela hipótese; além disso, diz que o ajudará na construção de um laboratório de alquimia, mais um fato que remete à modernização, caracterizando a verdade como algo empírico. Essa relação entre o primeiro José Arcadio e o cigano era tão intensa que o ‘’muambeiro’’ tinha um quarto só para ele na casa da família; ali guardava todos os seus pergaminhos; após a sua morte, as outras gerações tentam desvendar o que estava escrito naqueles textos.
A repetição de nomes era também uma retomada do mesmo destino; esse romance é sobre o tempo e um eterno retorno, ou seja, algo circular; permite mencionar o termo da transculturação, lapidado por Ángel Rama, que propõe a igualdade entre cultura e literatura, originando uma narrativa amadurecida. Nesse sentido, os valores culturais são amalgamados às novas técnicas e formas ficcionais. O autor divide esse termo em três níveis: o primeiro, da linguagem, acredita na homogeneidade linguística, uma associação entre a multiplicidade dialetal ao espanhol, ou seja, ocorre uma anulação do normal e do que é regional; o segundo nível diz respeito à construção, ou seja, as técnicas para formar a narrativa através do fluxo de consciência do personagem, o uso do monólogo; o terceiro nível se atenta à peculiaridade da repetição de nomes e à temporalidade circular que se insere no nível do significado. Tal nível enxerga a significância da narrativa em um ponto de vista cultural, já que essa nova narrativa latino-americana não se concentra nos mitos, mas sim nos pensamentos míticos.
É interessante traçar uma intertextualidade que há entre as repetições de nomes em Cem Anos de Solidão e o grande clássico da literatura inglesa, Hamlet. No último, havia o Rei Hamlet, que era pai do príncipe Hamlet, e o Rei Fórtimbras, também pai de Fórtimbras. Os dois reis, antes de suas mortes, guerrearam e o Rei Hamlet foi o vencedor, anexando diversos territórios de seu oponente. A obra se inicia com a ameaça do jovem Fórtimbras querendo reaver os territórios perdidos por seu pai; o atual Rei Cláudio, irmão do falecido rei Hamlet, envia então alguns negociadores. A questão aqui se faz pela dificuldade também encontrada de se localizar mediante um enredo que repete os nomes dos personagens e traz circularidade.
Os pergaminhos de Melquíades, por ser um seguidor de Nostradamus, eram escritos em códigos, e somente o último José Arcadio o decifrou. Nos pergaminhos, esse José Arcadio lê todos os 100 anos de história de sua família e a previsão do cigano, de que somente o último José Arcadio conseguiria decifrá-los. Esse fato reafirma a questão do tempo, pois, nessa realidade, a história já havia sido contada e, após essa descoberta, há um desastre natural que destrói Macondo. A história da família é extremamente bem contada pelo viés humorístico; também triste e com um quê de absurdo, essa escrita que amarra de maneira surpreendente todas aquelas séries de gerações de Josés, Aurelianos, Úrsulas, Amarantas entre tantos personagens que repetem o mesmo nome e destino de seus pioneiros justifica os milhões de exemplares que foram e são vendidos até hoje.
Referências
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Record, 2019.
RAMA, Ángel. Os processos de transculturação na narrativa latino-americana. In: AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (org.). Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001, p. 209-238.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
Publicado em 30 de julho de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
NASCIMENTO, Eduarda Rocha do. A orbicularidade em Macondo. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 27, 30 de julho de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/27/a-orbicularidade-em-macondo
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