Cultura escolar e história oral: relevância para pesquisa em História da Educação
Elaine da Silva Barberino
Graduada em Ciências Sociais (Unievangélica) e em Pedagogia (Intervale), pós-graduada em Docência Universitária (Unicam), em Pedagogia Empresarial (Intervale), em Gestão de Projetos Sociais (Intervale) e em Gestão e Docência EaD (Faculdade Futura), mestra em Educação, Linguagem e Tecnologia (UEG), professora do Centro Universitário Unifasam, Faculdade Integra e Faculdade Ésper
Ianny Moreira de Oliveira
Graduada em Ciências Biológicas (UEG), pós-graduada em Planejamento e Gestão Ambiental (UFG), mestra em Educação, Linguagem e Tecnologia (UEG), professora da rede estadual de ensino de Goiás
Raimundo Márcio Mota de Castro
Pós-doutor em Educação Escolar e Religião (PUC-PR), doutor em Educação (PUC-Goiás), mestre em Educação (Uniube), especialista em Metodologia do Ensino Superior (Fibra), graduado em Tecnologia em Logística (Unesa), licenciado em Pedagogia - Séries Iniciais (UVA), bacharel em Teologia (Unifai), professor titular na UEG, coordena a Unidade Universitária de Senador Canedo, é professor no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias (PPG-IELT)
Desvelar e apresentar a cultura escolar por meio de relatos orais é uma atividade realizada já há algum tempo pelos pesquisadores de História da Educação.
A história oral foi uma das primeiras fontes de registro histórico da humanidade, porém, para fins de registro, esse instrumento de coleta de dados foi deixado a parte, baseando-se somente em documentos e imagens. Com o advento da invenção do gravador de voz, em meados do século XX, a história oral renasce como fonte de pesquisa e pessoas que fizeram parte daquele momento histórico puderam expor suas percepções, seus relatos e vivências de modo que complementassem ou contestassem o que fora identificado somente nos documentos.
Desse modo, a história oral promoveu entre os pesquisadores uma forma de analisar e descrever a História da Educação mediante as memórias vividas e reproduzidas pelos sujeitos que participaram dos fatos ou dos momentos de determinada instituição de ensino. Não se deve com a utilização da história oral negar as fontes documentais, os registros ou as imagens, mas entendê-los como meios complementares, cuja finalidade é dar maior solidez aos demais registros.
Cultura e cultura escolar: conceitos básicos
Antes de especificar propriamente o que é a cultura escolar, deve-se definir o que é cultura. Tudo o que se concebe historicamente e que modifica uma sociedade pode ser caracterizado como elemento cultural. Desse modo, a cultura pode ser entendida como um conjunto de normas, crenças, hábitos ou/e valores construídos dentro de uma sociedade que promove a sua transformação, atribuindo-a características específicas (Barroso, 2013).
Laraia (1986), quando define cultura, faz uma análise geral desde a origem do termo até onde e como ela opera. Ao apresentar as teorias modernas sobre cultura, citando Roger Kesing no artigo Teorias sobre Cultura, Laraia (1986, p. 59) se refere “às teorias que consideram a cultura como um sistema adaptativo”, acrescentando:
Cultura são sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante (Laraia, 1986, p. 59).
Trazendo o conceito de cultura para o ambiente escolar, pode-se perceber que esse conceito citado por Laraia difere apenas no que concerne ao ambiente, pois os padrões de comportamento, meios de adaptação, bem como o uso de utensílios, compõem e especificam claramente a cultura escolar. Forquim (1993, p.10) afirma que,
incontestavelmente, existe, entre educação e cultura, uma relação íntima, orgânica. Quer se tome a palavra “educação” no sentido amplo, de formação e socialização do indivíduo, quer se a restrinja unicamente ao domínio escolar, é necessário reconhecer que, se toda educação é sempre educação de alguém por alguém, ela supõe sempre também, necessariamente, a comunicação, a transmissão, a aquisição de alguma coisa: conhecimentos, competências, crenças, hábitos, valores, que constituem o que se chama precisamente de “conteúdo” da educação.
Nesse sentido, numa instituição de ensino, cada ambiente escolar acaba adotando e criando meios próprios de fazer aquilo que se espera dessas instituições. A cultura escolar está intrinsecamente ligada à filosofia da escola, ou melhor, atribuindo significados próprios da sua missão, da sua visão e de seus valores. Desse modo, a escola possui uma função social, pois além dos serviços educacionais, tem uma função social dotada de uma cultura própria e os principais componentes que configurariam essa cultura são os seus participantes, seus atores sociais: docentes, gestores, alunos e famílias, ou seja, a comunidade escolar.
Nesse contexto, Juliá (2001, p. 10) conceitua cultura escolar como um
conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).
Desse modo, a cultura escolar assevera de que modo a instituição de ensino enxerga o educando durante o processo educativo e quais são as intenções para a sua vida, não só intelectual, mas social. Tudo isso devidamente planejado no projeto político-pedagógico (PPP). Segundo Chervel (1998, p. 7 apud Barroso 2013, p. 3),
como seria possível que a escola ou a universidade tivessem a audácia, sob o olhar do público e a autoridade do “Grande Mestre’, de ensinarem o falso, quando o verdadeiro lhes era servido no prato pela própria ciência? Como poderiam ensinar o inútil quando a sociedade esperava que elas produzissem classes de alunos solidamente preparados? Como poderiam deformar os espíritos, quando a sua tarefa era exatamente o contrário, ou seja, dar às crianças e aos jovens que lhes são confiados, uma “formação geral preparatória para o exercício das funções que os esperam na sociedade onde vão entrar”.
Nesse caso, se atribui uma característica funcionalista à cultura escolar sobre a qual se apresenta uma função de não apenas reprodução de cultura da sociedade, mas de construção da sua própria.
A forma como a escola se organiza, reforça os mecanismos dos processos pedagógicos que, desde aspectos administrativos até os de base educacional, são influenciados e influenciam. Desse modo, a instituição escolar acaba diferenciando a escola das outras organizações.
Por fim, Barroso (2013, p. 18) admite que os “estudos sobre a escola deverão ter em linha de conta as três dimensões essenciais do processo de ‘referencialização’ da cultura organizacional: as normas, as estruturas e os atores”, conforme ele representou na Figura 1.
Figura 1: Dimensões essenciais da cultura organizacional
Fonte: Adaptado de Barroso, 2013, p. 18.
Sendo assim, a cultura escolar não é composta apenas pelos atores, mas também pelas normas sociais ou educacionais. A estrutura rege todo o arcabouço das instituições de ensino, cada um com suas peculiaridades, formando uma estrutura homogênea que atribui características próprias a cada instituição de ensino.
Memória escolar como fonte histórica
Ao analisar um fato histórico, o historiador deve utilizar documentações e comprovações legítimas por meio de fontes documentais. De acordo com Le Goff (2003), existem muitas críticas e discussões sobre a noção de documento que nem sempre podem ser objetivas, ou seja, o documento pode expressar o controle do povo sobre a memória, bem como sobre o futuro.
Os documentos são essenciais para o estudo da história escolar. Dessa forma, eles permitem reviver situações e eventos ocorridos em outros tempos, ou seja, por meio deles, histórias podem ser rememoradas. De acordo com Silva (2017, p. 10), ao conceituar documento, ele afirma que é “tudo aquilo que pode ser questionado com a finalidade de encontrar algumas informações sobre o passado, a partir de um olhar sempre desconfiado acerca de certas afirmações cristalizadas, onde o verdadeiro ou o falso são colocados a prova”.
Macêdo (2015, p. 361) esclarece que um documento “pode ser representado por atas das faculdades, anuários, boletins informativos, relatórios documentos de secretaria, estatutos, leis, resoluções, portarias, entre outras formas escritas”. No entanto, além dos exemplos citados, existem outras categorias documentais, como fontes visuais e sonoras. Com base nisso, temos a oralidade, uma maneira de exprimir as lembranças, retomando ao passado por meio da memória (Macêdo, 2015).
Para o pesquisador, as fontes são instrumentos essenciais na execução de uma pesquisa, pois contribuem decisivamente para a construção do conhecimento histórico. Cabe ao pesquisador, portanto, fazer a investigação e a identificação das fontes, reconhecendo fatores indispensáveis à construção da memória histórica (Silva, 2017).
Partindo dessa premissa, Moreira (2004, p. 42) reforça a importância dos documentos como fonte histórica dos estudos, ratificando que na ausência de tais comprovações é fundamental lançar mão de outros recursos, como “palavras, sinais, paisagens, telhas, campos e ervas, eclipses da lua, exames de pedras realizados por peritos”.
Nesta seção, discutiremos a memória escolar como fonte histórica. Sendo assim, abordaremos assuntos relativos ao tipo de documento que não pode ser obtido pelas buscas de papéis, mas por gravações ou filmagens de pessoas relatando as suas memórias. É importante conceituarmos essa palavra para posteriormente iniciarmos as discussões.
A memória, então, não é nem sensação nem julgamento, mas é um estado ou qualidade (afeição, afeto) de um deles, quando o tempo já passou. [...] Toda memória, então, implica a passagem do tempo. Portanto só as criaturas vivas que são conscientes do tempo podem lembrar, e elas fazem isso com aquela parte que é consciente do tempo (Aristóteles, 1986, p. 291 apud Smolka, 2000, p. 177).
Segundo Silva (2017), a memória vem sendo objeto de muitos estudos contemporâneos, pois busca interligar a sociedade ao indivíduo. Tudo que sabemos do mundo, bem como a respeito de nós mesmos, são informações extraídas das nossas trajetórias de vidas, “arquivadas” em nossas memórias. Ao longo do tempo, fabricamos nossas histórias e consequentemente nossas identidades. Dalmaz e Alexandre Netto (2004, p. 1) esclarecem que “somos seres com história, construímos nossa identidade através de um processo que mescla as experiências vividas no ambiente e as nossas vivências interiores; assim, somos quem somos porque aprendemos e lembramos”. Portanto, a memória é o cerne da história oral, ou seja, é a sua essência. Por meio da linguagem, ela se torna concreta. Nesse sentido podemos concluir que não existe história oral sem a presença da memória (Costa, 2019).
Em relação ao contexto escolar, não é diferente. As escolas, por meio de seus funcionários, criam suas memórias no decorrer dos tempos. Dessa forma, os profissionais vão adquirindo vivências e experiências que serão memorizadas. Além disso, as escolas também produzem e recebem documentos que contribuem à construção das culturas escolares, fundamentais fontes históricas (Mogarro, 2012).
Tal como as relações entre memória e história, também as relações entre passado e presente não devem levar à confusão e ao ceticismo. Sabemos agora que o passado depende parcialmente do presente. Toda a história é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não é só inevitável como legítimo. Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo tempo passado e presente. Compete ao historiador fazer um estudo "objetivo" do passado sob a sua dupla forma. Comprometido na história, não atingirá certamente a verdadeira "objetividade", mas nenhuma outra história é possível (Le Goff, 2003, p. 41-42).
Quando se fala de memória e história, percebemos que não existem entre os historiadores consenso entre as suas diferenças conceituai. No entanto, Leal e Pimentel (2003, p. 18) esclarecem que é importante “compreender a diferença entre ambas como tensão que ora as aproxima, ora as distancia, como território em que as fronteiras ora se diluem, ora se apresentam com nitidez”. No entanto, sabe-se que ao utilizarmos as memórias como fontes de entendimento, estamos as subordinando à história.
De acordo com Ferreira (2015, p. 24), quando se analisam os estudos sobre a História da Educação, percebe-se que situações e atos ocorridos no contexto escolar e as “formas institucionalizadas” são de extrema relevância. O que se evidencia, porém, é a omissão de histórias locais. Muitas histórias não são documentadas e isso provoca o silenciamento de inúmeros sujeitos. Assim, essa inobservância compromete estudos na área educacional, visto que os fatos ocorridos não recebem a devida importância.
Le Goff (2003) afirma que a memória é um mecanismo de poder, sendo um instrumento de controle. Com base nisso, fatos extremamente valiosos podem estar fadados ao esquecimento, demonstrando a manipulação da memória coletiva. É fundamental que as pessoas silenciadas tenham a chance de expor suas memórias.
História oral e história de vida: a inserção de relatos orais como fonte na pesquisa da História da Educação
Segundo Costa (2019), a história oral é composta por três categorias: tradição oral, história de vida e história temática. Ao logo desta seção, elas serão discutidas mais a fundo.
Ainda de acordo com Costa (2019, p. 28.082), “dependendo da forma como é utilizada, a história oral pode ser concebida como técnica de produção e tratamento de dados e informações, fonte de pesquisa, método de abordagem ou metodologia”. No entanto, o instrumento principal das histórias orais sempre é o relato, ou seja, as narrativas dos sujeitos da pesquisa.
Por muitos anos, a História da Educação se alicerçou nas fontes documentais por meio da história oral. Desse modo, pode-se refazer a história utilizando o diálogo entre pesquisador e entrevistado. Para isso é fundamental que haja cumplicidade entre ambos, a fim de que exista a confiança do entrevistado em expor as suas narrativas. Diante disso, cabe ressaltar que a história oral não nega a utilização de documentos escritos, mas procura preencher lacunas e questionamentos baseada em fontes tradicionais (Costa, 2019).
A história oral é utilizada desde muito tempo como fonte histórica (Pranto et al., 2021). Entretanto, com base nos estudos de Guariza (2008), a prática da história oral foi encabeçada depois da Segunda Guerra Mundial em várias partes do mundo. Nesse caso, os Estados Unidos da América são conhecidos como pioneiros. Sabe-se que a coleta das narrativas e a salvaguarda dos áudios é bastante remota. Pranto et al. (2021) afirmam que a partir de 1950 isso tornou-se possível com o acesso aos gravadores de voz. Posteriormente, com a utilização de aparelhos celulares. No Brasil, a história oral foi utilizada somente na década 1970 (Burger; Vituri, 2013). Os gravadores de voz são dispositivos que permitem preservar as falas das pessoas para consultas futuras.
A gravação de narrativas de pessoas que tiveram suas vozes silenciadas e excluídas do processo de construção do fenômeno histórico permitiu aos pesquisadores compreenderem a história a partir de uma nova contribuição, a dos relatos orais, das memórias e das versões produzidas pelos sujeitos históricos que participaram de fatos, contextos ou conjunturas históricas e que, nem sempre, é encontrada em outras fontes (Costa, 2019, p. 28.082).
De acordo com Macêdo (2015), a oralidade é uma das formas que alguns pesquisadores utilizam para resgatar a história pela memória. Nesse caso, temos uma metodologia chamada de História Oral. Com base nisso, a autora afirma que
Por isso a história oral é também chamada de história do tempo presente ou história viva, cuja base é o documento gravado ou filmado, ou seja, o suporte eletrônico. Na verdade, nessa metodologia, o historiador utiliza uma técnica, juntamente com os atores da história, para elaborar um documento a ser utilizado em seguida (Macêdo, 2015, p. 362).
Após as gravações das narrativas, realiza-se a transcrição das falas. Nesse momento é primordial que sejam conservadas as palavras utilizadas pelos entrevistados de forma integral, assim podem ser evitados os equívocos na pesquisa quando relacionados às interpretações (Costa, 2019).
Cabe ressaltar que os pesquisadores que trabalham a chamada história do tempo presente ou história viva devem ter o cuidado, ao longo das entrevistas, de ir buscando a memória de uma forma mediática, ressaltando suas histórias de vida (dos envolvidos) na pesquisa, sem serem tendenciosos. Chizzotti (2006, p. 101) define a história de vida como “um relato retrospectivo da experiência pessoal de um indivíduo, oral ou escrito, relativo a fatos e acontecimentos que foram significativos e constitutivos de sua experiência vivida”.
Por muito tempo, a história de vida conhecida como método (auto)biográfico foi pouco utilizada em pesquisas. A partir do final do século XIX, começou a ser inserida por meio da Escola de Chicago e, posteriormente, aperfeiçoada por Znaniescki, na Polônia. Atualmente, existe um número substancial de pesquisadores que tem como objeto de estudo as narrativas das vivências e experiências de determinadas pessoas. Dessa forma, procuram reconstruir a história de vida de indivíduos, destacando suas trajetórias, seus desejos, suas angústias e sentimentos (Burger; Vituri, 2013).
Mesmo sendo alvo de críticas por parte de alguns pesquisadores que alegam falta de imparcialidade dos pesquisadores nas entrevistas, causando o comprometimento da investigação, segundo Burger e Vituri (2013, p. 4), a história de vida “está muito presente na literatura científica, sendo vista como importante estratégia de pesquisa por sua capacidade de transformar os objetos de estudo em sujeitos”, permitindo a obtenção de trajetórias comoventes por meio de relatos espontâneos. É fundamental, no entanto, que o estudioso procure não apenas armazenar fatos e histórias, mas oportunizar a formação de significações e sentidos (Silva, 2017).
Na pesquisa de Soares, Menezes e Freire (2016), é apontado que o aumento expressivo do uso das histórias de vida como método acontece devido à necessidade de investigar a subjetividade. Quando se fala do campo educacional percebemos, por exemplo, um aumento crescente de estudos da vida dos professores, bem como de seus percursos profissionais. Isso é essencial para desvelar pesquisas na área educacional de modo a compreender o processo da construção identitária desses profissionais por meio de releituras.
Nessa releitura está implicada a noção de que escrever sobre a vida é deixá-la sobreviver ao tempo e à própria morte, uma vez que impede o esquecimento, deixando o registro de um caminho delineado, vivido, experienciado. As histórias de vida e o método (auto)biográfico integram-se no movimento atual que procura repensar as questões da formação (Soares; Menezes; Freire, 2016, p. 431).
Cabe ao pesquisador não apenas obter memórias, mas auxiliar na sua elucidação. É importante que haja planejamento e levantamento prévio de informações antes de conduzir uma entrevista narrativa. Com base nisso, Costa (2019, p. 28.083) afirma que “sua participação no processo de construção de um documento não se restringe ao ato de perguntar, observar, ouvir e gravar. O pesquisador é um coautor do produto final da história oral”. Uma pesquisa contendo narrativas é resultante de um intenso diálogo entre os envolvidos (pesquisador e entrevistado) que interagem e produzem a narrativa, ou seja, que criam um documento. Nesse contexto, o gravador representa o mediador entre os sujeitos.
Esse tipo de pesquisa visa a obtenção de informações sem a presença de questionários estruturados e fechados. Trabalha-se buscando a subjetividades das narrativas. Sendo assim, de acordo com Botelho et al. (2019, p. 422), esse tipo de técnica “busca compreender a trajetória dos investigados a partir do olhar das próprias entrevistadas”. Dessa forma, ela vai em busca das especificidades vividas.
Ao optar pelo uso de fonte orais em sua pesquisa, o historiador deve planejar seu trabalho procurando articular três aspectos diferentes, porém articulados entre si, e que constituem a trajetória a ser percorrida em busca do conhecimento: um evento histórico (fato do passado), um evento presente (narrativa) e uma relação dinâmica entre eles (Costa, 2019, p. 28.084).
Como se percebeu, com a finalidade de dar um arcabouço à História da Educação, pode-se utilizar outros meios complementares para contribuir e apresentar, com uma maior proximidade, a realidade da cultura escolar, não somente tendo como base os documentos históricos. Nesse sentido, os relatos orais trazem consigo um papel preponderante de poder transmitir conhecimento, atribuindo-lhe informações não registradas em documentos oficiais a fim de contribuir com elementos relevantes. Conforme Queiroz (1988, p. 16),
o relato oral está na base da obtenção de toda sorte de informações e antecede a outras técnicas de obtenção e conservação do saber; a palavra parece ter sido senão a primeira, pelo menos uma das mais antigas técnicas utilizadas para tal. Desenho e escrita o sucederam.
Guariza (2008, p. 5) complementa a respeito da preferência dos historiadores pela utilização dos relatos orais como fontes de pesquisa, apresentando as possíveis modalidades existentes:
a metodologia da história oral pode ser apresentada nas seguintes modalidades: histórias orais de vida, relatos orais e depoimentos orais. As histórias de vida por tratar de um recorte mais amplo em relação ao entrevistado, permitem ao entrevistador relacionar várias facetas do entrevistado com a história de seu grupo familiar e social. Por outro lado, os depoimentos orais são conduzidos a partir de um tema em específico produzindo informações e dados mais delimitados.
Ao conceituar o uso de fontes orais, Portelli (2016, p. 18) alega que,
mais do que uma ferramenta adicional, por vezes secundária, na panóplia do historiador, as fontes orais são utilizadas como o eixo de um outro tipo de trabalho histórico, no qual questões ligadas a memória, narrativa, subjetividade e diálogo moldam a própria agenda do historiador. Quando é esse caso, o uso crítico das fontes orais requer abordagens e procedimentos específicos, adequados à sua natureza e forma particulares.
Ao utilizar a história oral, o pesquisador que deseja conhecer e desvelar a cultura escolar, objeto de seu estudo, deve atentar-se a quem e para quem deseja realizar a entrevista. Thompson (1992, p. 25) complementa afirmando que “os historiadores orais podem escolher exatamente a quem entrevistar e a respeito do que perguntar. A entrevista propiciará, também, um meio de descobrir documentos escritos e fotografias que, de outro modo, não teriam sido localizados". Nesse sentido, cabe ao pesquisador estimular o entrevistado com a intenção de “ativar” a sua memória acerca do que se pretende narrar.
Amado (1996 apud Alves, 2016) ressalta que o papel do pesquisador é “desconstruir o mito” de que somente ele pode ser a parte interessada da pesquisa. O sujeito que concede a entrevista pode ter também um interesse nela, desejando contribuir ou não, conforme as disposições, os interesses e as estratégias da pesquisa.
Ao fazer uso dos relatos orais, outro ponto relevante a ser observado é com relação ao compromisso ético do pesquisador. Deve-se ser o mais fiel em relação à visão do entrevistado, mesmo que o entrevistador não concorde com alguns pontos. A ética deve ser compreendida como meio de garantia da integridade física e psíquica dos entrevistados. De acordo com Noselha (2008, p. 255), “ética, numa perspectiva histórico-dialética, é querer um certo bem geral, uma vez que existam as condições materiais e técnicas indispensáveis para a concretização desse bem”.
O ato de pesquisar a cultura escolar, utilizando como recurso os relatos orais, pode desvelar histórias, sentimentos e características não visualizadas em nenhum outro documento. Ao realizar essa ação, o pesquisador promove um novo olhar acerca da história das instituições de ensino. Ao ser expresso em palavras atribui também sentimentos que não seriam identificados em nenhum outro meio, a não ser por meio do relato oral. Faria Filho et al. (2004) apontam que muitos profissionais da Educação, com o tempo, vêm sendo considerados em estudos sobre a história escolar, fato que demonstra um aumento no número de interessados pelas histórias de vida e de profissão. Ainda há muito a se fazer e a se investigar. No entanto, percebe-se que o caminho já começou a ser percorrido.
Considerações finais
Sendo um procedimento utilizado como coleta de dados, a história oral é um dos meios mais utilizados com a finalidade de obter informações acerca da pesquisa relativa à cultura escolar. Desse modo, ela auxilia na construção da História da Educação. Trata-se de um recurso que oportuniza ao pesquisador recorrer não somente aos documentos impressos, mas de fazer uma relação com as histórias orais daqueles que viveram em períodos relevantes para fins de estudos. Isso promove uma visão mais holística da cultura escolar.
Nesse sentido, cabe ressaltar que os documentos são essenciais às investigações, pois possibilitam representações do real, pois trazem uma visão do passado. Por relatos orais podemos obter informações fundamentais em releituras de acontecimentos que propiciam informações como peças de um quebra-cabeça no processo investigativo.
Os objetivos do presente trabalho foram atendidos no que se refere às conceituações de cultura e cultura escolar, assim como na discussão a respeito da relação entre memória, fonte histórica e à importância da história oral como metodologia nas pesquisas em História da Educação.
A inserção de relatos orais possibilita uma maior aproximação entre sujeito e objeto de pesquisa, uma vez que ao utilizar e registrar esses relatos, interessa ao pesquisador enaltecer e priorizar aquilo que é significativo e que faz parte do objetivo da proposta. Diante disso, é de fundamental importância realizar o cruzamento com outras fontes documentais de modo a promover a relação e/ou complementação entre elas.
Como método de investigação na utilização de técnicas de coleta de dados, as narrativas têm como base o relato das memórias dos indivíduos, mediante uma relação dialógica entre quem está narrando e o pesquisador/entrevistador.
Nesse sentido, cabe ao pesquisador a sensibilidade de direcionar as suas análises e as suas interpretações das narrativas, bem como objetividade e clareza na condução da entrevista, assim como no momento de suas transcrições.
Mediante este estudo, percebe-se que o método da história oral possui algumas limitações. Assim, não deve ser utilizado sozinho, isolado, principalmente quando se pretende realizar uma pesquisa em História da Educação com o objetivo de compreender a cultura escolar. A sua utilização deve ser realizada com a finalidade de complementar os fenômenos passados ou mesmo recentes, tendo como base os documentos oficiais e/ou relatórios registrados. No que condiz à temporalidade, o relato oral deve ser utilizado corretamente, pois em situações nas quais se deseja pesquisar a cultura escolar de instituições antigas, a tarefa é quase impossível, pois depende de que se encontre indivíduos que possam trazer essas narrativas.
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Publicado em 30 de julho de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
BARBERINO, Elaine da Silva; OLIVEIRA, Ianny Moreira de; CASTRO, Raimundo Márcio Mota de. Cultura escolar e história oral: relevância para pesquisa em História da Educação. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 27, 30 de julho de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/27/cultura-escolar-e-historia-oral-relevancia-para-pesquisa-em-historia-da-educacao
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