Ressignificando o analfabetismo: algumas considerações sobre o analfabetismo funcional no Brasil

Leisa Aparecida Gviasdecki de Oliveira

Doutoranda em Educação (PPGE/UFPR)

Estamos no mais elevado momento da história da era tecnológica. Em meio a tantos avanços, as novas tecnologias fizeram com que informações se disseminassem com maior facilidade e agilidade, em um curto espaço de tempo. As pessoas se comunicam, interagem e compartilham informações, mas nem sempre conseguem compreendê-las, mostrando uma grande defasagem na capacidade interpretativa.

Diante desse contexto, percebemos que muitos indivíduos escolarizados são incapazes de compreender adequadamente pequenos textos ou mesmo buscar fontes fidedignas de conhecimento. Assim, questionamos: por que crianças passam pela escola e não se alfabetizam? Por que sujeitos escolarizados têm dificuldade em interpretar adequadamente diferentes gêneros textuais? Quais os desafios da escola para não formar sujeitos analfabetos? Para esse conjunto de preocupações direcionamos o nosso trabalho na tentativa de esclarecer as causas e as consequências do analfabetismo funcional.

Historicamente, a educação brasileira vem sofrendo transformações que influenciam diretamente na vida dos estudantes. Analisando tais mudanças, um dos maiores desafios propostos é o processo de alfabetização.  

Para Gontijo (2008), a alfabetização deve ser vista como uma prática sociocultural por meio da qual é desenvolvida a capacidade de produção e de compreensão de textos escritos, assim como o seu uso para a interação social e o entendimento da correspondência entre os grafemas (as letras) e os fonemas (os sons).

Em uma visão simples, alfabetizar significa adquirir o conhecimento do alfabeto. Aprender o alfabeto é importante, porém insuficiente para que uma pessoa seja considerada alfabetizada. A dimensão básica da alfabetização envolve escrever e ler. O objetivo é ir além disso, buscando a atribuição de significados quando se está lendo e/ou escrevendo.

Segundo Soares (1999), a outra dimensão se refere ao desenvolvimento das habilidades no uso da escrita em todas as suas formas e práticas sociais. Esse conjunto de habilidades é conhecido como letramento; todas essas dimensões devem estar envolvidas no processo de alfabetização.

Compreende-se que a alfabetização se evidencia em uma instância de via dupla e os termos alfabetização e letramento não devem ser considerados sinônimos. Contudo, esse processo ocorre de maneira indissociável e independente. Podemos considerar o processo de alfabetização como o processo de desenvolvimento das habilidades necessárias à leitura e à escrita e o letramento como condição do sujeito de incorporar nas práticas sociais o seu uso.

Alfabetizar sem letrar não contempla as exigências socioculturais propostas pelo uso da leitura e da escrita. Outrossim, necessitamos que os alfabetizadores, durante o processo de alfabetização, auxiliem os alunos na compreensão da função social da leitura e da escrita.

Para Paulo Freire “o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (Freire, 1989, p. 9).

Soares (1999) destaca que não basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas se alfabetizam, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da escrita, adquirindo competências para usar a leitura e a escrita e desenvolver essas práticas sociais de forma plena. Devido à relevância da temática, surgiu o interesse em compreender como a escola tem contribuído para diminuir os índices de analfabetismo funcional no Brasil.

O objetivo deste artigo é analisar brevemente a situação da educação no que se refere ao analfabetismo funcional. Não obstante, não pretendemos aqui propor formas para erradicar o analfabetismo no país, tampouco criticar o sistema de ensino brasileiro, mas esclarecer sucintamente suas causas e consequências. É uma tratativa inicial que busca contribuir para o esclarecimento do conceito, discorrendo em três dimensões.

Na primeira, abordaremos os conceitos de analfabetismo e analfabetismo funcional, destacando a importância da alfabetização e do letramento. Na segunda parte, buscaremos identificar as propostas de alfabetização criadas para erradicar o analfabetismo no Brasil. Na terceira, trataremos da função social da escola na formação de sujeitos leitores.

A gênese dos conceitos de alfabetismo, analfabetismo e alfabetismo funcional

O termo alfabetismo funcional teve origem nos Estados Unidos, no final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial. Esse termo foi utilizado pelos militares para avaliar a capacidade de entender instruções escritas na realização de tarefas militares. A partir desse contexto, o termo passou a ser empregado para representar a capacidade de alguém utilizar a leitura e a escrita em circunstâncias pragmáticas do cotidiano.

O conceito de analfabetismo faz alusão à condição de indivíduos que não sabem ler e escrever. O analfabetismo pode ser compreendido por dois vieses: o analfabetismo absoluto e o analfabetismo funcional. O primeiro, considera a pessoa que não foi alfabetizada, ou seja, não conhece as letras nem os números. O segundo, designa a pessoa capaz de identificar letras e números, mas com dificuldade em interpretar pequenos textos e fazer pequenos cálculos.

Conforme mencionado por Ribeiro (1997), o termo "analfabetismo funcional" tem sido utilizado para descrever um estágio intermediário entre o analfabetismo absoluto e o domínio completo e versátil da leitura e escrita, ou seja, um nível de habilidades limitado às tarefas mais básicas necessárias à "sobrevivência" nas sociedades industriais. Além disso, existem outros fenômenos associados ao analfabetismo funcional como o analfabetismo por regressão, que ocorre em grupos que já tiveram algum conhecimento de leitura e escrita, mas que por falta de prática, voltam a um estado de analfabetismo.

De qualquer maneira, ambas as concepções interferem no desenvolvimento do ser humano, pois limita o seu desempenho em situações simples do cotidiano, nas diferentes esferas da vida social.

Conforme Ribeiro (1997) argumenta, a origem do termo "analfabetismo funcional" está diretamente relacionada à iniciativa da Unesco que o incorporou em sua definição de alfabetização como proposta em 1958. O objetivo era estabelecer padrões estatísticos educacionais e influenciar as políticas educacionais dos países-membros.

Dessa forma, a definição proposta pela Unesco, segundo Ribeiro (1997), fazia referência à capacidade de compreender a leitura ou escrever uma frase curta e simples relacionada à vida cotidiana. A Unesco, há vinte anos, propôs uma definição. Posteriormente, ofereceu uma nova definição de alfabetização funcional, caracterizando-a como suficiente para que os indivíduos possam se integrar adequadamente em seu ambiente, sendo capazes de desempenhar tarefas que envolvam leitura, escrita e cálculos para o seu próprio desenvolvimento e para o desenvolvimento de sua comunidade.

O qualitativo “funcional” insere a definição de alfabetismo na perspectiva do relativismo sociocultural. Essa definição não busca mais limitar a competência ao nível mais básico (ler e escrever frases simples relacionadas à vida cotidiana), mas abranger diversos graus e tipos de habilidades, de acordo com as necessidades impostas pelos contextos econômicos, políticos ou socioculturais.

Ao longo do tempo, o conceito de alfabetização vem se modificando. No século XIX, uma pessoa capaz de escrever o próprio nome era considerada alfabetizada. No ano de 1940, a pessoa deveria saber ler e escrever um bilhete simples, demonstrando a exigência prévia de interpretação da cultura escrita para que se considerasse uma pessoa alfabetizada. A partir de 1958,

a Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) propôs uma definição de pessoa alfabetizada ou de analfabetismo. Segundo a Unesco, alfabetizada seria a pessoa capaz de ler e escrever com compreensão uma frase simples e curta sobre a sua vida cotidiana; analfabeta seria a pessoa que não consegue nem ler nem escrever uma frase simples e curta sobre a sua vida cotidiana (Britto, 2007, p. 20).

Essa lógica se aproxima de um conceito de analfabetismo funcional. “Atualmente, o censo populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para estabelecer o índice de analfabetismo, indaga aos entrevistados se existe em sua casa alguém que não saiba ler e escrever” (Britto, 2007, p. 21). Ou seja, a própria população define quem é ou não alfabetizado e a maioria das pessoas assume se possui ou não dificuldade ou se é realmente analfabeto.

Independente dos critérios de alfabetização, o alfabetismo vem se expandindo no Brasil. Há três fatores considerados fundamentais nessa expansão: o primeiro é o desenvolvimento econômico, que exige que o trabalhador não só faça serviços braçais, mas que saiba lidar com informações do processo produtivo, acarretando a tomada de decisões e operações de protocolos, exigindo do trabalhador a leitura e a escrita. Além disso, é preciso que interprete textos complexos do cotidiano de uma empresa.

O segundo fator que aparece na atualidade é o processo de urbanização. Na vida urbana há uma dependência do processo de produção, socialização, circulação, delimitada por tempo e espaços, que depende fundamentalmente da cultura da escrita, ou seja, uma pessoa deve dominar esta cultura para poder viver nessa sociedade urbanizada.

O terceiro fator que se apresenta é o desenvolvimento das tecnologias que trazem a ampliação dos meios de comunicação, o que praticamente exige que as pessoas consigam ler, escrever e interpretar, além de saber cálculos.

Nenhum desses fatores, porém, traduz a verdadeira face da educação. Não há democracia social. A educação não é igual para todos e a alfabetização é baseada na ideologia dominante na sociedade, assim a escola ensina conforme a lógica que a sociedade determina, ajustando o conhecimento à necessidade do sistema. Em outras palavras, no atual estágio da organização capitalista,

é necessário que essa grande parcela da população mundial saia do absoluto analfabetismo e torne-se capaz de assimilar informações imediatamente aplicáveis e necessárias sem a necessidade de grandes alterações no cotidiano dos indivíduos (Britto, 2007, p. 25).

Mas isso não garante a sua participação na sociedade, pois apenas se apropriar do sistema de escrita, sabendo enunciar sequências escritas ou escrever o seu nome e algumas frases, não traz a garantia alfabetizadora. Dessa maneira, estabelecer normas que separem os alfabetizados dos analfabetos não muda o lugar em que elas se encontram, apenas divide a sociedade em pessoas que sabem ler e escrever das que não sabem.

Levando em consideração que os níveis de conhecimento de cada pessoa podem variar, não há como padronizar a quantidade de conhecimento entre as pessoas, nem uniformizar a sociedade como se todos fossem alfabetizados ou analfabetos, o que significaria, segundo Ribeiro (2002), considerar três quartos da população adulta como analfabetos funcionais.

Conforme Britto (2007), nessa perspectiva, o Instituto Paulo Montenegro e a Ação Educativa passaram a realizar, desde 2001, uma pesquisa nacional sobre os níveis de alfabetismo em leitura, escrita e cálculo matemático: o INAF.

São classificados em três níveis conforme o número de questões que conseguem responder, no primeiro alfabetismo rudimentar, o qual a pessoa consegue compreender com dificuldade um texto muito curto, atinge o número de acertos de 3 a 8 questões; o segundo alfabetismo básico o qual a pessoa consegue localizar informações em textos curtos, atinge de 9 a 14 questões; alfabetismo pleno aqui a pessoa consegue ler textos longos e identificar o que este quer dizer, localizando mais de uma informação, relacionando partes do texto, comparando textos, realizando interferências e síntese, conseguiram resolver 15 ou mais questões. Considerando analfabeta a pessoa que não consegue responder a nenhum dos testes dados (Britto, 2007, p. 26).

O que chama atenção para a pesquisa é que não há uma definição exata do que é alfabeto e analfabeto, mas a capacidade de escrita, leitura e cálculo. A pesquisa revela que o alfabetismo está diretamente ligado ao grau de escolaridade, “em outras palavras, pode-se dizer que o principal fator de alfabetismo, isto é, de aprender a ler e escrever, usando a escrita nas muitas práticas sociais, é a educação escolar” (Britto, 2007, p. 31).

Por que é importante destacar esse fato? Porque temos ouvido constantemente muitas críticas às escolas, das mais variadas. Essas críticas, realizadas de forma descontextualizadas, tendem a transformar a escola em uma espécie de instituição inútil, quando os resultados do INAF nos mostram é exatamente o contrário: se tem uma instituição fundamental na organização da social hoje e que está funcionando, esta é a escola (Britto, 2007, p. 31).

Dessa forma, a função mais importante da educação escolar é a sua contribuição no desenvolvimento intelectual e social de cada aluno, implicando na expansão de seus conhecimentos sobre o cotidiano, auxiliando-o a sair do senso comum. A escola deve se preocupar em formar sujeitos que consigam relacionar conteúdos escolares com conhecimentos do cotidiano. Cabe ao professor direcionar da melhor forma o aluno para que ele consiga compreender e assimilar os conhecimentos. Não só conhecimentos aplicáveis imediatamente à prática, mas conhecimentos que fazem as pessoas refletirem sobre a realidade.

O papel da escola na formação de sujeitos leitores

A alfabetização começou no momento em que o sistema de escrita foi inventado; “nos tempos antigos, bem antigos, quem inventou a escrita inventou como ler e escrever, porque a escrita é uma questão social” (Cagliari, 2007, p. 53). As regras da língua estão sempre dentro do sistema da escrita, mas, com o início da alfabetização na escola, essas regras tiveram de ser explicitadas para facilitar o ensino e o entendimento. Por volta do século XVI, essas regras começaram a entrar em uma metodologia.

No passado, os métodos de alfabetização visavam principalmente ensinar às pessoas o reconhecimento das letras e a formação de sílabas e palavras por meio da leitura. Naquele tempo, o objetivo era que as pessoas fossem capazes de ler textos religiosos como as orações ensinadas na igreja. A interpretação de textos não era uma habilidade a ser ensinada, pois não havia a necessidade de lidar com textos não religiosos. À medida que surgiram textos não religiosos, passou-se a ensinar pequenas frases que, embora não tivessem relevância direta para a vida das pessoas, elas eram tratadas como textos e muitas vezes eram apenas pretextos para o método, sem a intenção de ensinar a interpretação.

Um elemento de destaque nesse método era a prática de cópia, exercício ainda amplamente utilizado. No entanto, esse método deve ir além da simples cópia, pois é essencial que as pessoas entendam o que e por que estão copiando, o que fará diferença em sua forma de utilização posteriormente. O ditado também é uma prática comum e relevante na escola, embora não seja uma maneira de alfabetizar as pessoas para se tornarem críticas e reflexivas. O ditado pode auxiliar no exercício da leitura e escrita e a memória, caso necessário, sem interferir em sua vida cotidiana.

A partir do século XVIII, com a Revolução Francesa, escolas foram criadas para o povo. As cartilhas eram utilizadas como meios de alfabetização e o povo precisou se adaptar a esse método de ensino anual, assim como o professor. Ele levava um ano para "alfabetizar" as pessoas. Caso terminasse antes desse prazo, não teria mais o que fazer dentro de sala de aula.

Até a Revolução Francesa, a alfabetização era realizada de forma individual. As pessoas se propunham a aprender a ler e assim se juntavam em pequenos grupos para fazê-lo. Ao criarem escolas, a alfabetização passou a ser coletiva, padronizada para todos os locais, independentemente das especificidades de cada região. As orações religiosas, antes utilizadas como textos de ensino, foram substituídas por textos morais e patrióticos ou de utilidade para a sociedade.

No século XX, a alfabetização começou a atingir as pessoas em escala mundial. Apareceram muitos materiais didáticos para ajudar nesse caminho e começaram a surgir problemas relacionados à alfabetização que exigiam soluções internas e externas.

Os problemas na alfabetização começaram a surgir quando as cartilhas já não davam mais conta de alfabetizar tantos alunos. As salas começaram a lotar, pois havia falta de professores, problema que se estende até os dias atuais, “faltam escolas, há excesso de alunos em salas de aula e uma carência de professores” (Cagliari, 2007, p. 57). Hoje, ser alfabetizado está diretamente ligado à inclusão na sociedade, pois quanto mais estudo, melhor o trabalho que se tem e melhor visão da sociedade sobre as pessoas. Isso vem desde a Segunda Guerra Mundial, quando as pessoas começaram a perceber o valor da alfabetização e da cultura em relação aos conflitos e os países começaram a investir na educação, vista como meio de sobrevivência.

Alfabetizar: trabalho com propósito

Alfabetizar é ensinar a ler e a escrever, sendo a leitura o processo mais importante nesse processo. A escrita surge como consequência do conhecimento adquirido na leitura. É essencial ensinar aos alunos a decodificação da escrita para, posteriormente, usar esse conhecimento na produção de sua própria escrita. A escola tem a preocupação de ensinar a norma culta desde a alfabetização. Não é necessário que os alunos dominem a pronúncia correta das palavras, sílabas e outros elementos fonéticos para aprenderem a escrevê-las.

Nesse sentido, Vygotsky (2001) ressalta a necessidade de uma prática pedagógica voltada para o desenvolvimento da leitura e da escrita. Destaca-se que o ensino deve organizar-se de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias, mas façam sentido às crianças. “A leitura e a escrita devem ser algo que a criança necessite” (Vygotsky, 2001, p. 143).

Dessa forma, no trabalho com a alfabetização, é essencial definir metas e finalidades claras, pois isso permite uma prática reflexiva e conduz as aprendizagens necessárias. O alfabetizador precisa ter objetivos bem definidos para fundamentar sua prática pedagógica. O processo de alfabetização ocorre quando o aprendiz compreende o funcionamento do sistema de escrita e aprende a ler e a decifrar a escrita.

Na alfabetização, é comum perceber que alguns alunos repetem as lições que dominam sem saber o que significam; assim, quando precisam relacionar esse conhecimento, não conseguem e produzem escritas sem sentido. Alunos que fazem esse tipo de escrita, não chegam a descobrir como funciona o sistema e não decifram algo escrito para ler.

A alfabetização tem outros objetivos, além de ensinar a decifrar a escrita. Ela envolve também saber escrever corretamente, falar e interpretar corretamente, por isso, o ensino da linguagem deve ser feito na prática, porque só aprendemos quando entendemos o significado. Esse significado só se constitui em um contexto que é formado no uso da linguagem, na interação verbal e social entre os sujeitos. Do mesmo modo, a cultura da escrita é constituída na prática dos sujeitos, o significado que marca é aquele posto em movimento nos processos de interação social. A educação deve buscar formas de ensinar a linguagem na prática para que sujeitos realmente aprendam o seu significado e como utilizá-la.

Conforme afirma Bakhtin (2002), a linguagem é um trabalho social e histórico e um campo de circulação de ideologias e de relações de poder. Contudo, aprender não é repetir algo que foi ensinado, mas criar algo semelhante a partir da iniciativa individual de quem aprende. Quando simplesmente se repete um modelo, não ocorre exatamente uma aprendizagem.

Em entrevista concedida à Revista Nova Escola, no ano de 2019, uma das maiores expoentes na área da alfabetização no Brasil, Magda Soares, afirmou:

Quando a escola começou a servir às camadas populares nos anos 1960, 1970 – o que é recente –, numerosas pesquisas da época mostraram que as crianças repetiram o 1º ano diversas vezes até aprender. Não porque o professor a cada ano mudasse as práticas para resolver os problemas que a criança estava enfrentando. Ele só repetia a cartilha até que o aluno aprendesse. Em uma pesquisa, eu tive a experiência de encontrar uma criança que estava há 11 anos repetindo o 1º ano. Várias estavam há três, quatros anos repetindo a mesma série até conseguirem aprender – era isso ou desistiam da escola. Sergio Costa Ribeiro [pioneiro na abordagem de temas como repetência e medição da qualidade do ensino no Brasil] tem pesquisas que demonstram estatisticamente as questões da repetência e evasão nesse período. Quando as pessoas falam que “antigamente aprendiam” é porque pertenciam a camadas sociais mais favorecidas e, portanto, já traziam um contexto cultural que avançava a compreensão da língua escrita ou porque ficaram na escola repetindo até que conseguissem aprender ou desistissem da escola. É uma ilusão dizer que no passado a alfabetização era melhor ou que as crianças aprendiam mais. Não é verdade (Soares, 2019).

Esse é um ponto fraco da escola, quando apresenta para a criança práticas de alfabetização que não consideram sua atividade intelectual, tão necessária para a compreensão e a apropriação da escrita como sistema simbólico de mediação entre realidade e desenvolvimento humano. Outrossim, sua prática favorece na formação de sujeitos analfabetos, pois além de não considerar o intelectual da criança, não envolve a prática do letramento. Dessa forma, o ato de ensinar pode ser coletivo, transmitido para várias pessoas, mas o ato de aprender é individual, aprende-se conforme a sua própria singularidade.

É importante ressaltar que o professor perdeu a liberdade dentro da escola ou da sala de aula, ficando imerso em pacotes metodológicos impostos pelo sistema, que determinam a maneira como ele deve conduzir a sua prática, desrespeitando as individualidades dos alunos.

Há também que destacar que “a língua nunca pode ser ensinada como produto acabado, pronto, fechado em si mesmo” (Britto, 2009, p. 16), pois, assim como Britto aponta, a língua é um produto do social, sempre em modificação e crescimento. Como ela se forma na prática, ela vai ser diferente para cada pessoa. Isso se justifica pelo fato da aprendizagem da escrita ser um processo bastante complexo, iniciado muito antes de as crianças entrarem na escola. Dependendo do meio em que estejam inseridas, elas têm a oportunidade de compreender as funções e os usos da escrita por meio de suas experiências culturais e vivências.

A língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar (Bakhtin, 2002, p. 108).

A escrita é carregada de valores ideológicos embutidos principalmente pelas classes dominantes, por isso é um poderoso instrumento de organização social que apresenta como sua principal característica a história, conhecimento repassado de cultura para cultura.

Na perspectiva da educação de competências, o que está em foco não é o conhecimento, mas uma espécie de capacitação geral do cidadão, de forma a torná-lo apto para agir em conformidade com as determinações do sistema, tendo, portanto, caráter fortemente alienado. Por essa lógica, haveria na sociedade contemporânea “novas demandas” de conhecimento, em especial no que concerne ao domínio relativo de leitura (secundariamente de redação) para corresponder às situações práticas mediadas pela escrita (Britto, 2009, p. 20).

A educação, na perspectiva da sociedade liberal e dominante, compreende o ensino do letramento como forma abstrata, porque a linguagem que a população precisa saber é a que ela utilizará no seu trabalho. Então, se ela aprende instruções básicas que auxiliam na conduta de sua vida, a forma complexa da língua que auxilia na melhor compreensão da sociedade não é importante para ser aprendida na escola.

Assim, o letramento não se resume somente a conhecimentos objetivos, saber ler e escrever; envolve outras áreas, assim não há como pensar o conceito de alfabetização sem envolver as outras áreas do conhecimento. Essa é a função da escola e o objetivo do educador em descobrir formas de educação que tenham como objetivo a emancipação humana, “a educação linguística tradicionalmente oferecida pela educação escolar tem como eixos a apresentação ostensiva de um modelo de correção da língua – a chamada língua padrão” (Britto, 2009, p. 22).

O objetivo do ensino da gramática é o aprendizado da língua padrão, independentemente do cotidiano. Entretanto, a escola tem de ir além disso. Ela deve indagar o porquê de se ensinar a língua, interagindo com o aluno de um modo que faça sentido ao aluno o que ele está aprendendo.

A mudança da perspectiva do ensino impõe não sua facilitação ou sua submissão à ordem do pragmatismo, mas a ênfase nos aspectos do conhecimento que transcende ao senso comum e aos saberes da vida prática. O trabalho continuado com a leitura e a escrita deve ocorrer nas atividades de estudo, preparação de intervenção e organização do que e como se pretende fazer, assim como na avaliação do que se escreveu e falou. O estudo da realidade brasileira e sua história, a investigação sobre o corpo, seus valores e funcionamento, a reflexão sobre processos naturais e sociais, a investigação da cultura local ou nacional – tudo isso supõe a leitura de textos e a produção [...]. Isso significa que o estudante deve ler e redigir textos, fazer opções entre os recursos linguísticos conhecidos e buscar outros que conhece menos (Britto, 2009, p. 25).

A escola não pode somente ensinar o aluno a ler e escrever. Ela deve ver a alfabetização como letramento, ou seja, deve ensinar as pessoas como utilizar esses conhecimentos em sociedade, em coisas úteis da sua vida, pois alfabetizar não é apenas saber decodificar, mas entender textos. O professor deve ter a capacidade de lidar com as dificuldades dos alunos em relação ao aprendizado da análise linguística. Muitas vezes, ele não está preparado para isso, porque sua formação linguística é pobre ou nula. Somente a competência do professor pode ajudar os alunos. “O país precisa de alfabetizadores competentes, conhecedores dos problemas linguísticos relacionados à própria atividade em sala de aula” (Cagliari, 2007, p. 70).

A função da educação escolar, segundo Britto (2009, p. 26), “é promover o senso crítico e os conhecimentos que ultrapassam a vida cotidiana”, a partir do trabalho escolar, desenvolvendo o gosto pela cultura da escrita. Quando a atividade com a língua ultrapassa a sala de aula e se transforma em algo amplo e prazeroso ao aluno, ela se torna algo palpável e significativo.

Não apenas os conhecimentos do cotidiano são importantes, mas é necessário apresentar ao aluno outras culturas, a fim de que ele possa indagar sobre assuntos que vão além do seu mundo cotidiano. Segundo Pistrak (2000), na formação básica dos sujeitos, ensinar não é apenas transmitir conhecimentos, mas criar caminhos para a transformação da realidade, a fim de que o aluno chegue aos conhecimentos de forma articulada e relacionada à vida.

Enfim, os objetivos fundantes da educação escolar, o que inclui a educação linguística, devem contribuir para a ampliação da capacidade de interpretação da realidade, o que conduz compreender o ato de conhecer como esforço sistemático e abrangente; a apreensão de conceitos – percebidos como modelos de compreensão da realidade em permanente reelaboração –, para a busca permanente do conhecimento; e a problematização da vida concreta, como condição de compreender a realidade e atuar sobre ela para transformá-la (Britto, 2009, p. 29).

Professores são responsáveis por relacionar os conhecimentos do cotidiano aos conhecimentos escolares, tornando-os significativos.

É aí que reside a competência do professor, que deverá ser a alma de qualquer método, de qualquer teoria de alfabetização. [...] A primeira ideia básica que se deve ter de alfabetização, o que pretende se fazer. A resposta é simples: alfabetizar é saber ler. Ao aprender a ler, a pessoa adquiriu todos os conhecimentos relativos à linguagem oral e escrita. Ao usar essas habilidades, como falante nativo saberá ler e interpretar, como entende o que ouve diretamente das outras pessoas. Como conhecedor de como se lê, saberá transpor sua fala para um texto escrito. A partir daí, outros conhecimentos serão acrescentados, como a escrita ortográfica e os usos diferentes que a sociedade espera da fala e da escrita das pessoas (Cagliari, 2007, p. 67).

Podemos observar que a escola, muitas vezes, não se preocupa com a qualidade dos conhecimentos construídos juntos aos alunos, mas com a quantidade deles. É importante, portanto, que a escola traga conhecimentos próximos do cotidiano da sociedade, pois, segundo Pistrak (2000), sem esse conhecimento, os alunos estarão condenados a serem simples trabalhadores, alienados e explorados, sem a compreensão de seu papel social.

Considerações finais

O analfabetismo no Brasil é uma questão histórica. Quando debatemos os assuntos educacionais no Brasil, o analfabetismo aparece como um problema enraizado, delimitador das condições sociais.

Dessa forma, o enfrentamento contra o analfabetismo deve ser constante. O problema maior é que a mídia encara o analfabetismo como um problema individual. Assim, as propostas e campanhas de alfabetização não ganham força como problema social.

A escola, principal promotora do conhecimento sistematizado, promove a alfabetização como processo de ressignificação de sentidos. Isso posto, os alunos precisam entender que a escrita tem uma função social no cotidiano e deve ser permeada de sentido, não uma prática de escrita de palavras isoladas.

A criança precisa compreender que ela escreve para outra pessoa ler, para um interlocutor ou para o próprio “eu”. Assim, a alfabetização requer um momento de diálogo com práticas de leitura e escrita discursiva a fim de que os alunos possam ter momentos de discussão para melhor aproveitamento da sua aquisição.

É importante considerar que o modo como são compreendidos os processos de alfabetização e letramento compõem elementos metodológicos de ensinar e aprender em sala de aula, bem como o processo histórico de apropriação da linguagem e formação do pensamento teórico.

Este estudo serve para mostrar a realidade em que o país se encontra e em que podemos nos basear para escolher qual o melhor caminho a seguir, investindo em novas pesquisas a respeito da temática, observando que a educação transforma e leva o cidadão a pensar por si mesmo.

Referências

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PISTRAK, Moisey. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2000.

RIBEIRO, Vera Masagão. Alfabetismo funcional: referências conceituais e metodológicas para a pesquisa. Educação & Sociedade [online], v. 18, n° 60, p. 144-158, 1997.

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SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita. São Paulo: Cortez, 2012.

SOARES, Magda. Vivi o Estado Novo e passei pela ditadura, mas nunca vi um período tão assustador como este na Educação [Entrevista concedida a Laís Semis]. Revista Nova Escola, São Paulo, 2019. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/15004/vivi-o-estado-novo-e-passei-pela-ditadura-mas-nunca-vi-um-periodo-tao-assustador-como-este-na-educacao. Acesso em: 12 jun. 2023.

SOARES, Magda. Letramento: um tema três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Publicado em 06 de agosto de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

OLIVEIRA, Leisa Aparecida Gviasdecki de. Ressignificando o analfabetismo: algumas considerações sobre o analfabetismo funcional no Brasil. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 28, 6 de agosto de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/28/ressignificando-o-analfabetismo-algumas-consideracoes-sobre-o-analfabetismo-funcional-no-brasil

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