Trabalhando com números inteiros: uma prática de ensino por meio de material didático manipulável
Lais Scorziello Feitosa da Silva
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Educação Básica e Formação de Professores (UFES), licenciada em Matemática (IFES)
Jorge Henrique Gualandi
Doutor em Educação Matemática (PUC-SP), professor do IFES - câmpus Cachoeiro de Itapemirim, professor credenciado do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Educação Básica e Formação de Professores (Ufes - câmpus de Alegre)
Na sociedade atual, é imprescindível que o ensino de Matemática seja conduzido de forma a tornar o aluno um sujeito ativo do seu processo de aprendizagem, capaz de argumentar, elaborar estratégias de resolução de problemas e tomar decisões quanto a uma situação-problema. Para isso, também é essencial que o ensino não seja reduzido a uma prática reprodutora de atividades, memorização de regras e fórmulas, repetição e treino de exercícios (Santos; Gualandi, 2016).
Segundo Mello et al., 2021, buscar experiências novas que sejam eficazes para transformar a realidade do baixo rendimento no aprendizado da Matemática e a desmotivação dos alunos em sala de aula tem sido o desafio constante do professor na sua prática docente.
Diante disso, entendemos que o material didático manipulável (MDM) pode ser um excelente recurso para o processo de ensino-aprendizagem. Turrioni e Pérez (2021) alegam que o MDM facilita observação e a análise, desenvolvendo nos sujeitos o raciocínio lógico, crítico e científico. De acordo com Lorenzato (2021), ao utilizar esses materiais de forma correta, o professor pode “conseguir uma aprendizagem com compreensão, que tenha significado para o aluno, diminuindo, assim, o risco de serem criadas ou reforçadas falsas crenças referentes à Matemática” (Lorenzato, 2021, p. 48).
Para Grossnickle, Junge e Metzner (1951), o MDM é objeto ou coisa que o aluno é “capaz de sentir, tocar, manusear e mover. Podem ser objetos reais que têm aplicação social em nossos assuntos cotidianos ou podem ser objetos que são usados para representar uma ideia” (Grossnickle; Junge; Metzner, 1951, p. 162 apud Reys, 1971, p. 551, tradução nossa).
Lorenzato (2021) comenta a importância dessa manipulação de materiais didáticos no processo de aprendizagem. Citando diversos educadores que são referência na História da Educação (como Comenius, Locke, Rousseau, Pestalozzi, Froebel, Herbart e Dewey) e falaram da relevância do apoio visual ou visual-tátil para proporcionar a aprendizagem, Lorenzato declara que
cada educador, a seu modo, reconheceu que a ação do indivíduo sobre o objeto é básica para a aprendizagem. Em termos de sala de aula, durante a ação pedagógica, esse reconhecimento evidencia o papel fundamental que o material didático pode desempenhar na aprendizagem (Lorenzato, 2021, p. 12).
Na área do ensino de Matemática, Damas et al. (2010) propõem duas formas de categorizar os MDM: estruturados ou não estruturados. Materiais estruturados são aqueles que foram produzidos especificamente para ensinar Matemática (sólidos geométricos, geoplano, réguas, ábaco e compasso, entre outros). Os não estruturados são aqueles que não foram feitos para um fim matemático, mas podem ser utilizados para o ensino (tampinhas, papel, embalagens, canudos, palitos de picolé etc.).
É importante salientar que os MDM podem ser utilizados em vários momentos do processo de ensino. Para Lorenzato (2021, p. 29), “o professor deve perguntar-se para que ele deseja utilizar o MD: para apresentar um assunto, para motivar os alunos, para auxiliar a memorização de resultados, para facilitar a redescoberta pelos alunos?”. Vale ressaltar que, neste trabalho, consideramos material didático (MD) e material didático manipulável (MDM) com o mesmo significado. Padronizamos dessa forma devido às diferentes nomenclaturas aplicadas pelos autores. Neste artigo, que faz parte de uma pesquisa de mestrado em andamento, apresentamos uma proposta de MDM que pode ser empregado para abordar um conteúdo: a adição de números inteiros.
Meister (2009, p. 14) menciona que “operações com números inteiros é um conteúdo importante não só para o cotidiano do aluno, mas na resolução de equações, o que permite ao aluno compreender conceitos mais avançados de Matemática". Dessa forma, enfatizamos a relevância de os estudantes aprenderem a operar com números inteiros de modo que se sintam seguros para avançar nos conteúdos posteriores.
Em sua pesquisa, Meister (2009) cita algumas dificuldades encontradas por estudantes no processo de aprendizagem do conteúdo de operações com números inteiros; dentre elas destacamos a falta de compreensão do significado de adicionar dois números negativos, subtrair uma quantidade maior de uma menor, subtrair alguma quantidade de zero, diferenciar os números naturais dos números inteiros e a distinção do sinal do número e sinal da operação. O autor ainda afirma que
as sugestões oferecidas pelos pesquisadores consultados incluem o uso de jogos desafios, resoluções de problemas e, principalmente, discussões sobre o tema. Essas atividades incentivam o aluno a interagir e participar das discussões, a fim de construir o conhecimento diferentemente de quando o conhecimento é apresentado de forma pronta e estruturada. Dentre os jogos oferecidos e testados pelos pesquisadores, temos o quebra-cabeça (Meister, 2009, p. 20).
Entendemos que o MDM “tabuleiro dos inteiros” pode auxiliar no processo de aprendizagem dos alunos, minimizando as dificuldades que são comuns ao serem apresentados às operações com números inteiros.
O MDM Tabuleiro dos Inteiros
Apresentamos a seguir uma proposta de tarefa que pode ser realizada por professores de Matemática que lecionam em turmas dos anos finais do Ensino Fundamental. O material a ser abordado é denominado Tabuleiro dos Inteiros (Figura 1); trata-se de uma proposta de MDM para o ensino de adição de números inteiros.
Figura 1: Tabuleiro dos Inteiros
Fonte: Acervo do Laboratório de Ensino de Matemática (LEM) – IFES- câmpus Cachoeiro de Itapemirim
Para confecção do Tabuleiro dos Inteiros, sugerimos a utilização de uma folha de papelão e três cores diferentes de folha de EVA; também serão necessárias cola e tesoura. Para construir esse MDM, indicamos os passos previstos no Quadro 1.
Quadro 1: Passos para construção do MDM
Etapa |
Descrição |
1 |
Cortar uma folha de papelão em forma de um quadrado (sugestão de tamanho: 30cm x 30cm). |
2 |
Cortar duas folhas de EVA (de cor diferente das cores dos círculos) do mesmo tamanho da folha de papelão. |
3 |
Colar uma folha de EVA em cada face da folha de papelão para formar a base do tabuleiro (como na Figura 2). Figura 2: colagem das folhas de EVA no papelão |
4 |
Cortar as folhas de EVA em quatro círculos com diâmetros diferentes. Sugerimos que os círculos possuam 25cm, 20cm, 15cm e 10cm de diâmetro, respectivamente; dessa forma, poderão ser colados de maneira que fiquem sobrepostos (é necessário que as cores fiquem alternadas, como na Figura 1). |
5 |
Colar o círculo maior no centro da base do tabuleiro e, depois, colar os demais círculos um sobre o outro de forma que essas figuras sejam concêntricas (ver Figura 1). |
Fonte: Dados síntese da pesquisa, 2023.
O professor pode dividir a turma em duplas e orientar os alunos a confeccionar o tabuleiro. Para iniciar o jogo é necessário ter as quantidades previstas para cada item (Quadro 2).
Quadro 2: Itens para a tarefa
Itens |
Quantidade |
Tabuleiro |
1 |
Caroços de feijão |
30 |
Folha de papel |
1 |
Lápis |
1 |
Borracha |
1 |
Fonte: Dados síntese da pesquisa, 2023.
Antes de começar a tarefa, os estudantes devem ser orientados a considerar as regiões de cor vermelha como “negativas” e as regiões de cor azul como “positivas”. Para a execução da tarefa, primeiramente as duplas deverão jogar alguns caroços de feijão sobre o tabuleiro. Indicamos que sejam lançados poucos caroços no começo. Se a dupla decide jogar apenas 5 caroços, irão obter algumas possibilidades, por exemplo: 2 unidades na região vermelha e 3 unidades na região azul; 1 unidade na região vermelha e 4 unidades na região azul; 5 unidades na região vermelha e nenhuma na região azul, entre outras.
Para um melhor entendimento, como primeiro exemplo, podemos ilustrar a seguinte situação: ao lançar 5 feijões, caíram 2 caroços na região vermelha e 3 caroços na região azul do tabuleiro (Figura 3). Nessa situação, a dupla deveria registrar no caderno o número dois como negativo (-2) e três como positivo (+3).
Figura 3: Exemplo 1
Fonte: Acervo do LEM – IFES - Câmpus Cachoeiro de Itapemirim
Após os registros, o professor orientaria os alunos a realizar a operação de forma a “cancelar” o mesmo número de feijões da região vermelha e azul (negativa e positiva). No exemplo anterior, caíram 2 feijões na região vermelha; logo, a dupla será orientada a retirar esses dois caroços do tabuleiro e outros dois caroços da região azul, restando assim, um feijão na região azul. A solução da operação é interpretada pelo número de feijões que resta após o “cancelamento” e, ainda, por em qual região os caroços restantes estão, vermelha (determinada como negativa) ou azul (determinada como positiva). Como nessa suposição restou apenas um feijão na região colorida de azul, a solução será “+1” (-2 +(+3) = +1). O resultado deve ser registrado no caderno para análises posteriores.
Suponha um segundo exemplo, em que o número de feijões na região colorida de vermelho seja maior que o número de feijões na região colorida de azul. Se a dupla lançasse 5 feijões no tabuleiro e caíssem 4 feijões na região vermelha e um feijão na região azul – ver Figura 4 –, a dupla retiraria um caroço na região vermelha e um caroço na região azul.
Figura 4: Exemplo 2
Fonte: Acervo do LEM – IFES - Câmpus Cachoeiro de Itapemirim
Após esse “cancelamento”, a região azul ficaria sem feijões e restariam apenas 3 caroços na região vermelha, o que gera o resultado -3 da operação (-4 + (+1) = -3).
E se caírem quantidades iguais na região vermelha e azul? Lançados 6 feijões, considere que 3 feijões caíram na região vermelha e 3 feijões caíram na região azul (Figura 5).
Figura 5: Exemplo 3
Fonte: Acervo do LEM – IFES - Câmpus Cachoeiro de Itapemirim.
Ao “cancelar” a mesma quantidade de feijões da região vermelha e azul, os estudantes perceberiam que não sobraria nenhum caroço. Logo, o resultado da operação deveria ser registrado como zero.
Outra possibilidade é de caírem caroços de feijões apenas em regiões de mesma cor, vermelha ou azul. Se ao jogar 4 feijões todos caíssem na região vermelha, então não haveria a possibilidade de fazer o “cancelamento”. Nessa situação, os alunos poderiam registrar “-4” para a região vermelha e “0” para a área azul. Assim, a solução seria “-4” (-4 + 0 = -4).
Após alguns registros, é importante que o professor oriente os alunos a observar os padrões dos resultados das operações. É fundamental que os estudantes concluam que em todas as operações foi necessário subtrair e colocar o sinal do maior módulo no resultado.
Vale ressaltar que, ao lançar os feijões apenas uma vez e contar separadamente a quantidade de caroços em cada região (determinada como negativa e positiva), só será possível obter operações com algarismos de sinais opostos ou com apenas um sinal. Para trabalhar com operações de algarismos de mesmo sinal (“-5 + (-6) ” ou “+5 + (+6) ”, por exemplo), é preciso que o aluno lance os feijões duas ou mais vezes e eles caiam em regiões da mesma cor, para depois resolver a operação.
Considere que o aluno lançou 5 feijões e todos caíram na região vermelha (-5). Após o registro, lançou novamente outros 6 caroços de feijão e todos caíram na região de mesma cor (-6). Assim, estaria registrada a seguinte operação: -5 + (-6). Como a possibilidade de que todos os feijões caiam em regiões de mesma cor (nesse caso, na região vermelha) e em dois ou mais lançamentos é pequena, o professor pode orientar uma segunda atividade em que os alunos escolham as quantidades de feijões para colocar em cima das regiões de uma mesma cor, sem lançar ao acaso. Desse modo, é possível estudar a adição de números com mesmo sinal. Após essa tarefa e a observação dos novos registros, é interessante que os estudantes cheguem à conclusão de que ocorre um novo padrão: quando os sinais são iguais, deve-se somar os módulos e manter o sinal.
O que se pretende com o jogo?
Com o tabuleiro dos inteiros espera-se que os estudantes construam a aprendizagem referente à operação de adição de números inteiros de forma dinâmica e participativa. O MDM em questão pode ser utilizado para introdução do conteúdo de adição de números inteiros.
Além da mediação do professor, por suas observações os alunos poderão perceber os padrões nos resultados das operações registradas, o que os conduz à formalização das propriedades referentes à adição de números inteiros. Desse modo, o discente torna-se um participante ativo em seu processo de aprendizagem e o docente não irá apenas apresentar regras.
Com a utilização dessa proposta de atividade, espera-se que os professores de Matemática obtenham bons resultados no processo de aprendizagem de seus alunos.
Referências
DAMAS, Ermelinda; OLIVEIRA, Vânia; NUNES, Raquel; SILVA, Luísa. Alicerces da Matemática: guia prático para professores e educadores. Porto: Areal, 2010.
LORENZATO, Sérgio. O laboratório de ensino de Matemática e os materiais didáticos. In: LORENZATO, Sérgio (org.). O laboratório de ensino de Matemática na formação de professores. 3ª ed. Campinas: Autores Associados, 2021. p. 12-52. E-book.
MEISTER, Julio C. Estudando dificuldades na compreensão de números inteiros. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Matemática) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
MELLO, Cristiane de; SILVA, Daniela Mendes Vieira da; PEREIRA, Loisi Carla Monteiro; MARTARELLI, Luzia da Costa Tonon; FREIRE, Mara Neves Lima; RAINHA, Marcelo Leonardo dos Santos. O jogo Trilha dos Restos: uma metodologia para o ensino de Matemática utilizando material concreto. Revista Educação Pública, v. 21, nº 4, 2 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/4/o-jogo-itrilha-dos-restosi-uma-metodologia-para-o-ensino-de-matematica-utilizando-material-concreto.
REYS, Robert E. Considerations for teachers using manipulative materials. The Arithmetic Teacher, v. 18, nº 8, p. 551-558, dez. 1971. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/41186429. Acesso em: 27 out. 2022.
SANTOS, Rejane Costa dos; GUALANDI, Jorge Henrique. Laboratório de ensino de Matemática: o uso de materiais manipuláveis na formação continuada de professores. In: ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA (ENEM), 12., 2016, São Paulo. A Educação Matemática na contemporaneidade: desafios e possibilidades. São Paulo: SBEM, 2016. p. 1-12. Disponível em: http://www.sbem.com.br/enem2016/anais/pdf/5490_2562_ID.pdf. Acesso em: 7 set. 2022.
TURRIONI, Ana Maria Silveira; PÉREZ, Geraldo. Implementando um laboratório de Educação Matemática para apoio na formação de professores. In: LORENZATO, Sérgio (org.). O laboratório de ensino de Matemática na formação de professores. 3ª ed. Campinas: Autores Associados, 2021. p. 74-94. E-book.
Publicado em 06 de agosto de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
SILVA, Lais Scorziello Feitosa da; GUALANDI, Jorge Henrique. Trabalhando com números inteiros: uma prática de ensino por meio de material didático manipulável. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 28, 6 de agosto de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/28/trabalhando-com-numeros-inteiros-uma-pratica-de-ensino-por-meio-de-material-didatico-manipulavel
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