Como educar seres livres?

Ronie Alexsandro Teles da Silveira

Docente da UFSB

Nas sociedades democráticas contemporâneas, os processos educacionais enfrentam uma crise profunda perceptível em diversas esferas, desde o ambiente familiar até as instituições universitárias, gerando um sentimento generalizado de desorientação. Essa situação reflete tanto a peculiar maneira como a sociedade brasileira realiza seus processos formais e informais de educação quanto as consequências mais amplas da vida democrática, especialmente as dificuldades em lidar com a inclusão das diversas diferenças individuais.

A crescente demanda pelo respeito às diferenças, característica do contexto cultural democrático contemporâneo, tem exigido ajustes e redefinições nos processos educacionais. No entanto, nem sempre os sentidos, as direções e os desafios das transformações necessárias são evidentes diante da intensificação da vida democrática. Isso pode resultar em dificuldades teóricas e práticas, exacerbadas pela falta de clareza sobre as implicações educacionais das condições atuais existentes, além das resistências políticas significativas.

Diante da ausência de um panorama abrangente que torne esses processos educacionais perceptíveis, há o risco de deixar ações individuais à própria sorte, enfraquecendo esforços individuais e fragmentando iniciativas. Por exemplo, pode-se perder de vista o verdadeiro significado da inclusão das diferenças individuais em contextos específicos, pela ausência de um entendimento global das transformações ocorrentes nessa área. Este artigo visa proporcionar esse entendimento abrangente, oferecendo uma perspectiva mais ampla dos desafios contemporâneos relacionados à educação.

É crucial compreender que a crise atual está intrinsecamente ligada à valorização crescente da liberdade individual e aos seus impactos sobre o sistema educacional. Para tornar explícita essa relação nos nossos dias, é fundamental primeiro entender seu funcionamento em sociedades mais antigas, marcadas por estruturas hierárquicas e não democráticas.

A educação tradicional

As sociedades tradicionais hierarquizadas são caracterizadas por um poderoso dispositivo de reprodução social. Este dispositivo consiste na capacidade de conectar gerações sucessivas de modo que a estrutura social permaneça inalterada ou mantenha-se estável, mesmo diante de mudanças. Embora esse mecanismo seja frequentemente entendido como essencialmente conservador, não é correto atribuir-lhe apenas características negativas, como o uso corrente do termo pode sugerir.

Um dos maiores desafios dessas sociedades foi manter-se, ao longo do tempo, proporcionando às gerações futuras um patamar mínimo de condições de sobrevivência já conquistadas. A preservação dessas conquistas permitiu evitar a necessidade de iniciar a batalha contra forças desagregadoras do zero. Em vez disso, possibilitou o acúmulo de riqueza cultural, melhorando a capacidade de enfrentar tanto as pressões sociais quanto as naturais, dotadas de um vetor caótico.

Para garantir a contenção desses elementos desagregadores, a sociedade desenvolveu a habilidade de transmitir à geração seguinte um conjunto de elementos culturais já adquiridos, criando assim um processo cumulativo. Esse sistema proporcionou uma estabilidade frente à ameaça constante da instabilidade social. Tratava-se de estabelecer um arranjo social que permitisse boas condições de vida, baseando-se no que já havia sido conquistado, ao mesmo tempo em que permitia um progresso gradual. Cada geração partia desse patamar intermediário e sedimentado para avançar ainda mais. Esse mecanismo de conservação visa fundamentalmente viabilizar o progresso material e espiritual das sociedades hierarquizadas.

A quebra da linha de transmissão dos ganhos culturais representava um risco de colapso da sociedade diante das forças desagregadoras, podendo levar a um retrocesso em relação às conquistas já alcançadas. Por isso, a sobrevivência dessas sociedades exigia uma eficácia pedagógica elevada: os papéis ou funções sociais de cada indivíduo, assim como suas respectivas identidades, eram definidos desde o nascimento, de tal forma que a estrutura geral se mantinha razoavelmente estável. Esse sistema permitia a mobilização imediata das forças sociais, uma vez que tais funções não continham nenhum elemento problemático.

Cada indivíduo era informado, na circunstância do seu nascimento, sobre sua função social necessária, minimizando o gasto de energia no processo de ajuste entre dimensões da vida social. O princípio da economia é perceptível, pois o acoplamento precoce entre o indivíduo e a função social evitava o desperdício de energia no ajuste. 

A educação desempenhava papel de mecanismo de reprodução responsável por manter a estrutura social estável, garantindo que cada nova geração fosse moldada, colocando-a em condições de dar um passo adiante, a partir dos elementos sociais já consolidados. É inegável reconhecer que a conservação é uma virtude nesse contexto. Portanto, a eficácia pedagógica tornou-se uma característica crucial para a capacidade de uma sociedade sobreviver, resistindo às forças desintegradoras.

A possível interpretação de que Zeus teria enganado Cronos, estabelecendo uma nova ordem divina do mundo e uma sociedade organizada, simboliza esse mecanismo de vitória sobre a corrupção do caos temporal, mas não se limita a isso. O próprio ambiente político contém seus próprios elementos de corrupção que também devem ser objetos de medidas que permitam a manutenção das conquistas de uma sociedade.

As formas de memória social, como a escrita, desempenham papel crucial nesse processo. A preservação de recursos e estratégias para resolver problemas representa um ganho de esforço humano incalculável. Sequer podemos imaginar o que significaria recomeçar permanentemente o esforço para descobrir como utilizar recursos disponíveis ou mesmo identificar quais são esses recursos, em cada contexto de sobrevivência. Apenas severas patologias cognitivas, associadas à corrupção da memória, podem fornecer metáforas eficazes para representar sociedades incapazes de conservar suas configurações (Sachs, 2016).

A eficácia pedagógica é esse dispositivo que mantém certa ordem social, uma engrenagem que conecta uma geração à outra com o mínimo de perda de força motriz, com a capacidade de moldar imediatamente a identidade pessoal e dar continuidade ao processo cultural cumulativo. Os indivíduos, membros dessas sociedades hierárquicas, são incorporados desde o nascimento à estrutura social existente. Portanto, suas identidades não se tornam problemáticas na medida em que são definidas como funções sociais.

As identidades podiam se tornar problemáticas em momentos de revolução, quando a própria estrutura social era questionada. Porém, isso ocorria quando tal estrutura não conseguia mais atender às necessidades urgentes que surgiam, exigindo novas formas de organização. Isso significava que um novo arranjo se tornava necessário, mas não que a própria eficácia pedagógica, a energia conservadora dessa sociedade fosse posta em dúvida. Nesses casos, tratava-se de substituir uma configuração conservadora particular por outra, mas não de renunciar ao dispositivo cultural de reprodução da vida social. Algumas funções necessitavam ser substituídas, mas não se ampliava a distância entre os indivíduos e as suas respectivas funções. O arranjo geral se alterava, mas permanecia uma estrutura básica, essencialmente conservadora, que vinculava funções sociais a identidades pessoais.

Em condições normais, com a vigência de um conjunto estável de valores e elevada eficácia pedagógica, a identidade dos indivíduos é um dado. Ela se apresenta como um elemento natural e sólido. Nesse contexto, os indivíduos não questionam suas identidades, pois essas são estabelecidas desde o nascimento. A educação prepara para a aceitação geral da estrutura social e atribui identidades a cada um de seus membros, funcionando como uma segunda natureza, tão sólida quanto a primeira.

O conjunto de valores que estabelece as identidades das gerações futuras constitui a cultura de uma determinada sociedade. Trata-se, portanto, de uma sociedadecultural. Esse conjunto é produzido pela eficácia pedagógica, garantindo a sua reprodução e a sua permanência. Há aqui uma clara supremacia das funções sociais sobre o indivíduo, entendido como um elemento não problemático desse processo.

Assim, a identidade pessoal é estabelecida na medida em que o indivíduo assume uma função social específica sobreposta a ele automaticamente, não cabendo promover nenhum tipo de arranjo subsequente. Não há espaço para merecimento ou desempenho das funções sociais, como se os indivíduos pudessem competir por elas. Isso ocorre porque não há, propriamente falando, indivíduos fora das funções sociais que desempenham.

Podem até existir seres humanos sem funções sociais reconhecidas. No entanto, eles são considerados excluídos, desprovidos de funções socialmente válidas e, portanto, destituídos de humanidade. Sem uma função social, uma pessoa não existe socialmente. O que resta dessa exclusão é apenas uma mera unidade biológica, não um indivíduo socialmente reconhecido como tal.

Nesse contexto, a identidade pessoal não representa um problema para o indivíduo. A educação tradicional, típica de uma sociedade cultural, associa tão firmemente os indivíduos às funções sociais que adequações posteriores não são necessárias. Assim, não há espaço para distúrbios e disputas e, portanto, não há um mecanismo de ajuste entre talentos individuais e funções sociais para otimizar os resultados dessa relação. Indivíduos e funções não se ajustam, pois os indivíduos nascem com suas funções e sua tarefa é apenas desempenhá-las dentro do padrão de expectativas definido pela educação.

Assim, a identidade pessoal não é fonte de conflitos nem causa perturbações sociais nesse contexto. Embora exista uma aparente perda quando observamos do ponto de vista instrumental – os meios (indivíduos) não se adéquam aos fins (funções sociais). Há um ganho em mobilização imediata, pois os indivíduos já sabem, desde o nascimento, qual é o seu papel. Nenhum ajuste é necessário, porque todos já são suas respectivas funções sociais.

Não há, literalmente falando, problemas de natureza existencial aqui – não surgem crises de identidade ou dificuldades de ajuste social. Em geral, nessas circunstâncias de elevada eficácia pedagógica, um indivíduo não se sente deslocado de sua identidade e não percebe a diferença entre o que ele é e o que deveria ser, porque ele só pode ser o que deveria ser. Não há possibilidades em aberto, nem zona de indeterminação que possa gerar crises ou experiências existenciais problemáticas. Nesse contexto, uma eventual inadaptação individual a uma função social significa uma incapacidade de viver em sociedade.

Nesse caso, a exclusão do convívio social daqueles que se mostram desajustados é a única saída. Qualquer rebelião contra o estabelecimento de uma função social equivale a uma negação de sua própria identidade, uma negação da única forma de vida possível e, portanto, uma recusa à própria humanidade. Nessas sociedades hierarquizadas, um indivíduo inadaptado é considerado um bárbaro, alguém que não entendeu o significado da vida social, um ser destituído das qualidades humanas básicas. Fora das sociedades hierarquizadas, dotadas de eficácia pedagógica, não há humanidade.

A educação desempenha papel fundamental nessa estrutura social, funcionando como o mecanismo de definição das identidades pessoais estipuladas desde o nascimento. Ela é um catalisador social responsável pela unidade de uma pluralidade bem definida e pelo ajuste do mecanismo de transmissão cultural.

Em sociedades tradicionais desse tipo, a eficácia pedagógica é garantida por mecanismos sociais extremamente poderosos. É interessante observar, por exemplo, como o estilo de vida dos indígenas americanos era rigorosamente estável, enquanto a educação carecia de traços de repressão ou violência (Anchieta, 1933; Boggiani, 1975). A tentativa de substituir esse mecanismo pelos padrões colonialistas europeus revelou-se impossível, dado que o cristianismo exige a noção de vida interior e se estrutura a partir de uma elevada dose de liberdade individual (Sahagún, 1982).

A necessidade de repressão nos processos educativos parece surgir somente quando se rompe a unidade original entre a dimensão individual e as funções sociais. Quando não há tal fissura, não é necessário fazer ajustes educacionais, pois se tornar humano significa se tornar um membro social apto. Isso indica que a repressão é contemporânea à liberdade individual e só faz sentido quando aquela unidade tradicional já se rompeu e alguma lacuna se abriu entre a função social e o indivíduo que a executa.

A educação contemporânea

Atualmente, a educação começa a ser entendida retrospectivamente como um processo que impõe ao indivíduo uma função social. O tradicional processo educativo em que o indivíduo desempenhava uma função social agora é interpretado como um sistema de imposição de papéis sociais. A diferença fundamental é que hoje percebemos a educação como partindo do pressuposto de que os indivíduos são livres.

As sociedades tradicionais, caracterizadas por hierarquias bem definidas, possuem um poderoso dispositivo de reprodução social. Esse dispositivo conecta as gerações sucessivas, garantindo a estabilidade da estrutura social, mesmo diante de mudanças. Embora frequentemente seja visto como conservador o mecanismo não deve ser entendido apenas por suas conotações negativas, como geralmente sugere o senso comum.

Com a ampliação da liberdade individual (Hegel, 1989), a educação se tornou um processo que atua sobre uma condição humana específica. Podemos dizer que, com a expansão da liberdade, a educação se tornou intensamente problemática. Com ela, se introduziu na equação social tradicional uma dimensão originalmente não contaminada, mas que necessita ser preenchida por funções sociais específicas, afinal, os seres humanos vivem em sociedade.

O que é curioso aqui é que a liberdade individual introduz um elemento indeterminado no campo educacional. No entanto, essa indeterminação inicial necessita ser transformada em determinação para atender às exigências práticas de toda vida social. Isso significa que as funções sociais não podem mais implicar na única forma de humanidade possível, uma vez que reconhecemos a liberdade dos indivíduos como um dado inquestionável, uma condição humana válida e prévia à sociabilidade. Em outras palavras, reconhecemos sua humanidade para além das funções sociais que eles poderão adquirir com a educação.

Como podemos perceber, o ponto específico da mutação no processo educacional de que tratamos neste artigo diz respeito ao reconhecimento da dimensão da liberdade individual como algo inato aos seres humanos. Assim, a educação se tornou imensamente problemática, posto que ela não deveria agir contra essa liberdade original. Afirmo que ela não deveria, porque o objetivo é estabelecer um padrão de convivência social ao qual os indivíduos não estejam subjugados. Suponho que a educação não deva se alinhar a disposições sociais tirânicas.

Mesmo quando se propõe a fazê-lo, a vida não se torna fácil. De fato, a educação passa a ser percebida cada vez mais como um jogo de forças políticas, cuja lógica revela um processo de dominação e expropriação da liberdade individual original. Essa é uma leitura tipicamente democrática do mecanismo de reprodução de uma sociedade por processos educativos, formais e informais. A educação se torna responsável por retirar os indivíduos de seu estado original de indeterminação em relação às funções sociais e passa a operar nos ajustes sociais, típicos de qualquer convivência humana, a partir de uma base geral de indeterminação e liberdade universais. Isso se deve ao fato de que a sociedade não opera no vácuo: é necessário que alguém produza alimentos, que alguém assegure a saúde dos demais, que haja construtores de habitações, educadores e pessoas capacitadas em diversas habilidades.

Dentro do contexto cultural das sociedades democráticas será cada vez mais comum perceber essa disposição crítica em acusar os processos pedagógicos de terem promovido alguma forma de domínio nos indivíduos. Isso ocorre porque a identidade pessoal, nessas sociedades, se emancipou do processo educativo. Embora o processo que permitiu essa situação possa ser objeto de debate, o relevante para os propósitos deste texto é que ele se consolidou em um estilo de vida democrático. Quando reconhecemos que a liberdade é uma condição humana, entendemos que a educação age sobre ela no sentido de determiná-la. Por isso, os processos educacionais se tornam objetos de tanta atenção e fonte de questionamentos.

De uma perspectiva que valoriza ao máximo a liberdade individual, a educação parecerá cada vez mais um processo de controle do indivíduo. Ser parte de uma determinada cultura e de um grupo moralmente homogêneo, parecerá uma limitação diante do potencial infinito de cada indivíduo para se tornar humano, cada um à sua maneira. Em outras palavras, trata-se da capacidade inexaurível de dar a si mesmo um modo de vida adequado à sua própria especificidade interior.

Perceberemos a contraposição entre a potência indeterminada da individualidade e sua delimitação específica nos contextos sociais em que os indivíduos vivem e são, de uma forma ou de outra, educados. Não se trata aqui de postular uma hipótese ou uma teoria, mas de constatar uma lógica de desenvolvimento de valores cuja dinâmica interna exige um próximo passo já em andamento ou, pelo menos, já delineado nas condições democráticas estabelecidas anteriormente. A educação tornou-se altamente problemática nesse contexto, porque a sociabilidade também se tornou assim.

Detectada essa mutação na forma como entendemos a educação, percebemos seu caráter impositivo ao imprimir sobre a individualidade determinações de origem estranha. Podemos delinear algumas possibilidades para ela. Essas possibilidades dizem respeito à redefinição da educação em uma sociedade democrática e plural. Afinal, ela não pode simplesmente replicar aquela antiga função cultural nessa nova configuração sem cair na falta de sentido ou em uma forma de sonambulismo cultural.

Não se trata apenas de os processos pedagógicos se tornarem foco de debate político por lidarem com a determinação de indivíduos livres. Trata-se do risco de a educação ser identificada como um processo de colonização da liberdade original do indivíduo. Ela corre o risco de ser percebida como uma série de gestos de imposição, uma iniciativa essencialmente tirânica, independentemente dos valores que promova.

A dificuldade reside justamente na maneira como lidar com a indeterminação da humanidade e com a sua liberdade original, sem correr o risco de que o processo educativo seja identificado como agressivo ou repressor. Se a educação contemporânea proporciona a capacidade de desempenhar funções sociais específicas, ela nega a liberdade do indivíduo simplesmente porque toda função implica em uma limitação. Ao transformar um indivíduo em engenheiro, crítico de arte ou lavrador, ela o retira de seu estado original de indeterminação, diminuindo sua potência infinita. Em outras palavras, nesse contexto, a educação parece condenada a ferir a dignidade humana ao forçá-lo na direção da determinação, conduzindo-o para uma vida possível a partir de uma vastidão de possibilidades interiores. Ela precisa lidar com as dificuldades contidas naquele princípio atribuído a Espinosa (1988), segundo o qual toda determinação é uma negação.

A educação crítica

Parece haver algumas possibilidades para que a educação consiga escapar dessa armadilha criada pela expansão da liberdade individual. Em um primeiro momento, uma sociedade democrática tende a transferir o foco de seu sistema educacional do conteúdo de um sistema particular de valores para uma leitura crítica do próprio processo histórico. Ela se ocupa de tornar explícito o que acredita e ser o desvelamento da verdade nesse processo: um jogo de forças políticas em que se buscou, naquele passado hierárquico, a imposição de funções sociais sobre o indivíduo.

Por meio desse desvelamento do processo de imposição de papéis sociais particulares a indivíduos originalmente desprovidos deles, a educação deixa de ser cultural e se torna crítica. Ela deixa de agir com base na eficácia pedagógica e se ocupa em revelar a perversidade contida naquele mecanismo tradicional. Sua função é desmascarar algo que, no seu entendimento, ficou oculto sob formas autoritárias de organização social: a maneira pela qual a potencialidade infinita original dos indivíduos foi deliberadamente moldada por interesses estranhos, usurpando sua autonomia plena e suas imensas possibilidades.

Com essa mudança de perspectiva, se capacitam indivíduos para resistir aos processos educacionais autoritários. Um indivíduo dotado dessa visão crítica de educação deverá ser capaz de reconhecer o que foi introjetado pela sociedade em sua própria identidade, resistindo a isso e se autodefinindo, de acordo com suas próprias necessidades interiores. Em outras palavras, ele deverá ser capaz de perceber-se como um ser humano dotado da capacidade de observar vários estilos de vida, mas que foi constrangido pela educação cultural a tornar-se, sem consentimento, um tipo específico de indivíduo.

Essa visão crítica da educação mostra o que ela tem sido em um ambiente em que antes se visava adaptar indivíduos a determinadas funções sociais. Ela corresponde a um processo de eliminação dos resquícios daquela educação tradicional que recebemos das sociedades e que entraram em decadência com a intensificação da vida democrática.

A leitura da existência de uma imposição social no processo de definição da identidade pessoal dentro das sociedades hierarquizadas conduz a uma nova etapa: à necessidade de equacionar o jogo de forças políticas que agora há no interior da educação. Esse equacionamento consiste, por exemplo, nos processos de compensação de distorções político-históricas, promovidas pela educação. Esse jogo corresponde à necessidade de correção do modo como se tratou a diferença entre os indivíduos no interior das sociedades culturais em função do antigo compromisso da educação com um conjunto hegemônico de valores e com o predomínio de uma cultura dominante.

As propostas de ações corretivas são, assim, distorções atribuídas ao modo como as sociedades culturais impuseram papéis definidos ou excluíram indivíduos não adaptados a seus modelos hegemônicos. Se a educação hierárquica forneceu a alguns indivíduos identidades não plenamente adequadas à sua especificidade, então, a própria sociedade pode tentar reordenar o jogo de forças políticas, promovendo elementos contrários àqueles que se tornaram injustamente predominantes. Trata-se de promover novos desequilíbrios que venham a compensar os antigos.

No seu conjunto, essas iniciativas constituem um momento crítico de revisão dos efeitos da eficácia pedagógica e uma tentativa retroativa de se fazer justiça ao reconhecer as relações de força implicadas na estruturação da sociedade cultural (Foucault, 1976). O espírito que predomina nessa etapa é o das hierarquias cedendo lugar à plena democracia. Para isso, o indivíduo deve reconhecer o caráter compulsório de sua socialização e tentar promover a correção daquilo que ele entende como distorções promovidas nesse processo.

De certa forma, essa visão crítica reconhece o aspecto político da educação, na medida em que entende que se trata de um processo que parte de uma zona neutra ou indeterminada, terminando com uma identidade bem consolidada, uma definição da qual o maior interessado não participou de maneira devida. A politização da educação se mostra necessária quando se observa que a definição da identidade é objeto de um conjunto de forças sociais que buscam moldar as pessoas segundo funções preexistentes. Ter uma identidade e ser educado em qualquer sentido particular é ser também objeto de um jogo político que extrapolou o controle de cada indivíduo em situações fatuais.

O reconhecimento desse processo político implicado pela educação afirma, implicitamente, que todos nós fomos vítimas de forças superiores extremamente poderosas. A educação crítica não se exime de certa dose de maquiavelismo social ao reconhecer a fragilidade humana diante dos enormes poderes onipresentes dos mecanismos educacionais. Ela lança uma suspeita generalizada sobre a força gigantesca e sofisticada desses processos de modo a eliminar a inocência dos indivíduos sobre as ações educativas que se operam sobre eles. Isso também induz cada indivíduo a tornar-se consciente e vigilante acerca dos mecanismos subjacentes que conduzem a educação em cada situação específica, em cada ação, em cada conteúdo, em cada valor, mesmo fora dos ambientes estritamente educativos como as escolas.

Uma ilustração dessa situação é perceber que cada sala de aula se tornou, no ambiente contemporâneo, uma arena agônica numa batalha pela definição de um sentido para a vida humana. Afinal, cada gesto realizado dentro dela aciona um conjunto de valores que retira o indivíduo de seu estado original de indeterminação, induzindo-oa certo modo de sacrifício de sua liberdade originária. A educação tornou-se intensamente agônica porque sabemos que cada ato cotidiano está eivado de valores sociais que tentam assumir o poder sobre a terra livre da individualidade indeterminada.

Problemas e desafios

O desvelamento do mecanismo político presente em todo tipo de educação não resolve o problema educacional propriamente dito. Ele apenas torna explícito o passado tirânico responsável pela constituição das identidades. As compensações históricas podem auxiliar a reverter parte das consequências indesejadas dos processos já realizados, realocando o jogo de forças para recolocar o indivíduo em condições de justiça relativa contra o pano de fundo de antigas distorções.

Contudo, essas iniciativas não resolvem a difícil questão de promover um processo educacional capaz de gerar identidades específicas a partir de uma condição universal de liberdade sem ferir a dignidade original. Passado o momento de promover correções históricas é necessário caminhar na direção de encontrar uma educação que não contenha mais as imperfeições do dispositivo tradicionale que não mais as solicite como paliativas.

Ainda nos resta o problema da viabilidade (ou não) de uma educação efetivamente respeitosa da liberdade que julgamos ter no ambiente contemporâneo. É possível compreender que a educação inevitavelmente atentará contra as liberdades individuais, independentemente dos métodos pedagógicos adotados. Nesse caso, teremos que lidar constantemente com mecanismos de correção dos desequilíbrios produzidos pela educação. Essa realidade exigiria reconhecer que a educação sempre limitará a liberdade e poderá favorecer a opressão, o que, na melhor das hipóteses, enfraquece seu valor e justifica uma rejeição por parte de uma maioria.

Talvez esse sentimento possa ser identificado hoje pela aversão dos mais jovens à universidade, sentimento que muitas vezes é mitigado pela compreensão de que a educação formal é fundamental para alcançar melhores oportunidades salariais. Nesse caso, percebe-se como a educação universitária passa a ser gradualmente vista como um “mal necessário”: algo somente atrativo em função das consequências financeiras futuras. Isso certamente testemunha contra a capacidade da educação em se adaptar a um ambiente intensamente democrático e a redefine como um verdadeiro mecanismo de chantagem social.

Em função dos valores culturais que estão em jogo, uma educação efetivamente protetora da liberdade terá de deslocar o foco de sua atenção centrada nas funções sociais. Ela deve mudar sua perspectiva para o futuro e não mais para o passado da sociedade: o que importa é como nos tornaremos aquilo que desejamos ser. Isto é, uma educação ajustada a um regime democrático deverá se ocupar em preparar os indivíduos para aceitarem que o processo de constituição das identidades está em aberto – e não para assumirem determinadas funções sociais.

Isso implica substituir os antigos conteúdos culturais da educação pela capacitação dos indivíduos para a igualdade e para o exercício pleno da liberdade. Trata-se de difundir a consciência de que o homem é essencialmente um ser dotado de liberdade e que cabe a ele escolher seu próprio modo de vida. Dessa forma, substitui-se o processo social de introjeção de um conjunto de valores específicos e necessariamente culturais pela noção de respeito à liberdade. Aqui também deve ser incluída a capacitação para a plena autonomia, isto é, para a capacidade do indivíduo construir efetivamente um modo de vida adequado às suas próprias necessidades internas.

Uma adequação da educação a esse contexto democrático requer, portanto, a substituição de uma perspectiva centrada no processo de ajuste dos indivíduos às necessidades sociais. O novo ponto de vista, que se impõe pela lógica da ampliação da liberdade individual, não por escolhas teóricas, exige que a educação passe a se centrar naquelas capacidades que preparam o indivíduo para o respeito à indeterminação de todos os demais. Não se trata daquilo que eu, o autor, gostaria que acontecesse, mas do que se revela necessário em função do conjunto de valores hegemônicos na configuração cultural atual.

O que parece se fazer impositivo é que a educação deva abandonar a questão das funções sociais e passe a considerar as necessidades individuais como sua principal preocupação. A noção de autenticidade (Taylor, 2017) torna-se fundamental nesse ponto, porque é nela que deságua o processo de educação multicultural das sociedades democráticas.

A educação deve promover a realização plena das potencialidades que cada um de nós já possui. Mas isso não equivale a que cada um permaneça no plano das infinitas possibilidades, dotado de uma liberdade infinita. Trata-se de que cada um consiga ser tal como deveria ser. E esse dever-se não é algo que se origina fora do indivíduo, como alguma forma sutil de sugestão ou de intromissão social.

A educação deveria ser a busca da realização plena da especificidade de cada um de nós. Um processo pelo qual nos tornaríamos autênticos, quando somos capazes de ser quem deveríamos. A autenticidade é a capacidade de nos ajustarmos a nossos próprios projetos, algo que realizamos em função do que julgamos (livremente) ser. Trata-se essencialmente de reverter a atenção para a realização do indivíduo em termos individuais ou, se quisermos, de promover o exercício da liberdade individual como uma finalidade educativa em si mesma.

Por isso, a autenticidade é um valor formal, destituído de um conteúdo específico. Ela é formal no sentido de não estabelecer qual é exatamente o papel social que cabe a cada indivíduo, fomentando a possibilidade de que o indivíduo possa escolher o seu próprio estilo de vida, segundo a sua própria especificidade, que é sempre uma questão privada. Ela afirma indiretamente que o indivíduo é um ser que escolhe o que deve ser e não um ser que incorpora valores sociais preexistentes de acordo com necessidades estranhas a si.

Essa sociedade livre, capaz de gerar a autenticidade, deve dar forma a uma educação que torne explícito o jogo de dominação existente no processo de educação cultural, sem resvalarpara esse tipo de jogo. Por isso, tal processo educacional, deverá evitar introjetar no indivíduo um repertório de padrões de conduta desejáveis, com exceção dos valores formais da tolerância e da empatia. Afinal, esses parecem ser os padrões sociais capazes de garantir ao indivíduo o máximo gozo de sua liberdade na medida em que protege a sua vontade livre e a do outro.

Em uma sociedade livre, ao reconhecer a prevalência das relações de poder e de colonização do indivíduo pelas instâncias da vida social, a educação busca se tornar neutra. Esse é o desafio fundamental da educação contemporânea: proporcionar uma educação desprovida de viés político. A politização da educação cria a necessidade de encontrar uma maneira não dominadora de educar, que não induza a opção por identidades socialmente valorizadas em qualquer sentido.

Atento para o fato de que isso não anula aquela disposição crítica de desvelamento dos aspectos políticos contidos na educação é necessário dar um passo adiante no sentido de que a promoção da autenticidade seja imprescindível. Trata-se de observar que as correções de um sistema ineficaz precisam ceder gradualmente o seu lugar a um sistema mais ajustado de valores próprios de uma vida democrática. Esse novo patamar de educação necessita superar o aspecto agonístico da educação na direção de processos efetivamente focados na promoção da autenticidade.

Esses processos necessitam ser neutros do ponto de vista dos conteúdos, porque a autenticidade é um valor formal. Ela se apresenta como a possibilidade de cada um estipular para si uma função social que lhe permita a realização plena para a liberdade. Se o indivíduo precisa assumir a autoria plena desse processo, cabe à educação fornecer-lhe as competências necessárias. A capacidade para ser livre implica na possibilidade de ser qualquer tipo de ser humano. Logo, não cabe à educação fornecer somente conteúdos específicos aos indivíduos, mas as condições sociais necessárias à manutenção e à expansão da sua liberdade. Esse deve ser o seu principal compromisso político formal, por definição. Aqui, a neutralidade não significa indefinição, mas um conjunto de ações voltadas para esses aspectos formais da educação.

Conclusão

Só o futuro poderá dizer se a educação será capaz de realizar o propósito de moldar uma sociedade em pleno equilíbrio de poder de tal forma que não envolva alguma espécie de colonização social dos indivíduos e a agressão de suas respectivas liberdades. Caso obtenha sucesso, uma geração posterior deverá ser capaz de dar a si uma nova forma social que não seja derivada de uma geração anterior.

Do mesmo modo, cada indivíduo deve estar habilitado a dar à sua vida uma feição própria, independente daquela expressa pelos demais à sua volta. Porém, independentemente dessa capacidade de se realizar em um futuro histórico, é isso que uma pedagogia comprometida com a liberdade supõe ser a sua função: dar ao indivíduo as condições para realizar escolhas compatíveis com suas disposições interiores.

Embora isso pareça possível, não devemos nos esquecer das forças práticas que interferem continuamente nesse processo. Os processos produtivos requerem seres humanos cada vez mais qualificados para o desempenho de funções específicas. A razão instrumental e o sistema de produção de bens de consumo são fatores essenciais para a definição das identidades. Esse conjunto de forças demanda papéis sociais bem definidos e, consequentemente, age em uma direção política específica, necessitando de pessoas produtivas, de indivíduos capazes de manter o funcionamento do sistema produtivo e que exerçam força política considerável sobre os processos educacionais, a despeito da definição particular do termo em cada caso.

Isso não significa que esse mecanismo apareça diretamente como uma força contrária aos interesses da consolidação de identidades pessoais autônomas. Pelo contrário, sua sutileza consiste em que ele aparece aos indivíduos como uma identidade altamente recomendável e promissora, como uma forma de vida inteiramente legítima e válida. No entanto, ele se encontra claramente no polo oposto ao da liberdade e deverá entrar em choque com ela. Cada vez mais, um ajuste no sistema produtivo, uma adequação nos protocolos de trabalho das sociedades democráticas tomará a feição da violência e da agressão à liberdade. Isso ocorre simplesmente porque suas necessidades são incompatíveis com as da autenticidade.

Percebemos que uma educação adequada ao ambiente democrático contemporâneo exige ações equilibradas, evitando moldar os indivíduos para desempenharem funções sociais específicas. Mas qual seria o equilíbrio ideal? Formalmente, sabemos que é aquele que permite a cada pessoa definir a sua identidade por meio da ponderação autônoma das variáveis envolvidas na sociedade em que vive. Mas como transitar de uma potência indeterminada para uma identidade particular? Como preparar o indivíduo para que ele possa produzir sua própria maneira de ser dentro de uma sociedade que possui necessidades específicas e que depende de certas habilidades humanas para existir? Como resistir aos apelos do sistema produtivo? Essas são perguntas cujas respostas se encontram no futuro de nossas ações e não apenas na formulação de hipóteses.

Referências

ANCHIETA, J. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933.

BOGGIANI, G. Os caduveos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.

ESPINOSA. Correspondência. Madrid: Alianza, 1988.

FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976.

HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la filosofía de la história universal. Madrid: Alianza, 1989 (obra original publicada em 1830).

SACHS, O. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

SAHAGÚN, B. Florentine Codex: general history of the things of new Spain. Part 1. New Mexico: The School of American Research; The University of Utah, 1982.

TAYLOR, Ch. A ética da autenticidade. São Paulo: Realizações, 2017.

Publicado em 13 de agosto de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

SILVEIRA, Ronie Alexsandro Teles da. Como educar seres livres? Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 29, 13 de agosto de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/29/como-educar-seres-livres

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