Contos e microcontos cientificamente proibidos

Esteban Lopez Moreno

Professor associado da Fundação Cecierj (1970 - 2023)

Dizem por aí que os contos e microcontos científicos que seguem são proibidos. Seriam talvez demasiadamente cruéis ou irônicos, talvez imprecisos ou insensatos; quem vai saber?! Melhor descobrir por si próprio.

Água e sal

Eram, pois, dois frascos com substâncias de propriedades distintas. Ele, um ácido de Arrhenius forte, com grau de pureza P.A. – com mais de 99,9% de pureza – e um vigoroso próton afoito pela dissociação completa. Ela, uma base de Arrhenius, também cevada, de ótima procedência, com sua hidroxila irrequieta. Tal qual a tragédia romântica Romeu e Julieta, todos sabiam que não deveriam se juntar ao mesmo béquer, era por todas as perspectivas um enlace letal. Menos para um incauto químico, que resolve uni-los em um béquer… pronto, eis que suas existências se foram, em seu lugar apenas água e sal…

Ao menos não foi um final insosso.

Comentário: Uma das reações mais conhecidas na Química dá-se entre ácidos e bases fortes (Moreno; Martins; Rajagopal, 2015), na qual as identidades dos reagentes se anulam à medida que produzem novas, no caso, sal e água. Como entes tão fortes e opostos podem produzir outros tão simples e inócuos? Eis um dos mistérios da Química…

+++

O sábio poroso

Era um gás inerte, composto de nitrogênio, vivia se avolumando aqui e acolá pela atmosfera do planeta. Não obstante, certo dia decidiu que queria reagir com alguém e, por sorte ou destino, encontrou alguns hidrogênios passeando em um tubo aquecido; soube depois que era um reator. Mesmo na companhia de outros gases, o nitrogênio e os hidrogênios desejaram se unir, viam a possibilidade de se transformar em uma vistosa molécula de amônia e, quiçá, depois, ureia, e sair por aí a fertilizar o mundo. Então, entraram em acordo e, já estando em condições adequadas de temperatura e pressão, proclamaram:

– Reajamo-nos!

Mas nada ocorreu. Acirraram-se ainda mais as condições – termodinâmicas – para que não houvesse dúvida, e repetiram o mantra em uníssono:

– Reajamo-nos!

Não importava a quão alta temperatura o submetessem, o quão forte fosse a pressão, nada ou quase nada ocorria entre eles. Procuraram então saber de um velho catalisador, famoso conselheiro, o que ele sabia a respeito do que é reagir. O catalisador escutou-os, olhou-os firme em seus pequenos núcleos atômicos e, apontando para uma tabela periódica, lhes disse:

– Meus pequenos irmãos atômicos, todos somos iguais, apenas os números atômicos nos diferenciam, mas temos as mesmas subpartículas em nossas veias. No entanto, conheço algo que parece ainda não saberem: para reagir não basta cumprir os pré-requisitos da termodinâmica, é preciso considerar a cinética. A termodinâmica nos dá a sua bênção, e isso vocês já têm, mas a velocidade do encontro depende de circunstâncias que podem demandar milênios de espera.

E, diante da inércia dos gases, depois de um breve silêncio, pediu para se aproximarem de seu corpo niquelado, que os adsorveu. E, assim, reagiram e foram viver felizes em alguma horta distante. Já o catalisador, esse sábio poroso, nada se alterou.

Fim.

Comentário: Essa prosa descreve a famosa reação de produção de amônia, descoberta por Fritz Haber ao fim do século XIX, na qual nitrogênio atmosférico é posto para reagir com hidrogênio produzido a partir de outros processos, como hidrocraqueamento e reação de shift. Sua representação é:  N2 + H2 <--> NH3.

Essa reação praticamente não ocorre na ausência de um catalisador, que é responsável pela diminuição da energia de ativação. Ou seja, um catalisador age na cinética, desde que a termodinâmica dê a sua “bênção”. O Dr. Haber sabia na época que o níquel catalisava a decomposição da amônia e, como parte de um dos princípios da catálise, aplicou o mesmo metal para funcionar no sentido inverso da reação. O desenvolvimento dessa descoberta permitiu a produção intensiva de fertilizantes, numa época em que a Alemanha viu-se destituída de seus principais insumos (Moreno, 2022).

+++

(In)Sensibilidade às condições iniciais

Os genes do chimpanzé possuem 98% de semelhança com os do ser humano. Apenas três prótons diferenciam o ouro do chumbo. Um microimpulso elétrico no músculo permite propagar o poderoso soco de Mike Tyson. Basta pressionar um botão para devastar todo o planeta Terra em uma guerra nuclear. Microtraços de lantanídeos fazem das tulipas da Holanda as mais belas do mundo. A falta ou o excesso de um elétron altera sumamente as propriedades de um elemento químico. A queda de uma maçã foi suficiente para que Isaac Newton revolucionasse todo o entendimento humano. Um dedo de água em um copo tem mais moléculas que a quantidade total de estrelas do universo. Apenas um assassinato foi o estopim de mais 20 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial. Usamos um único par de arreios para controlar um vigoroso cavalo. A batida da asa de uma borboleta em algum continente recôndito reverbera em infindáveis clichês hollywoodianos e livros de autoajuda. Uma única molécula, o DNA, armazena toda a informação dos organismos vivos. Bastou um Gandhi para que a Índia se livrasse do jugo inglês. Em um segundo a luz caminha quase 300 mil quilômetros. A queda de um asteroide dizimou os dinossauros da face da Terra e finalizou a era mesozoica, permitindo a ascensão de nós, mamíferos. Um grama de matéria pode ser convertido em 90.000.000.000.000 joules de energia.

Comentário: Esse pot-pourri iria terminar pinçando alguns exemplos sobre a importância do poder pessoal da escolha. Entretanto, a verdade é que cada ação ou propriedade, para que tenha efeito, demanda uma série de acasos e infindáveis acontecimentos anteriores e paralelos. Existem várias, por vezes infinitas, direções para as quais um acontecimento pode evoluir antes da emergência de um evento dominante. Chamamo-nos de processos estocásticos.

+++

Sulfuretos

Sua existência regurgitava-se nas entranhas recheadas e sinuosas do intestino. Permanecia, no entanto, preso, pulsando e pulsando. Bastava um mol de substância putrefata para produzir 22,4 litros de gases; sua contenção seria cada vez mais insuportável. Destarte, teve que se aproximar do reto final e, com um movimento suave e silencioso, fez sua estreia no mundo. Teria sido um acontecimento inocente e despercebido, não foram os sulfuretos pútridos que o acompanhavam.

Enxofre do inferno!

Comentário: Os compostos sulfurosos presentes nos flatos – principalmente gás sulfídrico (o mesmo cheiro do ovo podre) – são os principais responsáveis pelos maus odores, mas não são os únicos. A maioria dos gases que produzimos, contudo, não tem odor. A Química é prodigiosa em reconhecer e produzir maus odores; um dos piores é o do óxido de cacodil (do grego: kakos = fedor), descrito como “aterrorizante cheiro do diabo”! Hoje em dia, há pesquisas intensas sobre a produção de maus odores, notadamente para fins militares em artefatos de persuasão “não letais”.

+++

Eternidade

Era apenas um viajante errante pelo universo, pouco importa se era luz na forma de radiação ou fóton. Apesar de éons de existência no relógio humano, o tempo não lhe passara, nem mesmo uma fração de fração de segundo. Tudo era e é para ele parte de um instante, o mesmo instante desde sua criação que determinou toda a sua existência. Por desventura, coube-lhe colidir com as lentes de um radiotelescópio, colapsando-o e destituindo-o de toda sua infinitude. Pelo olhar atento da lente de um observador, entretanto, renasceu como uma ideia e ganhou a eternidade.

Comentário: Segundo a Teoria da Relatividade, quanto mais rápida for a velocidade de um objeto, maior será a dilatação do espaço-tempo entre um e outro evento, com a variação de tempo tendendo a zero à medida que se aproxima da velocidade da luz (i.e.: 299.792.458 m/s). Isso faz com que as partículas que viajam à velocidade da luz não sejam afetadas pela passagem do tempo. A luz é, portanto, intrinsecamente atemporal; o ser humano demarca a sua existência a partir de seu próprio referencial.

+++

Especismo imaginário

Era um gato feliz. Vivia em paz no reino do imaginário, ronronando e se espreguiçando aqui e ali com seu olhar vivaz e traquino. Já fora tratado como um Deus no Egito antigo, chamavam-no de Bastet, uma das divindades que detinham o título de Olho de Rá. Na cultura celta, era uma das encarnações do filho da deusa Cerridwen, que ainda tinha o poder de se transformar no felpudo mamífero. Na mitologia nórdica, foram adorados por representar qualidades como fertilidade e ferocidade. Tornaram-se ainda admirados no alvorecer do budismo, pelos hebreus – pois teriam ajudado a Noé a eliminar o excesso da população de ratos em sua arca –, e pelo profeta Moisés, que fora salvo de uma serpente que o atacava por um gato. Tamanho prestígio não foi suficiente para impedir que fosse colocado por Erwin Schrödinger, em 1935, dentro de uma caixa escura, em seu experimento mental, e mantido desde então em um estado ambíguo de semivida ou semimorte.

Por que – diabos! – esse impiedoso físico austríaco não pusera outro animal, como um cão, a quem os gatos tanto temiam, ou uma horripilante barata, terror das mulheres? Não e não… quis imputar o sofrimento de uma semiexistência eterna a um dos mais fofos e amigáveis animais do planeta, sob a justificativa de que poderia melhor compreender a incerteza das subpartículas e de seu novo modelo atômico. Parece que lhe faltou a criatividade de usar analogias como a do delicioso pudim de passas de Rutherford ou o modelo planetário e plano de Bohr. Até mesmo as bolinhas da Dalton soariam mais divertidas. Gatos adoram bolinhas…

Não importa; desde então, felinos do mundo inteiro jazem em mudo ronronar no interior das infindáveis caixas imaginárias do modelo quântico. Semiafortunados os estudantes do Ensino Médio do Brasil, que foram desprovidos da oportunidade de (a)pr(e)endê-lo!

Comentário: A Mecânica Quântica, cuja famosa analogia do gato de Schrödinger é gracejada neste microconto, não consta da nova Base Curricular Comum do Brasil, tampouco se faz presente na maioria dos cursos universitários. Quando coordenei a reforma curricular de Química do Estado do Rio de Janeiro, fiz questão de colocar alguns de seus fundamentos mais elementares. Não obstante, permanece a visão de que, para o aluno de Química do Ensino Médio, basta-lhe aprender até o modelo atômico de Bohr; uma visão de mais de um século de existência e, mesmo naquela época, tornou-se rapidamente obsoleta. Hoje é quase uma curiosidade cientifica. Parte importante do currículo de Ciências do Ensino Médio brasileiro caberia muito bem em uma grade curricular de História do século XIX e começo do XX.

+++

Ah, o amor…

O amor é um exercício de Química! Interaja, busque o que se faz necessário para analisar ou reagir, prepare as condições, seja paciente, observe e cuide. Esteja preparado, pois haverá reações paralelas, produtos indesejados, situações explosivas, erros não planejados; entretanto, nada deve fazer com que abandone o seu experimento. Ame como quer que seja, aceite seus desequilíbrios, reconheça os seus, produza também afeto, compaixão e respeito. Confie em sua razão, mas admire sempre e com ternura. Se falhar, tente de novo, pois o amor se transforma o tempo todo e tudo que se transforma é porque ama.

Comentário: <3

Referências

ELIADE, M. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1989.

MORENO, E. L. Fritz Haber e as duas faces do ser e do saber. Revista Scientiarum Historia, v. 1, p. e352, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.51919/revista_sh.v1i0.352.

MORENO, E. L.; MARTINS, E.; RAJAGOPAL, K. Basicidade e acidez, da Pré-História aos dias atuais. Revista Virtual de Química, v. 7(3), p. 893-902, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.5935/1984-6835.20150046.

Publicado em 30 de janeiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

MORENO, Esteban Lopez. Contos e microcontos cientificamente proibidos. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 3, 30 de janeiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/3/contos-e-microcontos-cientificamente-proibidos

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.