Intersecções histórico-literárias: Literatura como ferramenta de ensino de História
Thalles Campos Almeida
Mestrando em Ensino (Univates)
Foi buscado ao longo deste trabalho traçar aproximações entre a História e a Literatura, identificando em que momentos e de que modo suas trajetórias se cruzam em três dimensões constitutivas do corpus de análise: a primeira delas acerca das especulações da função da narrativa na História. Em seguida, de que maneira a História exerce ou deixa de exercer sua influência e, por fim, as consequências advindas da integração das referidas disciplinas.
O presente trabalho nasceu da ideia concreta de conhecer e de dar a conhecer o pensamento de grandes historiadores, escritores e críticos literários face à realidade do ensino pedagógico da disciplina de História, registada a partir da observação e da vivência destacada por essas personalidades. O tema levantado decorre da necessidade de se explorar novas formas de dinamizar as aulas e expandir o imaginário dos alunos, fornecendo-lhes mais ferramentas de compreensão dos períodos históricos. Ainda, surge como motivação a necessidade de incentivar novos leitores que podem vir a ser historiadores e pesquisadores no futuro.
O trabalho ainda propõe que todo indivíduo precisa deter certo domínio do conhecimento histórico pela correta leitura, para uma boa formação. Diante disso, surge a problemática em questão: “Qual a importância do uso da Literatura no ensino da História para a educação brasileira no século XXI?”. Visando articular a resposta à análise do papel do professor na formação de futuros leitores, a apresentação de aspectos sobre a utilização da Literatura na apresentação do conteúdo e a demonstração da forma como ela contribui para a construção e a preservação da memória dos acontecimentos históricos se apresentam como objetivos a serem alcançados.
Assim, a organização dos capítulos do trabalho se divide em três fases. Primeiramente, foram enfrentadas as questões concernentes aos diferentes modos de confecção da História, relatando o dilema do uso da história-narrativa após o surgimento da história-problema e suas possibilidades de harmonização. Em seguida, emerge o tópico sobre o valor perene da estrutura narrativa, que buscou demonstrar a inesgotabilidade da referida modalidade textual conceituada a partir de observações de historiadores e críticos literários como Walter Benjamin e Paul Veyne. Por fim, abordamos a função pedagógica da Literatura e sua importância para a composição do imaginário dos alunos, partindo da perspectiva de escritores, de modo que a integração das visões ora apresentadas permita a composição de um panorama mais amplo.
Modos de confecção da História
Na historiografia recente, o debate acerca da História narrativa tem suscitado discussões. Muitos historiadores consideram que essa maneira de pensar e elencar os acontecimentos está ultrapassada pelo surgimento da história-problema, juntamente com a Escola dos Annales, que possibilitou a abertura da História para as outras Ciências Sociais, indo além da narrativa. Quanto à confecção da História, nos dizeres de Febvre: “Que nunca se façam colecionadores de fatos, ao acaso, como dantes se faziam pesquisadores de livros no cais. Que nos deem uma História não automática, mas sim problemática” (1989, p. 49).
Contudo, até mesmo os entusiastas da história-problema reconhecem o valor da narrativa, como é o caso de Le Goff que, no prefácio de A História nova, estabelece sua utilidade como meio pedagógico e de divulgação (1990, p. 7). Ainda, levando-se em conta a posição de outro expoente da École des Annales é possível inferir a respeito da abordagem de um dos seus maiores representantes, Braudel, “uma história dos acontecimentos, uma história factual, só pode ser uma história narrativa. História política, história factual, história narrativa são a partir de então expressões quase sinônimas” (Ricoeur, 1994, p. 147).
Por essa perspectiva, a mera exclusão de uma das duas perspectivas seria simplificar a História. Ressalte-se ainda que a história-narrativa não se configura como uma renúncia às explicações da história-problema, mas estabelece uma posição de coexistência. Assim, em sua justificativa para o uso da narrativa, Chartier se socorre das teses de Paul Ricoeur (1994), em Tempo e narrativa para revogar “a falsa antinomia entre conhecimento histórico e configuração narrativa” (Chartier, 1990, p. 83). Em seus dizeres:
Por um lado, onde se pensa identificar um regresso do relato a uma história que o teria desqualificado e abandonado, é necessário reconhecer, com Ricoeur, o inverso, isto é, a plena pertença da história, em todas as suas formas, mesmo as mais estruturais, ao domínio da narrativa (Chartier, 1990, p. 81).
É desse modo, visando harmonizar os conceitos, que o historiador da quarta geração dos Annales, Roger Chartier, propõe a seguinte forma de pensar o problema em “A história cultural”:a história-narrativa não deve ser eliminada do horizonte de possibilidades, mas integrada a ele. Isso porque há uma relação de interdependência entre as duas modalidades. De modo que as explicações carecem do relato assim como o relato necessita da explicação (Chartier, 1990).
O valor perene da estrutura narrativa
A arte de contar histórias surgiu e se desenvolveu ao longo dos séculos para permitir a troca de experiências entre os seres humanos. Antes mesmo da invenção da escrita, os povos repassavam suas experiências por meio de narrativas transmitidas de forma oral. Com o passar do tempo essas descrições foram adquirindo maior estrutura e organização. Para Roland Barthes (2001), crítico literário francês, “a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, começa com a própria história da humanidade” (p. 103-104). Esse processo foi de fundamental importância para a transmissão e acúmulo de conhecimentos.
Na obra Como se escreve a História, sobre o questionamento trazido em seu título, o historiador francês Paul Veyne afirma que “a resposta a essa pergunta não mudou nesses dois mil e duzentos anos que se passaram desde sua descoberta pelos sucessores de Aristóteles: os historiadores narram fatos reais que têm o homem como ator; a história é um romance real” (1998, p. 12). Perante a chave de compreensão ora apresentada, pode-se notar o valor do cultivo da boa escrita e do papel exercido pela Literatura no processo de contagem da História.
A precedência da narrativa na composição das demais modalidades de produção histórica é ainda afirmada por Veyne quando ele relata que “a história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso” (1998, p. 18). Por esse lado, a narrativa se apresenta como o alicerce sobre o qual se fundamentam as outras perspectivas históricas que se desenvolveram posteriormente. Furet arremata dizendo que “a história é filha da narrativa. Não se define por um objeto de estudo, mas por um tipo de discurso. Dizer que estuda o tempo não tem de fato outro sentido que dizer que dispõe todos os objetos que estuda no tempo: fazer história é contar uma história (1986, p. 81).
O crítico literário alemão Walter Benjamin, em seu ensaio intitulado O narrador, conta que o mecanismo narrativo de conservação e difusão de histórias figura entre os responsáveis pelo desenvolvimento da civilização. O autor anuncia as vantagens de estruturação da boa narrativa e reflete sobre o poder que essa exerce nos recônditos da memória. Conforme expôs, de maneira lapidar:
Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia (1987, p. 204).
Dentre as vantagens pedagógicas trazidas pela narrativa, emerge a facilidade de memorização e compreensão decorrentes da sua estrutura simplificada, mas não simplória. É com pesar que Benjamin alega que o homem moderno tem se tornado incapaz de narrar histórias e, de tal fato, advém grave prejuízo para a sociedade. Diante de tal quadro, o autor alerta para os riscos de se desprezar essa modalidade tão cara à civilização. Dentre as suas constatações acerca da atitude da humanidade:
São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se tivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (1987, p. 197-198).
Nesse sentido é possível inferir que devemos resgatar e preservar o uso da narrativa como ferramenta de apoio na disseminação da História. Isso porque a narrativa literária carrega consigo uma lógica de encadeamento dos fatos, interligados por uma cadeia de eventos que se conectam e se sucedem. As personagens, cenários e acontecimentos históricos são representados com riqueza de detalhes e organizados pelo enredo, com seu segmento narrativo articulado cronologicamente.
Dessa maneira, levando-se em conta os apontamentos elencados no presente capítulo, se aplicada ao contexto pedagógico contemporâneo, a compreensão do aluno poderá ser facilitada e sua atenção estimulada pela própria estrutura do conteúdo. Assim, se ainda atualmente há uma tendência em se negligenciar a modalidade, trata-se de um equívoco subestimar a história-narrativa, visto que ela exerce, desde os tempos antigos, uma função primordial no desenvolvimento da Ciência Histórica.
A função pedagógica da Literatura
Percebe-se que nas escolas brasileiras, sejam elas públicas ou privadas, há uma grande dificuldade por parte dos estudantes em compreender adequadamente o conteúdo passado em sala de aula. O INAF (2018) apontou que cerca de 30% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais. Essa situação acarreta dificuldades para adquirir emprego, organizar as finanças pessoais e para a tomada de decisões. Ademais, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, apenas 52% dos brasileiros têm o costume de ler.
Diante desse cenário, incentivar o hábito da leitura e tornar as aulas mais interessantes é, portanto, um desafio que se impõe ao professor. Levando-se em conta tais fatores, o professor deve elaborar estratégias e se utilizar de artifícios variados para prender a atenção dos alunos, estimulando o desenvolvimento de sua capacidade cognitiva.
Uma das formas de obtenção do resultado pretendido é aumentando os meios de aprendizagem, de modo a fornecer uma integração dos conteúdos ao imaginário do discente. Assim, entende-se que “o dever do educador moderno não é o de derrubar florestas, mas o de irrigar desertos” (Lewis, 2017, p. 12). Nesse sentido, a Literatura surge como uma importante ferramenta de ampliação do imaginário. Nos dizeres do escritor inglês G. K. Chesterton:
A grande Literatura é como a vida. Não porque se atenha às folhas na árvore, ao traçado do tapete e às palavras que os homens realmente empregam; ela é como a vida porque carrega em si a energia exuberante da vida, sua força de produção, seu senso de esperança e memória, sua consciência de uma vitalidade quase imortal. A grande Literatura, em resumo, é como a vida porque também é viva (2012, p. 11.408, tradução minha).
Unindo as constatações que os autores ingleses supramencionados nos apresentam é possível notar o potencial da Literatura na educação e vislumbrar a utilidade de sua aplicação no ensino da disciplina de História. Perante essas fontes literárias de conhecimento, ao observar as perspectivas informadas nos documentos, nota-se que é possível e desejável fazer a interseção entre as duas áreas do conhecimento. Conforme revela Bakhtin, ainda sobre a utilidade da Literatura:
A literatura de ficção contemporânea revela o plurilinguismo e o dialogismo, as diferentes vozes em interlocução no texto, além da voz do narrador. Sendo assim, esse tipo de expressão é capaz de constituir algum conhecimento do mundo e alargar a visão do leitor, isso ocorre por meio da transfiguração da realidade (Bakhtin, 2002, p. 67).
Portanto, pode-se inferir que há um espaço para melhor construir a composição imaginativa do estudante no intuito de fixar o contexto histórico estudado de maneira mais efetiva, além de estabelecer um maior dinamismo na produção e divulgação do conteúdo.
Nesse sentido, mostra-se um grande ganho para a escrita historiográfica a possibilidade de crescimento da consciência, no historiador, de que o seu próprio trabalho de elaboração de um texto pode ser semelhante ao do literato. Há muito para a História aprender da Literatura, mesmo dos seus gêneros mais audaciosos no que se refere à possibilidade de criação literária (Barros, 2010, p. 24).
Dessa maneira, resta evidenciada a utilidade e a possibilidade de se abordar questões relacionadas à docência, recorrendo ao uso responsável da Literatura na educação contemporânea, em específico, à disciplina de História, em sua tentativa de realizar uma formação integral do aluno.
Metodologia
Este estudo apresenta como base teórica e metodológica uma pesquisa bibliográfica pautada, sobretudo, pela visão dos próprios historiadores e pela crítica literária. Com base nesse referencial teórico, adotou-se uma abordagem interdisciplinar, privilegiando a análise qualitativa de cunho descritivo. Por pesquisa bibliográfica compreende-se, conforme explica Silva (2003), uma pesquisa inicial de um dado problema a partir da bibliografia existente por meio do aprofundamento da pesquisa.
A metodologia se realizou ainda por meio do cruzamento de informações oriundas de pedagogos, escritores e historiadores que contribuíram para a análise e a problematização das informações inseridas na pesquisa. Nessa ocasião, pretendeu-se observar a experiência da força intelectual da Literatura, assim como a sua influência no momento do desenvolvimento escolar do aluno na disciplina de História, em meio à incidência do conteúdo curricular. Em suma, o trabalho se deu por meio de fontes capazes de fornecer informações relevantes, a fim de encadear os elementos da perspectiva ora apresentada.
Considerações finais
Neste artigo, pretendeu-se sinalizar a importância do uso de narrativas ou até mesmo de contos literários para o povoamento do imaginário na análise de aspectos históricos em sala de aula. Ao abordar o tema sob o ponto de vista de grandes referências das diversas áreas do conhecimento, buscou-se salientar a função literária, assinalando o valor da literatura para os dias atuais.
Desse modo, ao lidar com a estrutura narrativa, até mesmo se utilizando de contos literários, é possível perceber a utilidade e relevância da modalidade, não só pela sua facilidade de apreensão, mas também pela contextualização dos contos que nos permitem perceber, até mesmo na ficção, elementos auxiliares no desenvolvimento da imaginação de cenários, modos de vida e consequente fixação dos acontecimentos históricos.
Foi possível depreender que a Literatura, sem dúvidas, tem seu valor no ensino da disciplina de História, desde que compreendida como parte de um processo maior. Assim, nem sempre a presença do componente narrativo será prejudicial, visto que os próprios historiadores dos Annales sabiam ser objeto inevitável de atenção, de análise e de crítica. Ressalte-se, entretanto, que não se trata de expulsar o componente da história-problema da esfera pedagógica, mas de realocar a narrativa e restabelecê-la em suas devidas proporções, evitando sua exclusão e servindo de auxílio aos docentes.
A Literatura, portanto, pode ser uma aliada da História, de modo que é possível haver uma entrega de conteúdo mais eficaz, adaptando as obras ao contexto que se inserem desde que a História não perca a sua autonomia, ou seja, preservando seu rigor metodológico sem apelar para narrativas forçadas. Isso porque a Literatura, como ferramenta pedagógica, ganha pelo impacto exercido sobre a memória e a imaginação dos alunos, mas sofre com a perda de profundidade. Assim, a força da Literatura deve ser devidamente equilibrada com a história-problema.
Em conclusão, pode-se dizer que foram muitas as tentativas e variados os motivos invocados pelos escritores para estabelecerem as fronteiras, nem sempre claras, entre o ofício literário e o histórico. No entanto, é fato que a história-narrativa perdura e não pode ser excluída do horizonte pedagógico.
Referências
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BARROS, José D’Assunção. História e Literatura – novas relações para os novos tempos. Revista Contemporâneos, nº 6, maio/out. 2010. Disponível em: https://www.revistacontemporaneos.com.br/n6/dossie2_historia.pdf Acesso em: 11 nov. 2021.
BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. v. I, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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CHESTERTON, G. K. The complete works of G. K. Chesterton. 3ª ed. Delphi Classics, 2012. E-book.
EDUCAÇÃO E LEITURA no Brasil. Observatório do Terceiro Setor, 2021. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/podcast/educacao-e-leitura-no-brasil/. Acesso em: 11 dez. 2021.
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Presença, 1989.
FURET, François. A oficina da história. Trad. Adriano Duarte Rodrigues. Lisboa: Gradiva, 1986.
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LE GOFF, Jacques. A História nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
LEWIS, C. S. A abolição do homem. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa I. Campinas: Papirus, 1994.
SILVA, M. A. F. Métodos e técnicas de pesquisa. Curitiba: Ibpex, 2003.
VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Foucault revoluciona a História. Brasília: Ed. UnB, 1998.
Publicado em 30 de janeiro de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
ALMEIDA, Thalles Campos. Intersecções histórico-literárias: literatura como ferramenta de ensino de História. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 3, 30 de janeiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/3/interseccoes-historico-literarias-literatura-como-ferramenta-de-ensino-de-historia
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