A gamificação como estratégia de ancoragem de conceitos científicos nos anos iniciais da Educação Básica

Bianca de Lima Maia

Mestranda em Ensino de Ciências e Saúde (Unigranrio), professora da rede municipal de Duque de Caxias/RJ

Luciano Luz Gonzaga

Doutor em Educação, Gestão e Difusão em Biociências

Uma das finalidades de ensinar Ciências nos anos iniciais da Educação Básica é potencializar a curiosidade inata das crianças sobre o mundo ao seu redor e desenvolver o pensamento crítico, fazendo-as despertar para a criatividade na resolução de problemas (Viecheneski; Carletto, 2013; Martins; Nunes, 2022). Nesse sentido, as metodologias ativas parecem ser uma alternativa que contribui para o intento.

De acordo com Mota e Rosa (2018), metodologias ativas são aquelas que colocam o estudante no centro do processo de aprendizagem, indo além do simples acúmulo passivo de informações. Moran (2015, p. 28) acrescenta que “outra característica comum à maioria das metodologias ativas é a utilização de tecnologias digitais, comumente associadas a aulas expositivas, projetos, práticas investigativas, dinâmicas, jogos e debates em uma perspectiva prática e operacional do ensino”.

Quando o estudante é colocado no centro do processo de aprendizagem, ele tem mais oportunidades de aplicar e revisar os conhecimentos adquiridos, favorecendo a maior retenção e assimilação desses conhecimentos e contextualizando os conhecimentos prévios. De acordo com Demari (2022, p. 9),

nesse contexto de transformação, a aplicação das metodologias ativas de aprendizagem se apresenta como uma proposta inovadora para o ensino – de maneira geral – e para o ensino de Ciências – de forma específica, por ter como principal característica o aluno como protagonista da aprendizagem.

Dentre as diversas metodologias ativas disponíveis na literatura, a gamificação foi a escolhida para a execução deste relato de experiência. É importante esclarecer que a gamificação não “é a utilização de jogos, mas sim a utilização de elementos de jogos na construção da aula” (Demari, 2022, p. 9); consiste em aplicar elementos e mecânicas de jogos em contextos não lúdicos com o objetivo de engajar e motivar as pessoas a atingirem determinados objetivos.

No ensino de Ciências, metodologias ativas podem ser utilizadas para incentivar e engajar a participação dos alunos em atividades de pesquisa e experimentação, permitindo-lhes que reflitam sobre as questões colocadas, reconhecendo as suas conquistas no processo de ensino-aprendizagem (Bizzo, 2009).

Diante dessa afirmativa, surge a seguinte indagação: a gamificação possibilita maior ancoragem de conceitos científicos complexos pelas crianças dos anos iniciais da Educação Básica em comparação com as aulas expositivas?

Dessa forma, a pesquisa tem como principal objetivo comparar o processo de apresentação de conteúdos (conceitual, procedimental e atitudinal) por meio de atividades expositivas e gamificadas, em duas turmas do Ensino Fundamental I, mediadas pela mesma professora.

O relato de experiência

O presente trabalho consiste em um relato de experiência realizada em uma escola da rede pública do município de Duque de Caxias, região da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro. Participaram da pesquisa 53 estudantes com idades entre 9 e 11 anos de idade, todos do 4º ano do Ensino Fundamental.

Duas turmas com o mesmo nível escolar e orientadas pela mesma professora seguiram caminhos diferentes na abordagem do tema uso consciente da água. Na turma 411 (n=28), a temática foi apresentada por meio de uma aula expositiva tradicional, com atividades realizadas no livro didático e registros no caderno de Ciências. Na turma 421 (n=25), a proposta pedagógica adotada foi a gamificação, com atividades registradas em uma plataforma digital.

Na turma escolhida para a gamificação, seguimos as seguintes etapas: identificar os objetivos e as necessidades do público-alvo; definir as mecânicas e os elementos de jogos mais adequados para atender a esses objetivos; desenvolver a plataforma ou o ambiente gamificado; testar e ajustar a plataforma, com base no feedback dos usuários, implementando a gamificação e, por fim, acompanhar os resultados (Gonçalves et al., 2016).

Ao final da apresentação dos conteúdos, foi aplicado um questionário avaliativo a ambas as turmas, para fins de comparação. O questionário, contendo dez perguntas de múltipla escolha, procurou seguir as habilidades elencadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

(EF05CI04) Identificar os principais usos da água e de outros materiais nas atividades cotidianas para discutir e propor formas sustentáveis de utilização desses recursos;

(EF05CI02) Aplicar os conhecimentos sobre as mudanças de estado físico da água para explicar o ciclo hidrológico e analisar suas implicações na agricultura, no clima, na geração de energia elétrica, no provimento de água potável e no equilíbrio dos ecossistemas regionais (ou locais) (Brasil, 2018, p. 341).

Além disso, o questionário de avaliação foi estruturado de acordo com as três dimensões propostas por Coll et al. (2000). As três primeiras questões enfocaram a dimensão conceitual, abordando o conhecimento sobre o tema. As três questões intermediárias abarcam a dimensão procedimental, avaliando a capacidade de aplicar o conhecimento em situações práticas. Por fim, as quatro últimas questões exploraram a dimensão atitudinal, investigando as atitudes e os valores relacionados ao assunto em questão.

Aula expositiva versus aula gamificada

Na turma 411, foi aplicada uma aula meramente expositiva com o auxílio do livro didático para fins de apresentação de conteúdo. A aula foi caracterizada por uma sequência linear de apresentação, com a professora falando e os alunos fazendo anotações em caderno próprio e praticando os exercícios no livro didático.

Na turma 421, a plataforma Wordwall (Figura 1) foi selecionada como a ferramenta ideal para abordar o tema de uso consciente da água. Além de ser gratuita, a plataforma fornece ao professor informações relevantes, como número de alunos participantes, pontuação e análise das questões (Nunes, 2021).

Atividade interativa no Wordwall, por Darling Domingos | Laboratório Sustentável de Matemática

Figura 1: Tela inicial da plataforma Wordwall
Fonte: https://wordwall.net/pt-br.

Ademais, a plataforma Wordwall permite a elaboração de jogos pedagógicos a partir da temática escolhida pelo usuário, podendo ser construídos quizzes (Figura 2), palavras cruzadas e caça-palavras, dentre outras atividades que auxiliam o professor na sua prática.

https://lh5.googleusercontent.com/X6P63oboj0uJ6IZr8HaAsZ5Bn7j1ZWKUq2rE0y0l3NrA0TqJ0IpQ1WrJsPe8GUw48pYiG3uwT7pTvBlipYtWHm3OzctuGf-5AWkH7OwaL71bt3t4AZtYq0XU7aziN43wZHyzjEM92hf-FEqpd_Uyrg

Figura 2: Aluno respondendo o quiz

Com o intuito de comparar uma aula expositiva com uma aula que utiliza a metodologia de gamificação, aplicamos um questionário avaliativo com as mesmas questões. Essa comparação nos permitiu inferir os benefícios e limitações de cada abordagem (Figura 3).

Figura 3: Comparativo de acerto de questões entre as turmas. As questões de 1 a 3 tratam de dimensão conceitual; as questões de 4 a 6, da dimensão procedimental; e as questões de 7 a 10 abordam a dimensão atitudinal
* p>0,05; ** p>0,005

Pode-se identificar que ambas as abordagens podem ser adequadas a contextos educacionais diversos, dependendo dos objetivos dos questionamentos e das habilidades a serem desenvolvidas. Assim, a Figura 3 revela que não há diferença estatística significativa na dimensão conceitual quando comparada às abordagens expositiva e gamificada. No entanto, à medida que se avança para além da dimensão conceitual, a abordagem gamificada parece “facilitar o desenvolvimento do pensamento complexo e o processo de ensino-aprendizagem” (Raposo Neto; Amaral, Carvalho, 2023, p. 313).

Os dados aparentemente indicam que a utilização de plataformas digitais “quando usada de forma correta, é extremamente eficaz” (Prensky, 2012, p. 22) pela capacidade de as atividades gamificadas motivarem a ação, engajando os estudantes em uma aprendizagem significativa e para a resolução de problemas reais (Alves, 2015; Ávila; Resende Andrade, 2023).

Considerações finais

Embora este seja um estudo de caso, ao longo do relato foi possível identificar que a gamificação contribuiu de forma significativa para além da dimensão conceitual, trazendo benefícios adicionais para o processo de aprendizagem.

Para além do simples conhecimento conceitual, as crianças puderam aplicar seus conhecimentos de forma prática, enfrentando desafios, tomando decisões e resolvendo problemas dentro do contexto do jogo. Essa abordagem permitiu que elas desenvolvessem habilidades como pensamento crítico, tomada de decisões, trabalho em equipe e resolução de problemas, enriquecendo sua experiência de maneira abrangente.

Outro aspecto importante foi o impacto positivo na dimensão atitudinal. Por meio da gamificação, os alunos demonstraram mudança de atitude em relação ao tema, adotando uma postura mais consciente e responsável a respeito do uso da água.

Diante desses resultados, fica evidenciado que a gamificação é uma estratégia pedagógica eficaz nas dimensões procedimental e atitudinal, promovendo engajamento, desenvolvendo as habilidades práticas e a formação de atitudes positivas.

Por fim, recomendamos aos educadores que considerem a gamificação como ferramenta valiosa para enriquecer o processo de ensino-aprendizagem e tornar uma experiência envolvente e significativa para os estudantes.

Referências

ALVES, F. Gamification: como criar experiências de aprendizagem engajadoras - um guia completo - do conceito à prática. 2ª ed. São Paulo: DVS, 2015.

ÁVILA, C. A. A; RESENDE ANDRADE, P. C. de. Proposta metodológica para inserção de atividades gamificadas no ensino com o uso de jogos digitais. EducEaD - Revista de Educação a Distância da UFVJM, v. 3, n° 1, p. 243-259, 2023.

BACICH, L.; MORAN, J. Metodologias ativas para a educação inovadora: uma abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018.

BIZZO, Nélio. Ciências: fácil ou difícil? São Paulo: Biruta, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 2 maio 2023.

COLL, C. et al. Os conteúdos na reforma. Porto Alegre: Artmed, 2000.

DEMARI, J. O uso da gamificação no ensino de Ciências da Natureza nos anos finais do Ensino Fundamental. Trabalho de conclusão de curso – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2022. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/237736. Acesso em: 2 maio 2023.

GONÇALVES, L. L. et al. Gamificação na Educação: um modelo conceitual de apoio ao planejamento em uma proposta pedagógica. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO, XXVII. Anais... p. 1.305-1.310, 2016.

GRINSPUN, M. P. S. Educação tecnológica: desafios e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2022.

MARTINS, N. R. S.; NUNES, J. F. Atividades interdisciplinares para potencializar o ensino de Ciências da Natureza. Research, Society and Development, v. 11, n° 6, p. e13111628798-e13111628798, 2022.

MORÁN, J. Mudando a educação com metodologias ativas. Coleção de mídias contemporâneas. Convergências midiáticas, educação e cidadania: aproximações jovens, v. 2, n° 1, p. 15-33, 2015.

MOTA, A.; WERNER, R, C. Ensaio sobre metodologias ativas: reflexões e propostas. Revista Espaço Pedagógico, v. 25, n° 2, p. 261-276, 28 maio 2018. Disponível em: https://attena.ufpe.br/handle/123456789/39778. Acesso em: 3 maio 2023.

NUNES, M. R. A. da N. Wordwall: ferramenta digital auxiliando pedagogicamente a disciplina de Ciências. Revista Educação Pública, v. 21, nº 44, 7 de dezembro de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/44/wordwall-ferramenta-digital-auxiliando-pedagogicamente-a-disciplina-de-ciencia. Acesso em: 16 jul. 2023.

PRADO, G. F. Metodologias ativas no ensino de Ciências: um estudo das relações sociais e psicológicas que influenciam a aprendizagem. Tese (Doutorado em Ciências) – Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2019.

PRENSKY, Marc. Aprendizagem baseada em jogos digitais. Trad. Eric Yamagute. São Paulo: Senac, 2012.

RAPOSO NETO, L. T.; PENTEADO, C de F. de O; CARVALHO, L A. de. Gamificação como ferramenta para o processo de ensino e aprendizagem: uma revisão integrativa. Perspectivas em Diálogo: Revista de Educação e Sociedade, v. 10, n° 22, p. 313-327, 2023.

ROSA, T. F. O processo de construção de um game para o reconhecimento dos níveis de alfabetização científica e tecnológica no ensino de Química. 2018. 151f. Dissertação (Mestrado em Formação Científica, Educacional e Tecnológica) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2018. Disponível em: http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/handle/1/3754.

SILVA, J. L. P.; MORADILLO, E. F. Avaliação, ensino e aprendizagem de Ciências. Ensaio – Pesquisa em Educação em Ciências, v. 4, p. 1-12, jul. 2002. Disponível em: http://www.redalyc.org/html/1295/129523721003/. Acesso em: 2 maio 2023.

SILVA, R. B. da; PIRES, L. L. de A. Metodologias ativas de aprendizagem: construção do conhecimento. In: VII CONEDU. Anais... Maceió: Realize, 2020.

VIECHENESKI, Juliana Pinto; CARLETTO, Marcia. Por que e para quê ensinar ciências para crianças. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, v. 6, n° 2, 2013.

Publicado em 20 de agosto de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

MAIA, Bianca de Lima; GONZAGA, Luciano Luz. A gamificação como estratégia de ancoragem de conceitos científicos nos anos iniciais da Educação Básica. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 30, 20 de agosto de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/30/a-gamificacao-como-estrategia-de-ancoragem-de-conceitos-cientificos-nos-anos-iniciais-da-educacao-basica

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.