Vivendo o ensino remoto
Celso Eduardo Santos Ramos
Professor de Artes e Filosofia na Seeduc/RJ, mestre em Ciência da Arte (UFF) e em Filosofia e Ensino (Cefet/RJ), doutorando em Ciências Humanas (Educação) (PUC-Rio)
A antes simbólica relação entre o ensino formal com a presença física do professor em sala de aula e o ensino remoto (quando ele já se constrói virtualmente no hoje) se configura como uma relação de produção real educativa a partir de um contexto pós-moderno. O hiper-real, conforme conceito de 1999 de J. Baudrillard, apresenta um contemporâneo saturado pela superposição de tragédias e valores relativizados.
O virtual coincide coma noção de hiper-realidade. A realidade virtual, a que seria perfeitamente homogeneizada, colocada em números, “operacionalizada”, substituía outra porque ela é perfeita, controlável e não contraditória. Por conseguinte, como ela é mais real do que o que construímos como simulacro (Baudrillard, 2001, p. 41-42).
Diante da pandemia da covid-19, o educador se viu obrigado a trabalhar com o ensino remoto, cuja tendência é o estudo híbrido, mesclando o fazer presencial com o fazer à distância. Tal relação afetou o exercício docente e o desempenho discente, promovendo debates e questionamentos de especialistas da Educação.
O ensino via EaD se diferencia do ensino remoto em vários aspectos. Não é novidade que ele já vem sendo utilizado em cursos de pós-graduação e graduação. O ensino remoto nos lança ao desafio de encontrar as melhores maneiras para o uso de ferramentas já disponíveis. A finalidade foi mitigar os prejuízos causados pelo isolamento social em virtude da gravidade apresentada pela pandemia.
O presente trabalho tem como objetivo realizar um relato de experiência por meio dos caminhos percorridos por docentes que se viram diante da necessidade de se apropriar de ferramentas tecnológicas em período pandêmico. Aqui, trataremos desse uso no Ensino Médio nas disciplinas de Artes e Filosofia, ministradas no Colégio Estadual Brigadeiro Castrioto e Colégio Estadual Matemático Joaquim Gomes de Sousa – Intercultural Brasil/China, ambos localizados no município de Niterói/RJ.
Contextualizando
No dia 14 de março de 2020, as aulas presenciais foram oficialmente suspensas pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc/RJ), atendendo às recomendações de órgãos de controle sanitário. Em abril, a Secretaria colocou em funcionamento o sistema Google Classroom, de sala de aula virtual, atendendo de forma emergencial aos alunos da rede estadual.
A plataforma Google Classroom é um espaço para armazenamento de conteúdos aos estudantes onde eles podem acessar tarefas e materiais. Esse foi um dos dispositivos disponíveis para o atendimento remoto inicial de forma assíncrona, quando professor e estudante não precisam estar presentes num mesmo horário para realizar as propostas.
A plataforma é de navegação simples e permite o armazenamento de conteúdos além de um dispositivo em forma de fórum, promovendo interação entre os participantes em tempo real ou não (assíncrono ou síncrono). Esse dispositivo inicial é lugar de trocas, exigindo do participante um certo domínio da palavra escrita já que não há a possibilidade de contato direto com o professor. Ou seja, por meio de um olhar mais crítico, o fato de precisar ler já é um primeiro obstáculo para estudantes sem esse hábito. Eis um motivo pelo qual acreditamos que ela tenha sido uma plataforma pouco aceita como referência e com parca participação dos estudantes, pois todos deveriam ler para escrever a fim de serem compreendidos. Assim, pensando nessa modalidade, caso a possuíssemos como opção hoje, não a entendemos como um método eficaz para o Ensino Médio.
Aprofundando a questão
Desse modo, não se aborda o ensino remoto sem considerar as suas inúmeras dificuldades. Além do acesso, há os empecilhos já existentes do próprio meio educacional, como a já citada falta de habilidade para a leitura e a escrita.
Diante da adoção do ensino remoto, observa-se um aprofundamento das desigualdades, pois constatamos que muitos estudantes ainda não possuíam acesso à rede. É preciso lembrar que as desigualdades caminham ao lado da exclusão digital. Essa exclusão não é uma prerrogativa do evento da covid-19. Ao contrário disso, faz parte da nossa realidade, marcada por diferenças gritantes há tempos.
Nesse percurso de utilização dos dispositivos, recursos e ferramentas ao ensino remoto, também esbarramos em problemas antigos que a educação presencial luta para superar. Não há como tratar da educação remota sem falarmos daquela que acontece presencialmente. As questões, as incertezas e os desafios apresentados pelo ensino remoto encontram resistência em hábitos e comportamentos deficitários do ensino presencial. Eles comprometem o desempenho do estudante nesse novo meio (virtual/digital), assim como as ações em políticas públicas relacionadas à educação, refletindo o que Dermeval Saviani afirma em sua obra Escola e Democracia:
Se a Educação se revelou incapaz de redimir a humanidade através da ação pedagógica, não se trata de reconhecer seus limites, mas alargá-las; atribui-se a Educação um conjunto de papeis que no limite abarcam as diferentes modalidades de política social. A consciência e a pulverização de esforços e de recursos com resultados praticamente nulos do ponto de vista, propriamente, educacional (Saviani, 2009, p. 30-31).
O texto revela as dificuldades anteriores inerentes ao sistema educacional, como um todo. Problemas que não foram superados, mas que os profissionais da educação precisam enfrentar no dia a dia da escola.
A necessidade de aprender a utilizar as ferramentas para atuar em um ambiente online se soma às mazelas que o sistema educacional já possui. A esse respeito, autores como Paulo Freire, Dermeval Saviani e Moacyr Gadotti problematizam. O educador que vivencia todos esses conflitos é convocado a pensar não só nos possíveis benefícios do ensino remoto, mas a respeito de como essas ferramentas são convidativas e acessíveis aos que não estão na educação formal e, a cada dia, possuem menores possibilidades de experimentar uma mobilidade social, justamente pela dificuldade em terminarem suas formações acadêmicas ou por pensarem nas consequências da adoção intempestiva desse meio.
Portanto, o tema em questão apresenta uma complexidade ímpar, exigindo do docente/leitor a responsabilidade da reflexão, pois “como a educação se destina (senão de fato, pelo menos de direito) à promoção do homem, percebe-se já a condição básica para alguém ser Educador: ser um profundo conhecedor do homem” (Saviani, 1986, p. 39).
Nesse sentido, um objetivo secundário investiga o lugar do estudante nesse novo cenário. Como afirmamos, o ensino remoto incorpora, de forma intempestiva, uma modalidade de ensino à vida dos profissionais da educação sem que eles possam fazer a escolha de aceitá-la ou de recusá-la.
Muitas vezes, enquanto discutimos sobre possíveis usos de uma dada tecnologia, algumas formas de usar já se impuseram. Antes de nossa conscientização a dinâmica coletiva escavou seus atratores. Quando finalmente prestamos atenção, é demasiado tarde. Enquanto ainda questionamos, outras tecnologias emergem na fronteira nebulosa onde são inventadas as ideais as coisas e as práticas (Levy, 1997, p. 24).
Pierre Levy, no livro Cibercultura, enseja que se problematize a questão do uso das tecnologias na sociedade, mais especificamente na área da Educação. A citação descreve a situação em que nos encontramos: o ensino a distância tem sido motivo de debates em seus aspectos positivos e negativos. Ao mesmo tempo, questões básicas do ensino presencial ainda não foram resolvidas, pois ainda não há formas eficazes de atender com qualidade e igualdade àqueles que mais necessitam.
O dilema no qual nos encontramos não está nos recursos ou se eles são acessíveis ou não a todos. A exclusão digital é uma preocupação, mas é preciso fazer com que esses recursos sejam bem utilizados, sem idealizações. Pelo menos essa parece ser a maior dificuldade imposta pela desigualdade social que antecedeu o fenômeno da pandemia. Neste trabalho, retomamos a questão para discussão na medida em que descrevemos nossa própria experiência, fruto de um tempo de incertezas e emergências.
Aquilo que identificamos, de forma grosseira, como “novas tecnologias” recobre na verdade a atividade multiforme de grupos humanos, um devir coletivo complexo que se cristaliza sobretudo em volta de objetos materiais, de programas de computador e de dispositivos de comunicação. É o processo social em toda sua opacidade, é a atividade dos outros, que retorna para o indivíduo sob a máscara estrangeira, inumana da técnica (Levy, 1997, p. 30).
O artigo se situa não no enaltecimento cego do ensino remoto, mas na tentativa de compreender seus impactos efetivos no processo árduo que é o processo da educação pública. O Ensino Médio envolve jovens que, apesar de estarem conectados a seus celulares, encontram dificuldades nas interações em meetings (síncrona) e em dar respostas às atividades postadas para serem desenvolvidas em plataformas como o Google Classroom (assíncrona).
A obra Cibercultura vislumbra as possibilidades de uma inteligência coletiva de linguagem. A partir dos encontros na rede, Levy compartilha de informações, debate assuntos e realiza encontros com pesquisadores e estudantes de todo o mundo, a fim de partilhar ideias. No entanto, Levy nos lembra de outra significativa característica da cibercultura:
A inteligência coletiva proposta pela cibercultura constitui um dos melhores remédios para o ritmo desestabilidade, por vezes excludente, da mutação técnica. Mas neste mesmo movimento, a inteligência coletiva trabalha ativamente para aceleração dessa mutação. Em grego arcaico, a palavra pharmakon significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Novo pharmakon, a inteligência coletiva que fornece a cibercultura é ao mesmo tempo um veneno para aqueles que dela não participam e um remédio para aqueles que mergulhem em seus turbilhões (Levy, 1999, p. 30).
Diante da compreensão de que as ferramentas utilizadas para o ensino remoto não garantem um efetivo aprendizado, precisamos pensar em como se dá a interação humana nesse novo meio. Ao falar sobre a experiência do ensino remoto com alunos do Ensino Médio é necessário, portanto, vislumbrar a relevância de uma efetiva participação do estudante e o seu tão desejado aprendizado, objetivo também da educação presencial. Será importante notar que aulas em meetings que possibilitam o encontro em tempo real (síncrono) entre professor e estudante exigem atenção diferenciada, além de preparo maior por parte do professor. Ele precisará conhecer o funcionamento da ferramenta para atuar de forma adequada junto ao seu aluno.
Processo de ensino remoto: a experiência empírica na ‘flutuação da atenção’ (FA) e na ‘modulação digital sonora’ (MDS)
No mês de abril, a Seeduc/RJ disponibilizou a plataforma Google Classroom para que seus estudantes não tivessem prejuízo diante da obrigatoriedade do isolamento social imposto pela covid-19. Em torno de discussões contrárias e favoráveis, essa foi a solução emergencial encontrada pelo estado para mitigar a ausência das aulas presenciais.
A plataforma apresentou simplicidade na navegação, pois se tratava de um sítio onde podiam ser armazenados livros, textos, imagens e vídeo, com espaço para comentários de estudantes e professores. O professor podia combinar com seus alunos trocas de mensagens, por chat, em tempo real e com interação textual, em formato escrito. Esse recurso, além de aulas transmitas pela TV Bandeirantes e pelo canal da Alerj, foi a opção oferecida. À época, a maior crítica por parte de sindicatos disse respeito ao acesso, que infelizmente não era para todos.
Como os estudantes relataram, muitos não tinham dados suficientes para acessar a plataforma e outros alegavam não possuir computadores em suas casas. No entanto, no primeiro mês de implementação da plataforma, o acesso dos estudantes foi regular e, com o retorno às atividades, ao longo dos meses de junho e julho, essa regularidade diminuiu.
Aqui, discutiremos rapidamente a imposição do isolamento social. Entendemos que ele não é a causa da desigualdade social e da impossibilidade de acesso à rede. Como mencionado, a educação já encontrava dificuldades advindas da falta de políticas públicas. Segundo Saviani,
retenhamos da concepção crítico-reprodutivista a importante lição que nos trouxe; a escola é determinada socialmente; a sociedade em que vivemos, fundada no modo de produção capitalista, é dividida em classes com interesses opostos; portanto, a escola sofre a determinação do conflito de interesses que caracteriza sociedade (Saviani, 2009, p. 28).
Não cabe julgar os estudantes como culpados pelo não acesso à plataforma disponibilizada, mas é fundamental enfrentar com coragem a mazela da marginalização virtual que nos foi revelada no momento inesperado da pandemia. A dificuldade de acesso não se restringiu aos estudantes. Muitos professores também relataram não ter condições de conexão, fosse por falta de recursos ou instrumentos como computadores ou tablets, fosse por problemas com o wifi limitado ou pouco domínio/conhecimento das ferramentas usadas nas aulas remotas. Esta última razão parece relevante e confirma a citação anterior de Pierre Levy a respeito das “formas de usar a tecnologia imposta” e o aspecto pharmakon da proposta. Ela idealiza a troca e a interação entre os sujeitos “sem limites ou fronteiras”, operando uma exclusão que segrega parte da sociedade.
Nesse sentido, a exclusão operada pelas formas impostas nos remete à crítica posta por Saviani, a partir da concepção crítico-reprodutivista. A plataforma Google Classroom colocou para os estudantes e docentes ainda outra questão: a presença do estudante no momento da realização das tarefas ou da sua comunicação assíncrona. O estudante não precisava estar disponível quando o material era postado na plataforma, pois havia a opção de realizar a tarefa em outro momento. Essa ação demonstrava um deslocamento do tempo individual daquele sujeito.
Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam “não presentes”, se desterritorializam. Uma espécie de desengate os separa do espaço físico ou geográfico ordinário e da temporalidade do relógio e do calendário. É verdade que não são totalmente independentes do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde (Levy, 1996, p. 9).
Baseados na citação de Pierre Levy, podemos afirmar que a plataforma utilizada pelo Estado do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que abriu possibilidades à “não presença”, também colocou um novo desafio ao estudante do Ensino Médio: organizar seu tempo de estudo. Agora, ele não mais estaria condicionado ao horário escolar presencial frequentado no dia a dia e a respeito do qual tinha certo controle, mas a um sistema que o colocava em um lugar incomum para além da questão espacial. O estudante está na sua casa, dentro do ambiente de descanso e entretenimento, cercado pelos seus pertences e sua família, não mais inserido no espaço geográfico escolar.
Observamos, assim, que adolescentes não estão preparados para uma experiência como essa. Misturar o ambiente de estudo (escola) com o ambiente privado (casa) promoveu uma desterritorialização forçada, uma perda do lugar de conforto. Isso também gerou desorientação e desânimo, pois poucos estudantes conseguiram administrar essa nova realidade sem o toque, sem a conversa, sem os olhares e sem as brincadeiras do outro, ou seja, a interação social entre os estudantes se mostrou um ponto sobremaneira significativo para o processo de ensino-aprendizagem. Uma das maiores queixas entre alunos e professores eram os meetings sem a participação e a troca entre eles. Além da dificuldade em administrar a questão do espaço-tempo, havia a questão aparentemente simples, mas extremamente complexa, de administrar o momento desses encontros conforme o tempo da casa. Era preciso que se somassem os tempos dos demais habitantes da casa. Todos tinham seus afazeres e responsabilidades em um contexto de isolamento no lar. Então, se a casa era constituída por pai, mãe e dois filhos, tínhamos quatro realidades temporais somadas a uma quinta realidade (a do funcionamento da própria casa). Ou seja, considerando que todos estudavam e trabalhavam remotamente, vislumbramos a circunstância difícil que factualmente era enfrentada pela família. Quantos computadores ou quantos celulares seriam necessários?
Em relação à aula presencial e à aula remota, observamos alguns aspectos importantes que nos levam a entender as razões pelas quais era tão complicada a participação efetiva do estudante na plataforma. Ao longo da experiência, durante os encontros pelo Google Meet, a ausência do que podemos chamar de “flutuação da atenção” (FA) – que faz parte da aula presencial – é uma realidade que torna o ambiente remoto árido. Essa “flutuação”, que não existe na aula remota, só pode ser superada se cada integrante do encontro contribuir com sua participação, dividindo a fala durante a sessão. Na troca, o que se experimenta é o contato com os diferentes aspectos da voz ou o que chamamos de “modulação digital sonora” (MDS) que é individual e absolutamente distinta de um estudante para outro.
Pierre Levy (1996, p. 12), ao se referir ao trabalhador online, fundamenta a reflexão que realizamos:
O teletrabalhador transforma seu espaço privado em espaço público do seu domicílio ao espaço do lugar do trabalho (estudo). Os limites não são mais dados. Os lugares e tempos se misturam. As fronteiras nítidas dão lugar a uma fractalização das repartições.
Para minimizar a questão da dificuldade no contato entre professor e estudante, observamos um segundo dispositivo tecnológico que permite a ambos, em um mesmo horário, estabelecer um contato em tempo real com certa limitação do chat: o Youtube.
As aulas de Arte e Filosofia começaram a ser ministrada via YouTube. No dia 8 de abril fizemos a primeira transmissão pelo canal, e esse dispositivo, apesar de superar a questão do tempo (horário do encontro), apresentava uma nova questão: a interação. Por meio dele, a dificuldade passava pela comunicação via chat entre estudante e docente, pois as dúvidas que surgiam ao longo da exposição só podiam ser comunicadas assim. A plataforma permite um encontro de comunicação síncrona, no entanto, ainda limitada.
Na plataforma Google Classroom havia o problema da “não presença”, mas na plataforma YouTube, ainda que os estudantes assistissem ao professor em tempo real por meio da chamada live, ele ainda estaria limitado nesse contato virtual. Mesmo com essas dificuldades, durante o mês de abril utilizamos esse canal de comunicação como suporte às aulas a fim de complementar as atividades propostas no Google Classroom.
Desse modo, as aulas eram ministradas com a seguinte metodologia: apresentação do assunto – geralmente baseada em texto previamente selecionado –, com espaço para perguntas ao longo da live, via chat. Após a aula, o vídeo era compartilhado e postado juntamente com a tarefa a ser executada pelo estudante na plataforma Google Classroom. Assim, a aula vinha comentada ao estudante que não pôde estar presente de forma virtual no momento da live. Para cada aula havia um texto e uma tarefa acompanhados da postagem do vídeo no YouTube.
Na desordem provocada pelos media, surge o mestre em sua função integradora. Mais do que um transmissor de cultura, tarefa que a biblioteca de certa forma já exerce e os novos recursos tecnológicos, bem ou mal, podem realizar, o mestre é um estimulador e um mediador do estudante. Mais do que um conteúdo, cabe-lhe ensinar um método, a exemplo de Sócrates. É o que se pede ao professor e ao mestre de hoje e amanhã como se pedia aos sucessores de Sócrates; ensinar é a difícil arte de partejar espíritos (Gadotti, 1975, p. 114).
Em tempo de pandemia, convocados a nos reinventar, Gadotti recorda a importância da figura do mestre como integrador, reforçando a importância da “presença pedagógica” auxiliada pelas novas tecnologias na implementação do ensino remoto. O que até aqui percebemos foi que o ensino remoto envolveu problematizações que não podem ser desconsideradas. O processo de adaptação de estudantes e professores a essa realidade, em que o espaço-tempo precisou ser ressignificado – tempo de casa e tempo da escola – foi subvertido em cinco/seis meses de isolamento social, assim como o acesso à rede (internet) num contexto anterior ao evento da pandemia, que revela que “a escola sofre a determinação do conflito de interesses que caracteriza a sociedade” (Saviani, 1975).
Então, faz-se necessário lançar um olhar sobre o ensino remoto sem ignorar a complexidade de nossa estrutura educacional. Ela evidencia um despreparo das estruturas de poder a novas práticas. Essa parece ser uma preocupação que não pode deixar de existir quando nos debruçamos a discutir a respeito dos pontos positivos do EaD. Caso contrário, incorremos no erro de distorcer a realidade, idealizando os recursos tecnológicos. Lembrando Pierre Levy, aquilo que poderia ser remédio pode se transformar em veneno (pharmakon), atendendo a poucos e excluindo muitos.
Isso posto, uma terceira alternativa foi utilizada; tendo em vista que a plataforma YouTube limitava o aluno em seus comentários, adotamos a utilização do Google Meet, um aplicativo que possibilita encontros em salas virtuais em que professor e estudante se reúnem em tempo real, estabelecendo comunicação síncrona, com limite de participação em torno de 250 pessoas, com larga duração. O aplicativo ainda permite que os participantes possam visualizar uns aos outros pela câmera (do laptop ou celular).
Além dessas possibilidades (de ver e falar com o docente), o estudante tem o recurso do chat em tempo real. Ele pode interagir com o seu professor e com os seus colegas de classe, observando as reações em emojis, voz e rosto, no caso de a câmera estar aberta. Outros professores também podem participar do Meet por aulas partilhadas. Apesar de possibilitar tanto a visualização como a audição de voz em tempo real, a plataforma revela a fragilidade do estudante também em tempo real, nesse desafio de administrar seus deslocamentos de espaço-tempo dentro da circunstância vivida em ambiente familiar.
Assim, entendemos que as ferramentas tecnológicas disponíveis possibilitam experiências educacionais remotas com resultados consideráveis. No entanto, como educadores comprometidos com a ampliação do acesso à informação e com a produção de conhecimento, não podemos desprezar as consequências de uma adoção abrupta da modalidade. Devemos considerar os desdobramentos do fenômeno, a fim de nos prepararmos para os novos rumos metodológicos quando pensamos a Educação.
Quando nos propomos a falar do ensino remoto, a experiência prática com alternativas tecnológicas passa a ser a fonte dessas reflexões. Como resultado dela, vemos o docente na necessidade de administrar o seu novo espaço-tempo, assim como na emergência de aprender a manusear essas novas ferramentas. Além disso, há o fato de ministrar aulas remotas diante da apresentação de sinais de estafa e cansaço, justamente pela falta de interação com o estudante - pelos motivos já mencionados desse aluno que, apesar da possibilidade de interagir visualmente, não o faz ou o faz pouco. O docente experimenta uma sensação contraditória. Ele dispõe das ferramentas e busca com elas minimizar a falta da aula presencial, mas ao mesmo tempo se vê limitado tanto pelo despreparo como pela exposição do estudante do Ensino Médio. Não se trata de incapacidade, mas de um condicionamento imposto em anos, sem exercitar um estudo autônomo. Agora, lhe são cobradas autonomia e proatividade, quando está acostumado a ouvir, a decorar e a reproduzir.
As ferramentas tecnológicas convidam seus atores a promovem uma interação. No entanto, a desejada interação não se realiza. Destacamos alguns motivos com o auxílio de Pierre Levy (1996, p. 49):
A concepção de uma ferramenta virtualiza uma combinação de órgãos e de gestos que só aparece, então, como uma solução especial, local, momentânea. Ao conceber uma ferramenta, mais que nós concentramos sobre determinada ação em curso, içamo-nos à escala bem mais elevada de um conjunto indeterminado de situações. O surgimento da ferramenta não responde a um estimula particular, mas materializa particularmente uma função genérica, cria um ponto de apoio para a resolução de uma classe de problemas. A ferramenta que seguramos na mão é uma coisa real, mas essa coisa do acesso a um conjunto indefinido de usos possíveis.
Pierre Levy entende que a ferramenta amplia as possiblidades. Concordamos com ele, mas entendemos que toda ferramenta tecnológica precisa ser acionada e mediada. No caso das três ferramentas propostas aqui, a ampliação se faz na medida em que os agentes envolvidos as compartilhem como conhecimento. Se por um lado os dispositivos disponíveis Google Classroom, YouTube e Google Meet abrem possibilidades para o ensino remoto, por outro lado precisam funcionar sob a necessidade de amadurecimento do estudante em relação à administração de uma relação anterior com o conhecimento, não sob as bases do condicionamento em ouvir, decorar e reproduzir, mas do pensar. Esse tipo de condicionamento é o responsável pela passividade. Por isso, ele não é o comportamento desejado para um ambiente virtual.
A grande contribuição que os meios podem oferecer ao diálogo e ao progresso educacional não deverá nos eximir da reflexão sobre a sua ambiguidade. O equilíbrio da tecnologia só existe quando houver o equilíbrio humano que alimenta a tecnologia (Gadotti, 1975, p. 112).
Neste trabalho nos esforçamos para entender o motivo de o estudante do Ensino Médio apresentar dificuldades na participação das aulas remotas em diferentes dispositivos. Constatamos que a resposta deve considerar as circunstâncias nas quais esse estudante se encontrava: de isolamento social. Ele precisava administrar a multiplicidade de tempos em um só espaço e isso cansa, desgasta emocionalmente, provocando um desinteresse e uma ansiedade que afetam o desempenho desse estudante.
Realizando uma analogia entre a presença na sala de aula – que requer dele uma atenção flutuante (AF) necessária e inerente à presença – e a presença na aula remota – que necessita daquilo que chamamos modulação digital sonora (MDS) –, se operacionaliza a aula remota nas condições vividas. Essa é uma questão de administração de tempos diferentes, pois afeta não só os estudantes como os educadores (e todas as pessoas que hoje necessitam trabalhar nesse regime remoto).
No ciberespaço, em troca, cada um é potencialmente emissor e receptor num espaço qualitativamente diferenciado, não fixo, disposto pelos participantes. Explorável. Aqui não é principalmente por seu nome, sua posição geográfica ou social que as pessoas se encontram, mas segundo centro de interesses, numa paisagem comum do sentido ou do saber (Levy, 1996, p. 77).
Problematizamos a condição desse aluno cuja exigência de participação é para atuar em um ambiente para o qual não foi preparado, mas que se traduz como um acontecimento construído em sociedade e, portanto, de interesse comum. Infelizmente, constatamos que questões não superadas no ensino presencial, como a autonomia, o senso crítico, a resolução de problemas, a colaboração, o autoconhecimento, a criatividade, a abertura para o novo, a responsabilidade e a comunicação entre os sujeitos, são objetivos almejados nas novas diretrizes educacionais da BNCC. Como assinala Pierre Levy (1996, p. 79),
o ciberespaço favorece as condições, as coordenações, as sinergias, entre as inteligências individuais, e sobretudo se um contexto vivo for mais bem compartilhado, se os indivíduos e os grupos puderem se situar mutuamente numa paisagem virtual de interesses e de competências, e se a diversidade dos módulos cognitivos comuns ou mutuamente compatíveis aumentar.
Encontramo-nos diante de um enorme desafio que não envolve apenas a utilização de tecnologia para o ensino remoto, mas o próprio entendimento do que seja Educação e quais são os seus objetivos. Nossa tarefa não é esgotar o tema, mas lançar um olhar crítico a respeito do uso das ferramentas tecnológicas e de seus efeitos em estudantes e professores a longo prazo, porque, “se nos limitarmos a instrumentalizar o professor, a tarefa da Educação fracassará como a própria tarefa da humanização. Seria deter-se nos meios sem querer alcançar o fim” (Gadotti, 1975, p. 106).
Conclusão
Procuramos abordar os principais aspectos relacionados à utilização de aplicativos para atender aos alunos do ensino público durante o período do isolamento social imposto pela pandemia.
A oportunidade nos permite refletir não somente a respeito da utilização desses dispositivos, mas também de questões com as quais já convivíamos antes do evento pandêmico mundial.
A Educação brasileira padece de problemas estruturais que se evidenciaram durante o isolamento. De forma sucinta, refletimos a respeito das desigualdades sociais vislumbradas de forma mais clara na Educação a partir do isolamento social. A questão do acesso às redes, bem como a questão posta na relação estabelecida entre estudantes e professores durante as aulas remotas, foram motivos de atenção deste artigo. De alguma forma, contribuímos com o registro de uma experiência vivida nesse contexto.
Assim, olhar para o objeto de forma participativa é um aspecto importante, pois identificamos que a ausência de interações afetou estudantes e professores, trazendo reflexões relevantes a respeito dos aspectos positivos e negativos vivenciados por ambos em aulas síncronas e assíncronas.
O desafio de aprender a lidar com uma nova ferramenta em um tempo absolutamente exíguo foi motivo de preocupação, resultando em ansiedade e estafa tanto aos discentes como aos docentes. Só é possível falar com propriedade desses aspectos problemáticos da modalidade, bem como de suas possibilidades positivas, os docentes que efetivamente vivenciaram a experiência.
Referências
BRAUDRILLARD, Jean. Senhas. Rio de Janeiro: Difel, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GADOTTI, Moacyr. Comunicação docente. São Paulo: Loyola, 1975.
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo; Editora 34, 1999.
LEVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados, 2009.
Publicado em 20 de agosto de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
RAMOS, Celso Eduardo Santos. Vivendo o ensino remoto. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 30, 20 de agosto de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/30/vivendo-o-ensino-remoto
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