"Professora eu fiz o mundo": cartografia e criação infantil no currículo da Educação Infantil

Rayra Sarmento Ferreira Subtil

Mestra em Educação (UFES), professora das Prefeituras Municipais de Viana e Vila Velha/ES

Claudineia Rossini Gouveia

Mestra em Educação (UFES), professora da Prefeitura Municipal de Vitória/ES

Larissa Ferreira Rodrigues Gomes

Doutora em Educação, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES

Este artigo tem como disparadora a frase de uma aluna que, ao brincar com massinha de modelar, diz ter feito o mundo. Essa fala promoveu despertamentos em relação ao que as crianças têm aprendido nas pré-escolas, principalmente em relação à criatividade e ao desenho. Com isso, o objetivo do artigo é demonstrar o que os professores pensam sobre as atribuições do desenho na Educação Infantil associadas à criatividade que potencializa a infância. Como sujeitos praticantes (Certeau, 1994) dentro da cartografia (Kastrup, 2009) nos espaços e tempos escolares, fazemo-nos sujeitos cotidianos que protagonizam ações como autores que produzem possibilidades ético-estético-políticas (Ferraço, 2003) para compor este trabalho.

Na Educação Infantil, contamos com um espaço privilegiado para tratar dos diferentes campos do conhecimento, já que a infância instiga e deseja o novo, o colorido, a fantasia e a alegria. Então, em uma roda de conversa com os professores sobre o desenho infantil em um centro municipal de Educação Infantil (CMEI) em um município da Região Metropolitana da Grande Vitória, foram levantadas questões sobre o que o desenho infantil proporciona à infância, assim como a criatividade que as crianças possuem em suas construções sociais no ambiente escolar.

Por sua vez, tratamos o ambiente como território (Deleuze; Guattari, 1997), constituindo-se em um espaço de subjetividades que provoca reterritorializações em fluxo constante. Assim, “registrar um currículo-diferença é acompanhar linhas e traçados de currículos em suas bifurcações; ver, sentir e falar de sua força, sua potência, sua composição, seus movimentos de criação”. Além disso, “criar não é comunicar, mas resistir [...] e traçar linhas de fugas” (Paraíso, 2010, p. 595-596).

Kohan (2011, p. 237) afirma que, na tradição educacional, “a infância é associada à imaturidade, à minoridade, e seria um estado do qual haveria que se emancipar para se tornar dono de si mesmo. Ela é uma metáfora de uma vida sem razão, obscura, sem conhecimento”. As crianças que fazem parte da Educação Infantil, por diversos motivos, também são de certa forma excluídas, deixadas à margem sem respostas para suas perguntas, especialmente sem o olhar atento e a escuta sensível dos que deveriam fazer com que elas tenham protagonismo no ambiente escolar. Por certo, a criação de elos entre adultos e crianças é essencial, principalmente nessa etapa do processo educacional, pois a criança não é uma página em branco. Por isso, sua vivência anterior ao âmbito escolar também deve ser levada em consideração, pois elas movimentam as salas de aula com brincadeiras e suposições.

Método

Para delinear esta pesquisa, optamos por utilizar a pesquisa cartográfica. O método da cartografia compreende o conhecimento como invenção, sendo considerada uma pesquisa de intervenção. Nesses termos, validar uma pesquisa cartográfica é avaliar as suas avaliações, confirmando ou corroborando tanto com os procedimentos e seus efeitos quanto com as diretrizes pelas quais a pesquisa se orienta (Passos; Kastrup, 2013).

Segundo Passos e Kastrup (2013), na cartografia a pesquisa é validada por meio da sua atitude interessada pela processualidade da realidade que investiga. Por isso, ela deve ser considerada o próprio processo de investigação. Sabemos que é no plano comum que podemos encontrar as diretrizes que orientam a investigação. Dessa forma, pensando na validação da pesquisa e no plano coletivo de forças, a pesquisa atravessa as narrativas que envolvem o desenho das crianças e a criatividade que elas possuem ao usar o imaginário. Logo, o caráter de intervenção sobre a realidade faz com que tenhamos que redefinir o sentido habitualmente concedido ao procedimento metodológico da coleta de dados. Entretanto, o termo mais relacionado à produção de dados seria “colheita” de dados, pois ela está além da representação do mundo conhecido (Passos; Kastrup, 2013).

O ensino de Arte para crianças tem sua relevância afirmada. Para Faria e Richter (2013, p. 155), “a Educação Infantil não está centrada na aula, no ensino, na figura do professor, no binômio ensino-aprendizagem. A Educação Infantil está centrada na experiência da criança, no processo, e não no produto ou resultado”; o que vai permanecer são as experiências, as vivências e os processos criativos que essas crianças vivenciam.

É por intermédio das conversas, do incentivo e das relações que o professor irá ajudar as crianças a produzir e a expressar por gestos, desenhos, escritas e brincadeiras suas vivências, seus sentimentos, suas observações, seus conhecimentos e, assim, transmitir seus saberesfazeres (essa forma de escrever usando as palavras juntas, em itálico, é usada pela professora Nilda Alves para criar novas palavras). O desenho reflete os sentimentos, a capacidade intelectual, o desenvolvimento físico, a percepção, a experiência de cada sujeito, o desenvolvimento criador, o gosto estético e a evolução social e cultural de cada criança como sujeito na sociedade. Dessa forma, os professores devem ser influenciadores da inventividade no contexto infantil.

Segundo Dias (2009), o conceito de formação é “como dar forma a”, ou seja, é sempre um saber-fazer voltado apenas aos resultados e fins, aos pensamentos limitados e deterministas, deslocando-se para uma formação constitutiva das experiências de aprendizagem que fazem parte de todo o percurso, regido por fugas e invenções de problemas. Nas palavras do autor, a “formação de professores é pensada por aquilo que move os encontros, no meio dos quais há tensão e possibilidade entre os diferentes modos e formas de pensar e de fazer o conhecer” (Dias, 2009, p. 167). Sendo assim, pelas pequenas invenções e imprevisibilidades do cotidiano escolar é possível empreender uma formação que busca o conhecer de forma concreta, inventiva que pensa e transforma pela coletividade.

Para se ter uma formação inventiva, é necessário fugir das verdades absolutas que se esperam de um professor, das lógicas dos consensos através das pedagogizações e formações universais. Ou seja, “para experienciar uma formação inventiva, é preciso pensar nas formações como se elas, diariamente, emergissem das experiências” (Dias, 2009, p. 170).

Dias (2009) refere-se à formação inventiva como um cultivo do paradoxo entre o já sabido e o não sabido. Esse processo envolve um aprender e uma desaprendizagem de atitudes prescritas no cotidiano da escola e, a partir desse cultivo, introduz-se a aprendizagem no conceito de invenção, nas problematizações e nos incômodos gerados, expressando, assim, “uma formação que não pode ser aplicada e interpretada, mas experienciada politicamente, numa produção coletiva, forjando sentidos e produzindo efeitos diversos num campo de relação de forças” (Dias, 2009, p. 173).

Ao desenhar, assim como pelas palavras, as crianças enunciam-se em suas produções. E isso se trata “de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o que nomeamos” (Larrosa, 2002, p. 21).

Para Ferraço e Moraes (2020), o movimento de desterritorialização criadora permite que o sujeito pratique o cuidado de si por optar em possuir uma atitude por um comportamento ético indissociável, em uma estética da existência que exerce a liberdade de fazer da vida uma obra de arte. Isso permite o transbordar da força inerente ao deixar-se atravessar pelos afetos e percepções da Arte e, ao assumir uma estética da própria existência, faz da vida uma obra de arte.

O importante é pensar e fazer uma formação criada e gerada com base em experiências dos cotidianos que atravessam os sujeitos. Deve-se fazer com que eles se movimentem em busca de aprendizagens e formações inventivas, em um processo de representação para um processo de aprendizagem, constituindo, assim, um movimento em que as potências inventivas, os afetos, a alegria e os processos de criação explorem “o currículo como um ‘acontecimento’ vivido nele mesmo” (Carvalho, 2011, p. 78). Isso faz pulsar no espaço-tempo da Educação Infantil um currículo não burocratizado, isto é, sem amarras que prendem crianças e professores.

Cartografando a inventividade da criação infantil

No movimento da pesquisa cartográfica, o caráter de intervenção sobre a realidade torna necessária a redefinição do sentido que, habitualmente, é atribuído ao procedimento metodológico de coleta de dados. Por isso, usa-se o termo “colheita de dados” para afirmar o caráter de maior produção do que de representação do mundo que é conhecido. Nesse aspecto, a pesquisa colhe dados, porque não só os descreve, mas principalmente acompanha os processos de produção da realidade investigada (Passos; Kastrup, 2013).

Bergson (2010) nos faz pensar como o desenho infantil passa de um estado para o outro num piscar de olhos – alegria ou tristeza, agitação ou calmaria –, quando menciona que as sensações, os sentimentos, os caprichos e as representações são modificações que a nossa existência compartilha tingindo ora de uma cor, ora de outra. Sabe-se que a observação e a experiência são necessárias para que o princípio seja alcançado e em qual aspecto as coisas devem ser consideradas, visto que ocorrem situações e consequências que a experiência irá viver sempre.

No vaivém das cores e das linhas que compõem o território da Educação Infantil, acontece uma rede de conversação recriada e aberta que não existe sem “ser criada e sustentada pela participação ativa e criativa, que combina em si duas dimensões: a poética da participação e a sociabilidade, articulando vozes, assuntos, de modo que tornem possível a multiplicidade partilhada” (Carvalho, 2009, p. 189). Aqui, a multiplicidade de trocas entre os sujeitos que fazem parte desse lugar de afetos pressupõe que um simples toque é um sinal para conduzir e enredar as conversações e, assim, ampliar o repertório de conhecimento de crianças e professores.

Nessa lógica, ocorre um movimento investigativo estabelecido a partir das conexões existentes entre professor-aluno, aluno-aluno, professor-aprendiz-cartógrafo, aluno-aprendiz-cartógrafo. Trata-se de um movimento em rede de potentes afetos entrelaçados nas linhas traçadas pelos sujeitos que fazem parte do cotidiano desse território que ajudam a produzir um mapa desses movimentos. No cotidiano da Educação Infantil em que se constitui o território do brincar, o território dos afetos, das descobertas, representar uma “assinatura expressiva” em que as enunciações compõem linhas tênues entre adultos-crianças, crianças-crianças, em um ir e vir constante e potente de experiências-vivências que farão parte, por muito tempo ou a vida toda, das lembranças dos que viveram esses acontecimentos-momentos (Alvarez; Passos, 2020).

Para Ostrower (2014, p. 56), “criar é um processo existencial”, que não lida apenas com pensamentos nem somente com emoções, mas origina-se nas profundezas do nosso ser, onde a emoção permeia os pensamentos ao mesmo tempo que a inteligência estrutura e organiza as emoções. Nesse sentido, a ação criadora dá forma e torna inteligível o mundo das emoções.

A Figura 1 disparou a busca pela compreensão da importância do desenho e da criatividade infantil: a que fez uma criança afirmar “ter feito o mundo” com massinha de modelar. Esse fato demonstra que as crianças produzem sentidos e tencionam movimentos em redes durante as rotinas escolares, promovendo os acontecimentos que são pertinentes à infância. É invenção. Para Kastrup (2007), a invenção está implicada em uma duração, sendo uma prática de tateio e de experimentação.

Figura 1: “Professora eu fiz o mundo!”

A criação que é incessantemente renovada no real, em seu todo indiviso, efetua e avança como uma partícula de novidade. A vida, em sua totalidade, é considerada uma evolução criadora, pois transcende a finalidade, em especial quando entendemos que a finalidade é a realização de uma ideia que é concebida e que não cabe em moldes. Dessa forma, não duvidamos que a vida seja, no seu conjunto, uma evolução, ou seja, uma infindável transformação (Bergson, 2010).

Desse modo, desenvolver propostas que envolvem, instigam e que produzem entusiasmo, sensações e que levam as crianças a produzir e expressar em seus desenhos e signos artísticos suas singularidades emerge, pois “a essência que constitui a verdadeira unidade do signo e do sentido [...] é apenas no nível da arte que as essências são reveladas” (Deleuze, 2003, p. 36).

A Figura 1 nos toca porque, no desenvolvimento escolar, aliada à criatividade das crianças ao comporem formas, ela demonstra que elas também possuem suas subjetividades e os seus conteúdos para além dos muros escolares. Por isso, é fundamental que a educação seja curiosa e provoque a curiosidade dos educadores e dos educandos. Sobre a curiosidade da infância, podemos questionar como nascem as perguntas, ou melhor, qual é o momento em que a curiosidade aflora com mais força dentro da existência; é importante perguntar se todas as infâncias vivem da mesma forma a pergunta e o perguntar.

Eis uma outra declaração precisa da infância, uma definição aguda: a infância é justamente uma forma de experimentar o tempo à medida que passamos por ele. O tempo passa e, com ele, podemos mantermo-nos ou aproximarmo-nos da infância se nossa vida se abre às perguntas, às inquietações, às mudanças. Podemos viver uma vida infantil já próximos da morte e podemos estar afastados da infância mesmo pouco tempo depois de termos nascido (Kohan, 2021, p. 51).

Alves (2019) faz refletir sobre como, por meio de nossas “redes de conversas”, formamos inúmeras redes educativas em um processo contínuo. Isso acontece na relação que estabelecemos uns com os outros e nas diferentes situações do cotidiano, em que cada sujeito se constitui pelas marcas deixadas por outros nas ações do cotidiano escolar, repleto de artefatos culturais e tecnológicos, ou através das inúmeras vivências em que vamos criando processos mediante múltiplas redes educativas. É nesse processo que vamos nos formando e formando o outro, em um percurso pedagógico que vai sendo criado, modificado e enriquecido com o passar e com o fluir do tempo.

As experiências, as trocas, as negociações, os sentimentos e as criações de conhecimentossignificações afloram a todo momento nas práticas cotidianas dos praticantes-pensantes que vivem e respiram o “chão da escola”. Eles buscam em suas redes-de-conversas uma escola com igualdade e equidade para todos, uma educação de qualidade em que os currículos praticados e pensados façam parte de uma educação em que os espaçostempos sejam potentes e criativos, em que contar-ouvir histórias possa fazer ver-ouvir-sentir-pensar as propostas ofertadas na Educação Infantil com um olhar mais atento, afetuoso e divertido.

Com eles – narrativas, imagens e sons – podemos lembrar situações/acontecimentos passados, indicar processos vividos, imaginar processos que poderiam/podem acontecer nas escolas e projetar outros no futuro. Nelas aparecem (ou nos fazem lembrar) aqueles e aquelas com quem convivemos de algum modo, em algum 'espaço-tempo' e que em nós deixaram marcas. Todos nós temos um repertório de histórias sobre as escolas, bem como de outros ‘espaçostempos’ educativos, e um acervo – maior ou menor – de imagens e sons delas e deles, o que nos permite trocar ideias, sempre (Alves, 2019, p. 21-22).

As crianças precisam ter oportunidade de ser inventivas para além das prescrições curriculares impostas pelos sistemas educacionais. Dessa forma, os professores precisam compreender que as normas curriculares não devem estar restritas às teorias educacionais, que, em geral, formatam e tornam a educação cristalizada.

O que dizem os professores sobre a inventividade infantil?

Pensar a Educação Infantil, de acordo com Alves (2019), representa um ‘espaço-tempo’ em que as práticas pedagógicas são criadas e pensadas de maneira inventiva. Ou seja, trata-se de pensar as propostas e os processos do desenho infantil de modo que não seja um momento de sofrimento para a criança ou de forma que a escola não faça parte de mais um relato/narrativa em que o aluno não queira estar. Mas pensar em processos ‘criativos-inventivos-atrativos’ pressupõe que a escola se torne lugar de memórias, de narrativas e imagens que farão parte das lembranças boas nas memórias dos discentes.

Os professores e as crianças se tornam potentes dispositivos de invenção de saberes por meio das trocas, produzindo, assim, a partir de seus enunciados, modos de existência e resistência que afetam o outro. Com efeito, “a enunciação passa a ser coletiva e forma um rizoma, uma teia de forças que ganha o mundo e afeta outros corpos em relação e em tempos e espaços outros” (Carvalho; Silva; Delboni, 2018, p. 813).

Segundo Santos e Batista (2017), o trabalho na Educação Infantil deve priorizar os momentos lúdicos e prazerosos das crianças. Logo, a criança que desenha estabelece relações do seu mundo interior com o exterior. Na perspectiva social, Luquet (1927 apud Santos; Batista, 2017) afirma que a criança desenha relacionando o desenho ao meio em que vive.

Segundo Lopes e Macedo (2011), atualmente, o ensino deve ser pensado e planejado previamente pelo docente, o que envolve a seleção de conteúdo, de experiências e organização ao longo do tempo. Desse modo, o currículo na Educação Infantil deve ser pensado, organizado e levar em consideração as especificidades e as demandas que as crianças levam para os professores e demais profissionais que compõem o quadro de funcionários do CMEI em análise.

Para compreender o que dizem os professores sobre a inventividade infantil, eles foram ouvidos em uma roda de conversa que buscou manter relações dialógicas sobre a temática, como rizomas que constituem raízes de multiplicidades. Isso pode ser visto no Quadro 1.

Quadro 1: Conversações com professores

“Eu acho muito importante o desenho infantil, pois através dele a criança vai criar e recriar, expressar seus desejos, seus medos, suas ansiedades. Tudo que ela sente, ela vai expressar através dos seus traços, de forma lúdica e divertida.”

“Propicia a criança a desenvolver a criatividade e a expressão dos seus sentimentos e situações sociais que a criança manifesta, através dos traços e das cores, como por exemplo, agressões, abusos e abandonos. Ajuda a desenvolver a coordenação motora e as suas aptidões.”

“A criatividade, quando é estimulada na criança, junto com a intencionalidade, auxilia o desenvolvimento cognitivo para assim desenvolver a sua própria criatividade. Sendo que, nos momentos em que estão sendo proporcionadas situações, é necessário que haja recursos para auxiliar no desenvolvimento de atividades e também da criatividade.”

“O desenho é importante porque é uma forma de expressão da criança; através do grafismo, muitas vezes a criança expressa aquilo que não consegue através das palavras. Muitas não desenvolveram a oralidade e outras não conseguem explicar o que sentem através da oralização, como por exemplo, as situações do cotidiano.”

“A criatividade da criança é importante porque auxilia no desenvolvimento do potencial da criança para estabelecer relações e atividades futuras, pois pode estar estimulando o desenvolvimento das potencialidades infantis até mesmo em relação à escolha de suas profissões e aptidões futuras.”

“O desenho infantil e a criatividade das crianças são importantes, pois, além de auxiliar na destreza e coordenação motora, também ajudam a estimular o pensamento e a fantasia, ajudando a criança a representar o seu imaginário.”

Percebe-se que os termos “destreza” e “coordenação motora”, assim como “cognição” e “desenvolvimento”, juntamente com a expressão dos sentimentos e o desenho, apareceram várias vezes entre as conversas com os professores. Por certo, “coisas de escola não deveriam permanecer no papel, nem somente na escola, mas marcadas em nosso corpo, mente e espírito” (Cola, 2014, p. 20). Os desenhos representam momentos inventivos para as crianças e para os professores. Ou seja:

falar sobre o cotidiano escolar e currículo como coletivo atravessado por linguagens, conhecimentos, afetos/afecções implica acompanhar movimentos que vão transformando a cultura da escola, fortalecendo a criação coletiva e individual, ou seja, para o questionamento dos “possíveis” do coletivo escolar e constituir-se nas dimensões pessoal, profissional e coletiva de forma processual e relacional (Carvalho, 2011, p. 79).

Para Cola (2014), as crianças se manifestam em relação ao desenho espontaneamente, tendo como comportamento primordial o fazer arte livre de conceitos teóricos. O final do século XIX é considerado um marco do desenvolvimento da valorização da espontaneidade dos desenhos realizados pelas crianças. A partir do movimento modernista, houve valorização da arte infantil e concepção de arte baseada na expressão e na liberdade criadora.

Com a Pedagogia Nova, os professores de Arte passaram a trabalhar com diferentes métodos e atividades motivadoras de experiências artísticas, enfatizando os interesses e os temas individuais dos alunos (Cola, 2014). Esse processo permite compreender que dar ênfase à sensibilidade da criança auxilia no aprimoramento da forma como o aluno se relaciona com o mundo, tornando-o um indivíduo adaptado ao ambiente para compensar as frustrações advindas do processo civilizatório.

Com isso, o educador deve criar condições especiais e propícias para as crianças se expressarem. Os professores devem ir ao encontro do aluno com a sua sensibilidade e não com a sua ciência, pois a criança já possui em si o verdadeiro, o conhecimento a ser adquirido, sabendo que cada indivíduo possui determinada linha evolutiva, extremamente pessoal, singular e subjetiva, cabendo ao professor criar as condições para que a criança também possa aprender consigo mesma (Cola; 2014). Ou seja,

o professor deverá demonstrar, deverá deixar claro para o aluno que ele possui dentro de si o conhecimento necessário para uma perfeita expressão em artes. O professor jamais despertará no aluno ideias do que fazer. A ideia existe latente e sai de dentro do indivíduo (Cola, 2014, p. 25).

Para Santos e Batista (2017), o desenho é um incrível passaporte para o mundo da imaginação, da livre expressão e do autoconhecimento. É preciso entender como a escola utiliza o desenho no ensino infantil e como são aplicadas as atividades sobre o desenho na infância. O brincar também auxilia o desenho em seu próprio entorno, visto que é um processo que ocorre de forma prazerosa ao proporcionar aprendizagens em cada traço elaborado. Portanto, desenhar é uma necessidade tanto pelo aspecto da comunicação quanto pelo prazer proporcionado por essa atividade. Porém, muitas vezes, o desenho não é visto como atividade importante na escola, o que acaba desvalorizando e limitando o seu espaço como atividade fundamental para o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança. Na prática, os professores desconhecem o modo de ser da criança, ou seja, como ela é, como sujeito que vive num momento em que predomina o sonho, a fantasia, a afetividade, a brincadeira e as manifestações de caráter subjetivo (Santos; Batista, 2017).

Portanto, o desenho infantil para a criança representa a reconstrução do seu universo a ser interpretado, visto que ele revela grande desenvolvimento intelectual, social, emocional e perceptivo. Compreende-se, pois, que quanto mais a criança desenha mais ela formula suas ideias, porque expressa seus sentimentos por meio de riscos e rabiscos, disponibilizando o desenho para brincar, registrar e marcar o desenvolvimento da sua infância (Santos; Batista, 2017).

Com as garatujas, a criança começa a sentir prazer pelos desenhos que aos poucos são criados, constatando o efeito visual de sua ação. Nesses termos, as garatujas deixam de ser movimentos de ir e vir, tornando-se assim movimentos mais ordenados de criação e recriação do desenho pelo qual a criança expressa sentimentos e pensamentos (Santos; Batista, 2017).

Segundo Derdik (1989, p. 51), “nem toda criança gosta necessariamente de desenhar; algumas preferirão outras atividades para se expressar, como pintar, cantar, contar histórias, dançar, construir, representar”. Porém, o ato criativo estará sempre presente quando elas envolvem o grande potencial operacional da imaginação. Não importa a forma que a criança escolha para se expressar, o ato criativo sempre estará presente. Por isso, o que importa para os docentes é potencializá-lo nas práticas educativas, concedendo possibilidades para as crianças fazerem os seus mundos via atos criativos.

Para Derdik (1989, p. 55), o corpo todo da criança se expressa, expandindo-se, recolhendo-se. “O movimento corporal acontece e se esvai no ar; mas a linha, o ponto, a mancha, ficam ali grudados misteriosamente no papel”. É comum observarmos crianças virando a folha de papel, passando a mão para se certificarem do que realmente aconteceu, se suas marcas não desgrudaram.

Segundo Sans (2001, p.14), “a criatividade está para o homem como o ar está para a natureza”. Esse autor sugere que a criatividade seja incluída no ensino, pois ela irá refletir num povo mais criativo, que resultará em novas opções e soluções em todas as situações da vida. É muito importante estimular a criança de forma que ela faça experimentações, que crie sem medo do certo ou errado. Para Sans (2001), a criatividade faz parte da pessoa, não se pode medir nem ensinar, mas existem meios de estimulá-la, fazendo com que o ser humano a explore e se torne mais criativo e mais livre.

Podemos dizer, nesse sentido, que os desenhos estão presentes no cotidiano da vida infantil.

Ao rabiscar e desenhar no chão, na areia e nos muros, ao utilizar materiais encontrados ao acaso (gravetos, pedras, carvão), ao pintar os objetos e até mesmo seu próprio corpo, a criança pode utilizar-se das Artes Visuais para expressar experiências sensíveis (Brasil, 1998, p. 85).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) preconiza que na Educação Infantil as crianças têm direitos de aprendizagem e desenvolvimento, tais como: conviver, brincar, participar, explorar, expressar, conhecer-se. Na verdade, as crianças precisam

explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores, palavras, emoções, transformações, relacionamentos, histórias, objetos, elementos da natureza, na escola e fora dela, ampliando seus saberes sobre cultura, em suas diversas modalidades: as artes, a escrita, a ciência e a tecnologia (Brasil, 2017, p. 38).

Para Moura (2012, p. 76), “as artes, como linguagens, são expressão de conhecimentos sociais e culturais que possibilitam às crianças exercer seu potencial imaginativo e criativo. [...] Para elas, arte e vida são realmente a mesma coisa”.  As linguagens na Educação Infantil não devem ser fragmentadas, isoladas e desconexas, ou seja, deve-se proporcionar espaço para ampliar os processos criativos das crianças.

Freire (2017, p. 25) considera que as pessoas são marcadas pela consciência e, por isso, pela “capacidade de pensar, criar, inventar, imaginar, sonhar, projetar, viver o presente, construir o futuro”. Nessa ótica, os seres humanos são criadores por natureza, está no nosso “ser”.

Assim, buscamos dialogar com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) em relação à concepção de criança e às possibilidades de aprender e ensinar na Educação Infantil, considerando-as como

sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (Brasil, 2010, p. 12).

Nessa perspectiva, o desenho reflete os sentimentos, a capacidade intelectual, o desenvolvimento físico, a percepção, a experiência de cada indivíduo, o desenvolvimento criador, o gosto estético e a evolução social e cultural de cada criança como indivíduo na sociedade.

A Arte na Educação Infantil é ao mesmo tempo algo extraordinário, fantástico e fascinante, não é? Caixas de leite viram castelos. Podemos ser o que quisermos: príncipes, princesas, super-heróis com superpoderes, indígenas que protegem a natureza e muitas outras coisas que a imaginação permitir. Na maior parte do tempo, tudo é festa e alegria. Nas pequenas descobertas, as mínimas coisas se tornam um mundo de aprendizados, experiências e sensações que farão parte da constituição de sujeitos éticos e estéticos. De acordo com Paraíso (2015, p. 50),

assim, seja a diferença entendida como prática produzida e produtora de discursos, de sentidos e de sujeitos; ou como marcas culturais que unem e separam pessoas, territórios, culturas; ou como significados que produzimos e adotamos e que nos fazem ser e viver de determinados modos; ou como processo que divide, demarca, separa, ou, ainda e por fim, como fluxo e motor da vida que move, jorra forças e possibilita entrar em devires, é a diferença que estamos conceituando; é ela que estamos perseguindo; é dela que estamos falando.

Dessa forma, é importante que os professores tenham um olhar atento às produções infantis e para a inventividade das crianças, pois as atividades inventivas surgem constantemente e demonstram que habitar no território com as crianças é colher muitos acontecimentos duradouros, o que provoca produções de sentidos.

Considerações finais

Com o passar do tempo, a criança vai deixando registrado, por meio de seus desenhos, pinturas e tantos outros tipos de arte que são experimentados na Educação Infantil, seus aprendizados, suas experiências e suas vivências. Para que isso ocorra, deve-se sempre estabelecer relações de confiança e respeito para impulsionar a criatividade das crianças, estimular o raciocínio e as percepções sensoriais de seu desenvolvimento, autoestima, confiança em si mesma e, assim, superar os seus medos.

O cotidiano da Educação Infantil está permeado de situações que podem despertar a criança tanto para o desenho quanto para outras linguagens. Em geral, esse despertar acontece num estalar de dedos, e nos desenhos podemos ser tudo que quisermos ser: princesas, super-heróis, e podemos nos transportar para lugares que só a imaginação pode criar.

Portanto, a criatividade infantil constitui essas modificações constantes, pois, no mesmo suporte ou em suportes diferentes, a criança sempre estará em um permanente ir e vir de descobertas e de reorganização. Desenho sobre desenho, cor sobre cor, traços sobre traços vão se constituindo e fazendo fluir as aprendizagens e descobertas do cotidiano escolar.

Cada sujeito tem suas limitações, frustrações, medos, inseguranças e potências. É preciso conhecer para potencializar e fazer vir à tona saberes e aprendizagens que vão se constituindo nos momentos de interaçõesexperimentações. Esses momentos fazem parte da Educação Infantil e com base nas diferenças podem gerar potências via afetos, conversações e enunciações, indo além das prescrições curriculares.

Referências

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Publicado em 10 de setembro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

SUBTIL, Rayra Sarmento Ferreira; GOUVEIA, Claudineia Rossini; GOMES, Larissa Ferreira Rodrigues. "Professora eu fiz o mundo": cartografia e criação infantil no currículo da educação infantil. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 33, 10 de setembro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/33/professora-eu-fiz-o-mundo-cartografia-e-criacao-infantil-no-curriculo-da-educacao-infantil

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