Reflexões sobre as relações étnico-raciais na Educação Infantil: uma perspectiva a partir da Literatura Infantil

Flávio Penteado de Souza

Mestre em Antropologia Social (UFMS), especialista em Relações Étnico-raciais: políticas públicas, diversidade e sociedade (Unemat), graduado em Pedagogia (Unemat), membro do Núcleo de Estudos sobre Africanidades, Diáspora e População Negra (Unemat - Sinop), professor da rede municipal de Sinop/MT

Na Educação Infantil, as crianças estão no início de seu processo de formação na Educação Básica, e a escola da infância precisa pensar e efetivamente propiciar vivências que promovam a inclusão de crianças pretas, indígenas, com deficiência, dentre outras. De acordo com Matos, Sousa e Araújo (2022, p. 83), a escola que “se pensa democrática, inclusiva e livre de discriminação e preconceito de qualquer natureza precisa estar atenta às diferentes presenças que interagem em seu espaço”. Na escola existe uma infinidade de identidades, crianças com culturas, preferências e aprendizagens diferenciadas.

Nesse sentido, compreendemos que a escola de Educação Infantil deve ser um ambiente que oportunize o protagonismo das crianças pretas, valorizando sua identidade, seus traços, cabelos e cultura. Corroborando Silva (2023, p. 3), “cabe a essas instituições respeitar, acolher e valorizar as diferenças, nas quais não se permitam ações que reforcem preconceitos e estereótipos”. A escola, antes de tudo, precisa ser um espaço de acolhimento seguro para que a criança se sinta protagonista de sua aprendizagem de forma plena.

Por mais que a Lei nº 10.639/03 trate da obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na escola, ainda são poucas as ações realizadas efetivamente (Brasil, 2003). É preciso que os professores assumam a implementação da lei como determinação política e pedagógica e não preferência ideológica de ensino. Para que isso ocorra, é necessário que durante todo o ano letivo os professores desenvolvam práticas pedagógicas que envolvam a temática, desde brincadeiras até a musicalização.

A Literatura é uma fonte de conhecimento que tem como uma das funções o papel de exercer uma prática “transformadora e humanizadora, ampliando a capacidade de aceitação do ser humano diante de seu semelhante, estimulando-o para a reflexão” (Betti, 2019, p. 4). Contudo, é preciso que sejam apresentadas literaturas que explorem de forma positiva a identidade das crianças pretas e não reforcem padrões de preconceito e racismo.

Diante disso, ao refletir sobre a necessidade de inclusão da temática étnico-racial na escola e tomando a Literatura Afro-Brasileira como ferramenta de ensino, lançamos os seguintes questionamentos motivadores: como as pessoas pretas têm sido representadas nas produções literárias para as infâncias? Quais personagens pretos são protagonistas das histórias? Quais livros de temática étnico-racial estão presentes nas bibliotecas das instituições de Educação Infantil?

Este artigo foi pensado no sentido de responder a essas indagações, propondo reflexões sobre obras literárias afro-brasileiras para crianças que tragam narrativas que tratam de enredos e vivências pretas, em que as crianças se sintam representadas e as tenham como referência educativa antirracista.

A Literatura Afro-Brasileira e as práticas inclusivas na escola

A Literatura Afro-Brasileira é caracterizada como um subgênero literário de histórias que são produzidas sobre enredos com personagens e vivências pretos(as) no cenário brasileiro e/ou produzido por pessoas que se identificam como descendentes africanos. Para contribuir com essa ideia, Lobo (2007, p. 135) define a Literatura Afro-Brasileira como

produção literária de afrodescendentes que se assumem ideologicamente como tal, utilizando um sujeito de enunciação próprio. Portanto, ela se distinguiria, de imediato, da produção literária de autores brancos a respeito do negro, seja enquanto objeto, seja enquanto tema ou personagem estereotipado (folclore, exotismo, regionalismo).

No cenário brasileiro contemporâneo, as Literaturas Afro-Brasileiras Infantis vêm ganhando destaque por meio de produções de autores e autoras pretos(as). Alguns exemplos que podemos citar são: Bia Hetzel, Emicida, Lucimar Dias da Rosa, Madu Costa, Nilma Lino Gomes, Patrícia Santana, Rodrigo França e Sueli Ferreira de Oliveira. Esses(as) autores( as) produzem histórias voltadas ao imaginário infantil e têm como semelhança a finalidade de criar narrativas que propiciam a educação da diversidade para as infâncias.

Essas obras infantis então a corroborar o que está expresso: “O reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação” (Brasil, 2010, p. 21). Para Silva (2023, p. 12), essas obras apresentam características específicas:

o aspecto gráfico do livro, formato, tipo de letra, textura do papel, ilustração etc. A ilustração tem papel central, visto ser ela uma linguagem criativa que propicia fruição estética e inúmeras experiências aos(às) leitores(as), não se constituindo tão somente como reprodução do texto verbal.

As obras literárias afro-brasileiras para as infâncias precisam seguir um rigor de conteúdo, pois nem sempre uma história que trata de personagens pretos tem um viés antirracista ou apresenta uma visão positiva da pertença ética. Diante disso, os professores, antes de levar as obras para a sala de aula, precisam fazer uma análise crítica aprofundada sobre a forma como são construídas as narrativas e o que representam os símbolos e as imagéticas das ilustrações. Silva e Alcaraz (2021, p. 130) contribuem com a questão da importância de apresentar obras de fato com perspectiva antirracista na escola:

Os discursos literários que operam em chave antirracista, que afirmam e difundem africanidades, que trazem em suas narrativas, ilustrações, personagens principais, narradoras(es), temas ou contextos, de forma conjugada ou não, mas que operam para a valorização da negritude e dialogam com práticas de letramento de educação das relações étnico-raciais, têm potencial de letramento literário crítico racial, de operar numa educação que promova em crianças negras e crianças brancas, assim como em crianças indígenas e crianças “amarelas”, o respeito ao outro, a concepção de relações não hierarquizadas, a igualdade étnico-racial.

A seleção e a análise das obras são fatores essenciais para a oferta de literaturas infantis que promovam a construção de saberes afrocentrados, pois existem obras que reforçam estereótipos marginalizados, padrões preconceituosos e/ou colocam o povo preto em posição de escravo (Teixeira, 2023). Obras que apresentam uma visão da África como miserável, visão ainda disseminada por alguns estudiosos.

Para Gomes (2022, p. 20), em sua dissertação de mestrado O ensino de História da África através da literatura moçambicana de Ungulani Ba Ka Khosa, a presença do negro, da África e dos povos africanos é inferiorizada e “historicamente submissa” nos livros que são utilizados nas escolas, além de trazer uma visão parcial sobre os saberes e os conhecimentos sociais, políticos e científicos dos povos africanos.

Um dos exemplos é o livro infantil Peppa, de Silvana Rando, publicado em 2009 pela editora Brinque-Book. O livro conta a história de Peppa, uma menina que sofre por ter cabelo crespo, que, por vezes, é tido como “carapinha”. Na história, o cabelo é relacionado a algo de que Peppa quer se livrar, associado à palha de aço. Além disso é um cabelo “duro”, nada pode cortá-lo. Ao longo da história, a personagem busca formas de tornar seu cabelo macio:

Figura 1: Ilustração do livro Peppa

O livro reforça um padrão fenotípico eurocêntrico, em que todos precisam ter cabelo liso, como visto em propagandas de televisão, distanciando-se das características do cabelo das pessoas pretas. A história mostra que quem tem cabelo liso é feliz e quem tem cabelo crespo não tem um cabelo bonito.

Com base nessa obra, surgem alguns questionamentos que nos inquietam: qual menina quer ser a Peppa, que tem o cabelo duro, tido como ruim? Qual o papel do(a) negro(a) na Literatura? Como são representadas as personagens negras na Literatura?

Questionamentos como esses são latentes, diante da realidade observada em algumas escolas. Eles nos ajudam a refletir sobre a escolha das obras, suas formas de apresentação e a intencionalidade de seus usos.

Levar a história e a cultura africana e afro-brasileira para a escola através da Literatura Infantil é mais do que fazer cumprir a lei, é tornar conhecida uma história que tradicionalmente foi negada, mas que nem por isso deixou de existir em espaços específicos de resistência: quilombos, senzalas, terreiros etc. Como a Literatura tem uma linguagem ampla e interfere diretamente na imaginação, a Literatura Infantil é um canal importante e indispensável para se conectar ao imaginário infantil e, assim, contribuir para a compreensão de si mesmo e do mundo (Rufino, 2010, p. 22).

As obras literárias precisam apresentar pessoas pretas como protagonistas de suas histórias e como produtoras de conhecimento. Obras que mostrem a realidade vivenciada pela população preta e que contem suas histórias, mas não com uma ideologia de opressão, reforçando ideários de inferioridade. Ao mesmo tempo, essas histórias precisam fazer com que os estudantes se reconheçam, que olhem para as personagens e se vejam como reis e rainhas, para além dos ditos “clássicos da literatura” que retratam ‘personas’ europeias (Souza et al., 2023).

Apresentamos, a partir do Quadro 1, quatro exemplos de títulos de obras antirracistas voltadas à infância com protagonistas pretos e pretas:

Quadro 1: Obras literárias antirracistas

Título/Livro/Obra

Autor(a)

Editora/Ano

Resumo

Amoras

Emicida

Companhia das Letrinhas, 2018

A obra apresenta uma história de representatividade e identificação de uma menina enquanto pretinha. A obra é escrita de forma rimada, trazendo o contexto de ensinamento e ancestralidade que também é presente nas músicas do autor.

Cada um com seu jeito, cada jeito é de um!

Lucimar Rosa Dias

Alvorada, 2012

O livro fala da relação de uma menina com seu cabelo e os saberes que são ensinados por sua família. O texto é construído a partir da premissa de que cada um tem seu jeito e isso nos torna únicos.

Berimbau mandou te chamar

Bia Hetzel

Manati, 2008

Este livro é um convite para as crianças conhecerem a história do surgimento e da difusão da capoeira como luta e esporte afro-brasileiro. A obra é contada em forma de versos e cantigas de capoeira.

Essas três obras reforçam o protagonismo de personagens pretos e pretas inseridas em um contexto que tem muito a contar de suas identidades, culturas e ancestralidades. Os livros foram pensados para o público infantil e trazem linguagem e imagens que fazem com que as crianças se encantem com as suas narrativas (orais e visuais).

As obras de Emicida e Lucimar Rosa Dias se assemelham ao trazer como protagonistas meninas pretas, falando da valorização do cabelo e da importância de compreender que cada um tem o cabelo de uma forma e que ele é símbolo da ancestralidade, carregando uma história. Diante disso, os dois livros vão contra a visão de alisamento do cabelo, reforçando a concepção de que existem diversos tipos de cabelos, com tons, formatos e texturas, e todos são belos.

A obra de Bia Hetzel, por sua vez, tem uma personagem principal e aborda o protagonismo da cultura ancestral: a capoeira. Ela entra como potencializadora de saberes que envolvem a música, o ritmo e a luta, carregando uma história que precisa ser conhecida. A autora também chama a atenção para os ritmos afro-brasileiros e o toque do berimbau, “instrumento musical utilizado na capoeira composto por uma verga de biriba, uma corda de arame, uma cabaça, uma baqueta e um dobra. Muitas vezes também é acompanhado por um caxixi” (Palhares, 2018).

Os três livros apresentados podem ser considerados literaturas afro-brasileiras antirracistas, pois se inserem na pauta étnico-racial por meio da perspectiva de autoras pretas, propiciando um cenário “válido para a construção desse ensino, uma vez que, os próprios sujeitos estão inseridos nesse processo educacional e a Literatura configura-se como um dos mecanismos de mudança (Bassete; Santana; Batista, 2023, p. 218).

Considerações finais

A Literatura Infantil Afro-Brasileira se mostra como importante fonte de conhecimentos e saberes sobre a história e a cultura da população preta e um potente marco na valorização das produções literárias de autores(as) pretos(as). Ao mesmo tempo, se apresenta como proposta plural e artística de implementar o que diz a respeito a Lei nº 10.639/03.

No cenário das infâncias, a discussão da temática afro-brasileira é a base para a construção da identidade das crianças pretas, a fim de que cresçam compreendendo que sua cor e seu cabelo são símbolos de ancestralidade. Ao oferecer obras infantis afro-brasileiras nas aulas, os professores das instituições de Educação Infantil estão reconhecendo seu papel como formadores antirracistas e da diversidade.

Referências

BASSETE, C. S.; SANTANA, M. F.; BATISTA, M. S. Leitura literária como recurso pedagógico no processo de ensino aprendizagem de educação antirracista. Revista Inventário, Salvador, v. 32, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/inventario/article/view/56148.

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GOMES, Gilmara Oliveira. O ensino de História da África através da literatura moçambicana de Ungulani Ba Ka Khosa. Dissertação (Mestrado Profissional em História) – Universidade do Estado de Mato Grosso, Cáceres, 2022. Disponível em: https://sigaa.unemat.br/sigaa/public/programa/ defesas.jsf?lc=pt_BR&id=614. Acesso em: 12 jul. 2024.

LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

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PALHARES, Leandro Ribeiro. O berimbau ensina! O segredo de São Cosme quem sabe é São Damião, Camará. Tese (Doutorado) – Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017. Disponível em: http://www.eeffto.ufmg.br/eeffto/pos_graduacao/estudos_do_lazer_mestrado__doutorado/defesa/543/. Acesso em: 30 nov. 2023.

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Publicado em 10 de setembro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

SOUZA, Flávio Penteado de. Reflexões sobre as relações étnico-raciais na Educação Infantil: uma perspectiva a partir da Literatura Infantil. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 33, 10 de setembro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/33/reflexoes-sobre-as-relacoes-etnico-raciais-na-educacao-infantil-uma-perspectiva-a-partir-da-literatura-infantil

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