Como o ensino de Ciências pode ser um aliado da educação antirracista - um guia para educadores a partir do episódio "Para onde foi minha poça?", do desenho "Bino e Fino"
Ernanni Marcolino Fragoso
Graduando de Pedagogia (UEMG)
Maria Luíza Alves Martins
Graduanda de Pedagogia (UEMG)
Paula Lorrane Rodrigues da Silva
Graduanda de Pedagogia (UEMG)
Ronivon Caldeira da Silva
Graduando de Pedagogia (UEMG)
Marcelo Diniz Monteiro de Barros
Professor do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino FaE/UEMG, bolsista de Produtividade em Pesquisa da UEMG, professor do Departamento de Ciências Biológicas da PUC-Minas
Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022 a população negra do país representava 56,1%, e, consequentemente, as escolas públicas são majoritariamente compostas por educandos negros. O racismo é estrutural, pois é um elemento fundante da formação social brasileira e se mantém a partir da manutenção das instituições. A educação é um direito básico constitucional e é apontada como a mais importante ferramenta para enfrentar a desigualdade racial no Brasil.
A partir da Lei nº 10.639 (promulgada em 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e dá outras providências) e da Lei nº 11.645 (promulgada em 10 de março de 2008, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena"), ressalta-se a importância da contribuição escolar no letramento racial da sociedade desde a infância, perpassando por pontos como afirmação e construção de identidade, historicidade e representatividade. Para isso, é necessário qualificar a formação de educadores para que metodologias e práticas educativas apropriadas para cada fase de ensino sejam desenvolvidas.
Nesse sentido, buscamos apresentar uma contribuição sobre como aliar o ensino de Ciências ao letramento racial de forma lúdica e adequada para crianças do Ensino Fundamental. Apresentamos o desenho Bino e Fino, especificamente o episódio "Para onde foi minha poça?". Bino e Fino são duas crianças que vivem com sua família na capital da Nigéria. A cada episódio, elas descobrem mais sobre a África e o mundo. O desenho já contribui para mostrar uma realidade diferente dos estereótipos difundidos sobre países africanos, situando-se em uma cidade específica e em um país específico, sem referir-se ao continente africano de maneira genérica.
Entendemos que o episódio do desenho pode ser utilizado para contribuir para o entendimento do ciclo hidrológico proposto pela BNCC, em fundamentos como:
(EF05CI02) Aplicar os conhecimentos sobre as mudanças de estado físico da água para explicar o ciclo hidrológico e analisar suas implicações na agricultura, no clima, na geração de energia elétrica, no provimento de água potável e no equilíbrio dos ecossistemas regionais (ou locais).
(EF05CI04) Identificar os principais usos da água e de outros materiais nas atividades cotidianas para discutir e propor formas sustentáveis de utilização desses recursos (Brasil, 2018, p. 341).
No episódio em questão, o casal de irmãos se depara com uma poça de água ao ir para a escola e, ao voltarem para casa, não a encontram mais. Começam, então, a se questionar por que a poça não está mais ali. A dúvida gerada a partir de uma situação cotidiana é didática para quem assiste, pois a pergunta é o primeiro ato de uma pesquisa. Com o desenvolvimento do episódio, os demais personagens e a própria imaginação de Bino e Fino vão resolvendo o mistério e, assim, eles conhecem o ciclo da água. É uma maneira diferente de aprender sobre o ciclo hidrológico, para além de uma simples explicação do professor, permitindo um desdobramento prático que torna o conteúdo ainda mais interessante para a criança.
Sinopse
Bino e Fino é um encantador desenho animado nigeriano que segue as aventuras de um par de irmãos curiosos, Bino e Fino, enquanto exploram o mundo ao seu redor. O desenho animado destaca aspectos da cultura africana, história, ciências e geografia, oferecendo educação e diversão para crianças. Juntamente com sua mãe e amigos, Bino e Fino embarcam em jornadas emocionantes, aprendendo sobre temas variados, desde a história dos impérios africanos até os segredos da natureza. A série destaca a importância da educação, da amizade e do respeito à diversidade, promovendo valores essenciais para o crescimento e a compreensão global. Com uma combinação cativante de narrativa envolvente e mensagens educacionais, Bino e Fino é um convite para descobrir e celebrar a rica herança cultural africana.
Público-alvo
Este guia foi desenvolvido para apresentar uma possibilidade de trabalhar, de maneira interdisciplinar, as relações étnico-raciais, sobretudo associadas ao ensino de Ciências, direcionado ao ciclo hidrológico, à importância e à preservação da água.
A importância dos recursos lúdicos na educação
Um dos grandes desafios da educação formal é desenvolver o processo de ensino-aprendizagem de forma atrativa para o educando. Uma das estratégias pedagógicas para alcançar tal objetivo é, sem dúvida, a utilização da ludicidade (do latim ludus, que significa brincar). Nesse sentido, é importante ressaltar que o lúdico não se limita ao ato de brincar, como sugere sua origem. Vai além: é tornar algo divertido, fazer não por obrigação, mas por gosto. Tendo isso em mente, cabe ao educador considerar também a satisfação de seus alunos ao preparar uma aula.
A ludicidade é uma necessidade do ser humano em qualquer idade e não pode ser vista apenas como diversão. O desenvolvimento do aspecto lúdico facilita a aprendizagem, o desenvolvimento pessoal, social e cultural, colaboram para uma boa saúde mental, prepara para um estado interior fértil, facilita os processos de socialização, comunicação, expressão e construção do conhecimento (Almeida, 2009).
Pensando em recursos paradidáticos, o audiovisual, por exemplo, apresentado neste guia através da animação “Bino e Fino”, pode ser entendido como um instrumento educativo e, ao mesmo tempo, mais atrativo para os processos de ensino e aprendizagem de Ciências. O presente trabalho tem como objetivo evidenciar novas formas de propor conteúdos escolares, utilizando as tecnologias digitais de maneira transformadora.
A prática associada ao desenho
O desenho Bino e Fino, produzido em 2012, foi distribuído para diversos países, incluindo África do Sul, Reino Unido e Brasil. Em 2021, foi transmitido pelo canal Futura (atualmente fora do quadro da programação), com dublagem em português. A classificação da produção é livre, sendo para todas as idades.
O episódio do desenho em estudo, “Para onde foi minha poça?”, foi disponibilizado no YouTube em 7 de fevereiro de 2022, com 10 minutos e 58 segundos de duração. Narra a história de dois irmãos nigerianos que, após uma noite chuvosa, encontram, na manhã ensolarada, uma poça de água no quintal de sua casa. Entretanto, ao tentarem brincar com a poça, são interpelados pela mãe acerca do horário em que se iniciariam as aulas. Ao retornarem da escola, Bino e Fino se aborrecem por não encontrarem a poça; contudo, com a ajuda de sua amiga borboleta mágica, Zeena, os irmãos vão em busca de informações para descobrir como a poça secou. Zeena explica todo o processo, chamando-o de “ciclo da água”, ou seja, o ciclo hidrológico. Com isso, entende-se que
o ciclo hidrológico se constitui de uma sucessão de vários processos na natureza pelos quais a água inicia o seu caminho indo de um estágio inicial até retornar a posição primitiva. Este fenômeno global de circulação fechada da água entre a superfície terrestre e a atmosfera é impulsionado fundamentalmente pela energia radiante e associado à gravidade e à rotação terrestre (Miranda; Oliveira; Silva, 2010).
Figura 1: Para onde foi minha poça?
Fonte: Desenho Bino e Fino, 2012.
Em continuidade a suas muitas descobertas, em relação ao tempo do vídeo, Bino e Fino, a partir de 4’40”, ouvem atentamente as explicações de sua amiga sobre os três estados da água em seu ciclo. Com a ajuda de um gelo, Zeena, em 5’05”, fala sobre o estado sólido; quando o sol derrete a pedra de gelo, às 5’30”, relata o estado líquido e, finalmente, em 6’00”, descreve a evaporação, caracterizando o estado gasoso. O(a) professor(a) pode realizar o mesmo mecanismo para explicar aos seus estudantes o processo do ciclo hidrológico.
A partir de 6’00”, as personagens viajam até o Rio Nilo, no Egito, para descobrir mais sobre a água. Assim, para além do conteúdo exclusivamente de Ciências, o(a) docente também pode relacionar o desenho com o espaço geográfico do continente africano.
Figura 2: O continente africano
Fonte: Desenho Bino e Fino, 2012.
Em 7’08”, Zeena inicia sua explicação, usando o Rio Nilo como exemplo, de como se dá a evaporação e, com o auxílio de “óculos especiais”, os meninos visualizam como ocorre o processo de evaporação da água. Já em 8’40”, a viagem explicativa prossegue com o processo de condensação, descrevendo a formação das nuvens. Em 8’59”, a chuva cai e a borboleta mágica explica a precipitação. No minuto 9’30”, descobrem a última fase do ciclo, a coleta (para os irmãos, as poças). Assim, as crianças compreendem as fases do ciclo da água e as exemplificam, respectivamente, no desenho:
Figura 3: Evaporação
Fonte: Desenho Bino e Fino, 2012
Figura 4: Condensação
Fonte: Desenho Bino e Fino, 2012.
Figura 5: Precipitação
Fonte: Desenho Bino e Fino, 2012.
Figura 6: Coleta
Fonte: Desenho Bino e Fino, 2012.
A questão da representatividade
As representações midiáticas têm papel fundamental no combate ao racismo, uma vez que, por meio delas, estereótipos sobre a negritude são difundidos. Como afirma Gonzalez (2020, p. 253),
para além do sistema educacional, constatamos que a chamada educação informal é mais terrível ainda. É aquela que passa pelos meios de comunicação de massa e que repassa uma imagem distorcida do negro, uma imagem inferiorizada e que, efetivamente, se reflete nas nossas crianças pela internalização de uma inferioridade, inferioridade esta que é interiorizada através dos meios de comunicação e através do que se aprende na escola e, inclusive, no seio da família porque a família negra não está alijada da sociedade. Quer dizer, são anos e anos de repetição contínua da famosa ideologia do branqueamento, que se articula com a ideologia e o comício da democracia racial.
Cabe ressaltar que, de acordo com o Ministério da Educação (MEC), os processos de ensino e aprendizagem devem, também, oportunizar a formação individual, social e psicológica dos sujeitos. Dessa forma, evidenciamos a importância da participação e da representatividade a partir de personagens, atores, autores, heroínas e heróis negros e negras para a construção, afirmação, valorização e identificação das subjetividades identitárias e estereótipos negroides do ser em formação. Assim,
a forma como esse “eu” se constrói está intimamente relacionada com a maneira como é visto e nomeado pelo “outro”. E nem sempre essa imagem social corresponde à minha autoimagem e vice-versa (Gomes, 2019, p. 28).
No desenho animado Bino e Fino, nota-se a diferença na representação da negritude, que foge dos estereótipos mais propagados, como os de inferioridade intelectual ou biológica, pobreza e alívio cômico. A animação, ambientada na Nigéria, com os personagens principais Bino e Fino (ambas crianças), traz uma abordagem extremamente positiva da infância de crianças negras, que são altamente curiosas, inteligentes e alegres.
Assim, é essencial entender o papel da mídia na construção do imaginário social, para além de combater suas representações discriminatórias. Ainda, com a produção deste modesto guia, pretende-se valorizar e construir produções que afirmem a diversidade étnica e cultural.
Considerações finais
Verificamos que a animação é repleta de costumes, vivências e historicidade acerca da África, o que permite aos docentes promoverem um ensino social e antirracista com o conteúdo abordado por este guia e para vários outros conteúdos e disciplinas escolares. Espera-se que este guia possa nortear educadores e educadoras para que sejam capazes de ministrar suas aulas sobre o ciclo hidrológico a partir do desenho Bino e Fino, não apenas como uma referência visual didática, mas também como representativa. Que busquem, também, produções com a grandiosidade de Adamu Waziri, criador do desenho animado, que retrata a África com todo o respeito e as verdades que a cercam.
Referências
ALMEIDA, Anne. Ludicidade como instrumento pedagógico. Itinerarius Reflectionis, 2009.
BINO & FINO. Direção: Adamu Waziri. Abuja: EVCL Studios, 2012.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm. Acesso em: 12 set. 2023.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, incluindo no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena". Diário Oficial da União, Brasília, 11 mar. 2008. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 12 set. 2023.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 12 set. 2023.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Pesquisas por Amostra de Domicílios. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro, 2021.
MIRANDA, Ricardo Augusto Calheiro; OLIVEIRA, Marcus Vinícius Siqueira; SILVA, Danielle Ferreira. Ciclo hidrológico planetário: abordagens e conceitos. Geo UERJ, Rio de Janeiro, v. 1, nº 21, p. 109-119, 2010. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/geouerj/article/view/1461. Acesso em: 14 dez. 2022.
Publicado em 24 de setembro de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
FRAGOSO, Ernanni Marcolino; MARTINS, Maria Luíza Alves; SILVA, Paula Lorrane Rodrigues da; SILVA, Ronivon Caldeira da; BARROS, Marcelo Diniz Monteiro. Como o ensino de Ciências pode ser um aliado da educação antirracista - um guia para educadores a partir do episódio "Para onde foi minha poça?", do desenho "Bino e Fino". Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 25, 24 de setembro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/35/como-o-ensino-de-ciencias-pode-ser-um-aliado-da-educacao-antirracista-um-guia-para-educadores-a-partir-do-episodio-para-onde-foi-minha-poca-do-desenho-bino-e-fino
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