Microscopia: um estudo sobre transposição didática
Gabriela Ribeiro Borges
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular (PUC-RS)
Gabriel do Nascimento Soares
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular (PUC-RS)
O conceito de transposição didática foi inicialmente proposto pelo sociólogo Michel Verret, em 1975. Posteriormente, em 1982, Chevallard e Marie-Alberte Johsua resgataram e difundiram esse conceito, aplicando-o na área de ensino de Ciências e Matemática (Alves Filho, 2001).
Para esse autor, a transposição didática refere-se ao processo pelo qual “um conteúdo do saber, designado como saber a ensinar, sofre um conjunto de transformações adaptativas que o tornam apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O trabalho que transforma um objeto do saber a ensinar em um objeto de ensino é denominado transposição didática” (Chevallard, 1991, p. 39). Essas transformações entre os saberes são interligadas e fundamentais no contexto escolar, onde o saber sábio, produzido por cientistas, é adaptado nos livros didáticos (saber a ensinar) e, posteriormente, transmitido nas salas de aula (saber ensinado) (Polidoro; Stigar, 2010).
Antes da invenção do microscópio, os primeiros biólogos investigavam tecidos por meio de cortes, tentando entender seu conteúdo. No entanto, suas observações eram limitadas pela incapacidade do olho humano de enxergar as estruturas intracelulares e extracelulares. Esses estudos rudimentares deram início à Biologia Celular. A invenção do microscópio, no século XVII, revolucionou o campo, possibilitando inúmeras descobertas no mundo celular ao longo dos séculos seguintes (Alberts; Bray; Johnson, 2017).
Diante disso, o presente trabalho tem como objetivo analisar o conteúdo de microscopia em livros didáticos da Educação Básica (saber a ensinar), comparando-o com o conteúdo de um livro de Ensino Superior (saber sábio), buscando identificar possíveis distanciamentos entre esses saberes e avaliar a precisão das informações científicas apresentadas nos livros didáticos.
Metodologia
Com base na teoria da transposição didática proposta por Chevallard (1991), foram analisados quatro livros didáticos, conforme lista no Quadro 1.
Quadro 1: Livros didáticos analisados
Livros, autores, série, ano de publicação |
Códigos |
Télaris – Ciências. Fernando Gewandsznajder e Helena Pacca. 6º Ano. Ensino Fundamental. 2018. |
LD1 |
Araribá Mais Ciências. Maria Rosa Carnevalle. 6º Ano. Ensino Fundamental. 2018. |
LD2 |
Bio. Sônia Lopes; Sergio Rosso. Vol. 1. Ensino Médio. 2016. |
LD3 |
Biologia Hoje. Sérgio Linhares; Fernando Gewandsznajder e Helena Pacca. Vol. 1. Ensino Médio. 2016. |
LD4 |
Como fonte de saber sábio, utilizou-se o livro de Ensino Superior Fundamentos da Biologia Celular e Molecular – 4ª edição, de 2017 (Figura 1).
Figura 1: Livro de Ensino Superior utilizado como fonte de saber sábio
Fonte: Artmed, 2017.
Resultados e discussão
Os livros LD1 e LD2 são destinados ao Ensino Fundamental; sua linguagem é mais acessível, visando proporcionar entendimento didático e claro sobre a célula. Entretanto, ambos apresentam lacunas na explicação da microscopia eletrônica, focando-se apenas na microscopia óptica e sua importância no avanço científico. O LD1 oferece uma explicação mais detalhada e objetiva dos componentes do microscópio, enquanto o LD2 trata a microscopia apenas como um tópico histórico, sem aprofundar a compreensão dos alunos sobre o tema (Figura 2).
A
B
Figura 2: Em A, uma explicação do microscópio no LD1; em B, um tópico no LD2
Nos livros LD3 e LD4, voltados ao Ensino Médio, o conteúdo sobre microscopia é abordado de forma mais abrangente, incluindo a microscopia eletrônica em ambos os casos. No entanto, há diferenças consideráveis entre os dois livros quanto à clareza das explicações sobre os processos microscópicos, os tipos de microscópios e o funcionamento teórico, físico e químico. Ambos os livros apresentam a história da microscopia, mas o LD3 detalha os diferentes tipos de microscópios, como o biológico, o estereoscópio e o eletrônico (Figura 3).
Figura 3: Tipos de microscópios ilustrados no LD3
Em comparação, o LD4 aprofunda ainda mais o funcionamento dos microscópios óptico e eletrônico, fornecendo uma explicação muito mais detalhada e abrangente (Figura 4).
A
B
Figura 4: Páginas do LD4 - Em A, uma ilustração da microscopia eletrônica; em B, uma Ilustração da microscopia óptica
No que diz respeito às ilustrações, ao contrário do estudo de Soares et al. (2021), que apresentava grande variedade de imagens devido ao conteúdo sobre poríferas, este estudo identificou que as imagens em todos os livros analisados possuem alta qualidade e resolução, atendendo aos objetivos pedagógicos propostos. Entretanto, o LD2, por exemplo, não incluiu explicações suficientes sobre o funcionamento básico do microscópio óptico, limitando o aprendizado dos alunos do Ensino Fundamental.
Considerações finais
Este estudo proporcionou uma análise da qualidade e da adequação dos conteúdos sobre microscopia em livros didáticos voltados para diferentes níveis de ensino. Ao comparar os livros didáticos com o livro de saber sábio, foi possível observar que os livros destinados ao Ensino Médio apresentaram um alinhamento mais próximo ao saber sábio, refletindo uma abordagem mais completa e técnica sobre o tema.
Apesar dessa proximidade temática, cada autor abordou o conteúdo de maneira distinta, o que resultou em um enriquecimento dos aspectos discutidos, especialmente no que diz respeito à explicação técnica do microscópio e aos diferentes tipos de microscópios utilizados na indústria científica. Os livros voltados para o Ensino Fundamental demonstraram uma limitação significativa, ao focar predominantemente na microscopia óptica e negligenciar a microscopia eletrônica, o que pode comprometer a compreensão dos alunos sobre a importância da microscopia na Biologia Celular.
Em síntese, o trabalho evidenciou a importância da transposição didática na adaptação dos conteúdos científicos para diferentes contextos educacionais. As análises realizadas destacam tanto os avanços quanto as lacunas nos livros didáticos avaliados, apontando áreas onde melhorias são necessárias para garantir uma transmissão mais eficaz e abrangente do conhecimento sobre microscopia, contribuindo também para uma maior reflexão sobre a necessidade de ajustes na elaboração e na revisão de materiais didáticos.
Referências
ALBERTS, B.; BRAY, D.; JOHNSON, A. et al. Fundamentos da Biologia Celular: uma introdução à biologia molecular da célula. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2017.
ALVES FILHO, José de Pinho. Atividades experimentais: do método à prática construtivista. Florianópolis: UFSC, 2001. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/79015/161719.pdf. Acesso em: 01 abr. 2023.
CARNEVALLE, Maria Rosa. Araribá Mais Ciências. São Paulo: Moderna, 2018.
CHEVALLARD, Y. La transposición didáctica: del saber sabio al saber enseñado. Buenos Aires: Pensée Sauvage, 1991.
GEWANDSZNAJDER, Fernando; PACCA, Helena. Teláris Ciências. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2018.
GEWANDSZNAJDER, Fernando; PACCA, Helena. Biologia Hoje. São Paulo: Ática, 2016.
LOPES, Sônia; ROSSO, Sérgio. Bio. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
POLIDORO, Lurdes de Fátima; STIGAR, Robson. A transposição didática: a passagem do saber científico para o saber escolar. Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura, São Paulo, v. 27, p. 1-7, 2010. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2010/Ensino_religioso/transposicao_didatica.pdf. Acesso em: 01 abr. 2023.
SOARES, Gabriel do Nascimento et al. Transposição didática no ensino de Zoologia: uma análise do conteúdo “Filo Porifera”. 6ª ed. Curitiba: Atena, 2021.
Publicado em 08 de outubro de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
BORGES, Gabriela Ribeiro; SOARES, Gabriel do Nascimento. Microscopia: um estudo sobre transposição didática. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 37, 8 de outubro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/37/microscopia-um-estudo-sobre-transposicao-didatica
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