Pequenos Cazumbás, a brincadeira da cultura popular feita com, para e pela primeira infância: um relato de experiência
Suzanne Rocha Guimarães
Licenciada em Teatro (UFMA), professora de Teatro na Escola EduCare - Educação Infantil
Ponto de partida
O Cazumbá, ou Cazumba, é um personagem irreverente e brincalhão que se apresenta mascarado no Bumba meu boi de sotaque da Baixada. Trata-se de uma figura mística, que não é nem homem, nem mulher, nem animal, e está cercada de magias e responsabilidades com o boi. A partir da escolha desse personagem para a representação da turma do Maternal 2 na festa junina da escola, nasceu o projeto Pequenos Cazumbás, desenvolvido em minhas aulas de Teatro com crianças de 2 anos e 5 meses a 3 anos na escola EduCare, em São Luís do Maranhão.
Disposta a transformar essa prática em uma atividade de encantamento, tendo em vista que o teatro nos proporciona o percurso do jogo, da encenação e da brincadeira, este relato visa conhecer, valorizar e expandir as manifestações artísticas e culturais do nosso estado, contribuindo para a preservação da cultura popular brasileira. Comemorar as festas juninas vai além de um único dia culminando com o arraial na escola. Trata-se de uma jornada de aprendizagens que valorizam e representam a manifestação cultural do maranhão, integrando as vivências cotidianas com e para as crianças, estruturadas em cinco campos de experiências, conforme a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018).
Figura 1: Pequenos Cazumbás conhecendo Mestre Zé Olhinho do Bumbameuboi Unidos de Santa Fé
Procedimentos metodológicos
Nossa experiência se desenvolveu por meio de uma pesquisa de abordagem qualitativa, permitindo, inicialmente, a aproximação das crianças com a figura do Cazumbá, por meio de diálogos sobre o personagem, como uma história contada, ilustrada com fotografias, vídeos e a apresentação dos elementos que o compõem. O contexto de realização da vivência foi a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, abrindo caminhos para a ampliação de conhecimentos, estruturada na prática teatral contínua como processo criativo. “É somente vivenciando com seus corpos e ações que o fazer teatral potencializa-se, desenvolvendo aspectos fundamentais de criatividade, imaginação, oralidade e expressão corporal, trabalho em grupo e cooperação, noções estéticas, entre tantas outras” (Ferreira; Falkembach, 2012, p. 15).
Figura 2: Processo criativo: máscara e vestimenta feitas pelas famílias
Fonte: Hellen Mendonça, 2023.
Figura 3: Produção final: vestimenta e máscara Cazumbá
Fonte: Hellen Mendonça, 2023.
O processo de pertencimento e deslumbramento com o Cazumbá começou com a máscara, sendo essa a primeira aproximação. No início, alguns alunos se assustaram com a careta chamativa, mas, gradualmente, fui encontrando maneiras mais adequadas de conduzir o trabalho, aproximando-os das cores que o personagem carrega e da exploração dos gestos na brincadeira do fazer teatral. Vale destacar que as interações e brincadeiras são campos de experiências que compõem o currículo da Educação Infantil (Brasil, 2010, p. 25). Em seguida, expomos a toada "Guerreiro Valente", na voz do mestre Zé Olhinho, do Bumba meu Boi Unidos de Santa Fé, com um refrão lúdico que facilmente envolveu todos: "Ê tchun, ê tchan. Ê tchun, ê tchun, ê tchan. Eu vou até de manhã".
Em outro momento, passamos para o experimento do corpo, explorando os elementos da linguagem teatral e conectando-os com a sonoridade do badalo (chocalho), a máscara (também chamada de “careta”), a vestimenta (uma bata) e a dança, que se transforma em uma brincadeira no espaço de jogo. A coreografia, que vai performando giros, o "bumbum" que balança, típico da sua dança em sincronia com o badalo, ganha movimentos livres, conduzidos pela alegria dos pequenos brincantes. Afinal, o Cazumbá, “na brincadeira, por assim dizer, é um personagem fazedor de travessuras, com modos que transgridem as regras durante a apresentação” (Matos, 2017, p. 100).
Figura 4: Pequenos Cazumbás em apresentação na Escola EduCare.
Fonte: Arthur Brito, 2023.
Percurso brincante
A trilha desse percurso é a brincadeira, propondo a partilha do fazer teatral de modo que a criança transforme os ensaios em um espaço de descobertas, compreendendo e contribuindo com suas informações significativas adquiridas durante o processo. A experiência torna-se única, especialmente pela possibilidade de assistirem e estarem próximos dos Cazumbás nas apresentações de grupos de Bumba meu boi nos arraiais da cidade, que iniciam o ciclo festivo no final do mês de maio.
Para o desenvolvimento da vestimenta e da máscara, as famílias receberam orientações com ideias e inspirações para a confecção, adaptadas aos olhares dos pequenos brincantes, que participaram da criação do seu próprio Cazumbá. As fantasias foram confeccionadas com diferentes materiais, como papelão, EVA colorido, lantejoulas, paetês e muito brilho. Dessa forma, Matos (2017, p. 107) lembra que as vestes, além de distinguirem o personagem dos demais, possuem elementos simbólicos que complementam sua personalidade: assustador, brincalhão e realizador de travessuras.
Muitas perguntas surgiram inicialmente por parte das famílias, principalmente sobre a aceitação do personagem, dado que as crianças usariam as máscaras, e o receio de que algumas não quisessem participar. No entanto, ao longo do tempo, foram se familiarizando com o projeto, e alguns pais relataram que não conheciam a fundo o personagem e, incentivados pela proposta, também se encantaram. Outros ficaram empolgados por terem o Cazumbá como personagem preferido do Bumba meu boi, e pela alegria de propagar a potência da cultura popular com nossos pequenos Cazumbás.
Quando veio o aviso de que a turma de Pedro dançaria homenageando o Cazumbá, eu me emocionei e vibrei. Ainda mais ao perceber que ele não iria só apresentar. Ele aprendeu sobre os sotaques do Bumba meu boi, sobre os personagens, sobre o Cazumbá e também sobre os elementos que o caracterizam. Colei cada lantejoula, cada fitilho, com muito prazer. A máscara foi feita com a ajuda empolgada do brincante exigente. E ficou lindo. Vai ser difícil superar (Hellen Mendonça, mãe do aluno Pedro).
Considerações
Os resultados de toda a vivência que o personagem Cazumbá provocou, baseada em pesquisas, trocas e brincadeiras compartilhadas entre escola e família, alcançaram uma experiência enriquecedora. A culminância aconteceu na festa junina, junto de toda a comunidade escolar, com manifestações culturais apresentadas também por outras turmas. Por fim, os pequenos Cazumbás, cheios de pertencimento, pisaram em outros territórios, seja dentro da brincadeira do Bumba meu boi nas festividades dos arraiais espalhados pela cidade, seja em festinhas familiares, junto dos seus, expandindo e preservando a cultura popular. Como professora, aponto caminhos com total intencionalidade de provocar o sentir, o fluir, e vejo como a arte se revela de forma grandiosa, ecoando o potencial transformador do teatro, fazendo da infância uma revolução.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretária de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC, 2010.
BOI DE SANTA FÉ. Guerreiro Valente. São Luís: Zabumba Records, 2021. Faixa 11.
FERREIRA, Thais; FALKEMBACH, Maria Fonseca. Teatro e dança nos anos iniciais. Porto Alegre: Mediação, 2012.
MATOS, Elisene Castro. Cazumbas: pessoas e personagens do Bumba meu boi. São Leopoldo: Oikos, 2017.
O CAZUMBÁ. Boi de Santa Fé. 2023. Disponível em: https://www.boidesantafe.com.br/. Acesso em: 22 maio 2023.
Publicado em 08 de outubro de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
GUIMARÃES, Suzanne Rocha. Pequenos Cazumbás, a brincadeira da cultura popular feita com, para e pela a primeira infância: um relato de experiência. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 37, 8 de outubro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/37/pequenos-cazumbas-a-brincadeira-da-cultura-popular-feita-com-para-e-pela-primeira-infancia-um-relato-de-experiencia
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