Jogo de consciência fonológica no processo de alfabetização linguística
Fernanda Maurício dos Reis
Professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental da rede municipal de Cachoeira do Arari/PA, licenciada em Educação em Ciências, Matemática e Linguagens (UFPA)
Fabio Colins
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemáticas (UFPA), doutor em Educação em Ciências e Matemáticas (UFPA)
O Brasil enfrenta desafios significativos em relação aos baixos índices de alfabetização das crianças que estão no ciclo de alfabetização, compreendido entre o 1º e o 3º ano do Ensino Fundamental. Segundo Morais (2012), a ineficiência da educação brasileira se reflete no fracasso dos alunos nos primeiros anos escolares, principalmente nas séries destinadas ao trabalho pedagógico com a alfabetização.
Observando o nível de alfabetização nas escolas públicas e periféricas, é possível perceber que os índices de analfabetismo nos anos iniciais do Ensino Fundamental são ainda maiores. De acordo com Morais (2012, p. 22), “o fracasso da escola, na alfabetização, tem atingido quase exclusivamente as crianças pobres, oriundas das famílias de meio popular”. Essa situação demanda debates nos espaços escolares, nas universidades, nos eventos acadêmicos e nas instituições de fomento à pesquisa. Além disso, são necessárias ações concretas para enfrentar essa problemática.
Nesse cenário, os professores alfabetizadores podem contribuir para reduzir esses índices. Para isso, a prática pedagógica de alfabetização deve ser redimensionada a partir do estudo das teorias da alfabetização ou da aquisição da língua materna. Entre essas teorias, destaca-se a Teoria da Psicogênese de Emília Ferreiro e Ana Teberosky. Segundo essa teoria, a escrita da criança é reconhecida como um sistema notacional, ou seja, um Sistema de Escrita Alfabética (SEA).
De acordo com a Teoria da Psicogênese, no processo de apropriação do SEA, a criança deve ser exposta a atividades que mobilizem habilidades relacionadas à consciência sonora das palavras. Isso levanta importantes questões: quais habilidades de consciência fonológica são necessárias no processo de alfabetização das crianças? Quais jogos didáticos podem contribuir para o desenvolvimento da consciência fonológica?
Este texto tem como objetivo discutir e explorar o uso de jogos didáticos de consciência fonológica no processo de apropriação do SEA. Para isso, foi desenvolvida uma pesquisa com crianças do 4º ano do Ensino Fundamental em uma escola pública municipal de Cachoeira do Arari, em Marajó, no estado do Pará. Foram desenvolvidas atividades a partir do jogo didático Bingo dos Sons Iniciais, retirado do caderno de jogos de alfabetização organizado por Leal et al. (2009).
Esta pesquisa integra o projeto coordenado pelo professor doutor Fabio Colins (PPGECM/IEMCI/UFPA), intitulado Metodologias Interdisciplinares de Alfabetização Baseadas em Evidências da Neurociência Cognitiva. O principal objetivo do projeto é promover ações formativas na formação continuada de professores alfabetizadores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, utilizando resultados de estudos da neurociência cognitiva sobre os processos de aprendizagem da lectoescrita e cognição numérica em crianças.
Os resultados desta pesquisa apontam que os jogos podem ser grandes aliados para que as crianças reflitam sobre as propriedades do SEA, auxiliando-as no processo de alfabetização. As atividades lúdicas estimularam reflexões metalinguísticas sobre os sons (sílabas) iniciais das palavras. Além disso, os jogos tornam as aulas de alfabetização mais dinâmicas e divertidas, evitando exercícios ortográficos repetitivos e sem sentido. No entanto, o alfabetizador deve saber selecionar os recursos didáticos de acordo com os objetivos de aprendizagem das propriedades do SEA e construir atividades sistematizadas voltadas para a consciência fonológica.
Na seção seguinte, serão discutidos os pressupostos teóricos da Teoria da Psicogênese e a importância dos jogos didáticos para o aprofundamento e a consolidação das habilidades relacionadas à consciência fonológica.
A psicogênese da língua escrita
Na década de 1970, as pesquisadoras argentinas Emília Ferreiro e Ana Teberosky iniciaram uma investigação fundamentada nos pressupostos teóricos piagetianos, que abordava a aquisição do conhecimento da lectoescrita por meio de atividades em que a criança interage com o objeto do conhecimento, demonstrando ideias anteriores à escolarização formal de escolarização e hipóteses sobre o sistema de escrita (Morais, 2012).
A teoria dessas pesquisadoras chegou ao Brasil na década de 1980, após a publicação de Psicogênese da Língua Escrita (1986). As autoras afirmam:
Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da leitura, entendida como questionamento a respeito da natureza, função e valor deste objeto cultural que é a escrita, inicia-se muito antes do que a escola imagina, transcorrendo por insuspeitados caminhos. Que além dos métodos, dos manuais, dos recursos didáticos, existe um sujeito que busca a aquisição de conhecimento, que se propõe problemas e trata de solucioná-los, segundo sua própria metodologia. Um sujeito que procura adquirir conhecimento, e não simplesmente de um sujeito disposto ou mal disposto a adquirir uma técnica particular. Um sujeito que a psicologia da lec-escrita esqueceu (Ferreiro; Teberosky, 1986, p. 11).
Nesse excerto, percebe-se que Ferreiro e Teberosky enfatizam a criança como o centro do processo de ensino-aprendizagem da leitura e escrita, ou seja, no foco das práticas de alfabetização. Além disso, deve-se considerar que a Teoria da Psicogênese é fundamentada nos princípios teórico-metodológicos da Psicolinguística.
No Brasil, essa teoria foi equivocadamente associada aos métodos construtivistas de alfabetização, em oposição aos métodos fônicos. Morais (2012) destaca que a disseminação das teorias da Psicologia e Linguística, na década de 1980, gerou um movimento de desinvenção dos métodos tradicionais de alfabetização, que colocou “em xeque os velhos métodos de alfabetização, [de modo que] muitos educadores passaram não só a questionar e negar o uso de tais métodos, mas apostar em uma alfabetização sem metodologia” (Morais, 2012, p. 24).
Essa falta de compreensão dos pressupostos da Teoria da Psicogênese levou muitos alfabetizadores a organizar atividades e planos de aula sem intencionalidade, de maneira desordenada, inclusive o uso de jogos didáticos. Essa incompreensão levou os métodos de alfabetização a serem rotulados como métodos construtivistas. Esta pesquisa defende a importância da formação de professores alfabetizadores como crucial para melhorar os índices de alfabetização no Brasil.
A Teoria da Psicogênese da escrita classifica o desenvolvimento das hipóteses da criança em quatro fases: pré-silábica, silábica, silábica-alfabética e alfabética. Em cada uma dessas fases, a criança se apropria das propriedades do Sistema de Escrita Alfabética (SEA). De acordo com Morais (2012), essas propriedades incluem a compreensão de que
1. Escreve-se com letras que não podem ser inventadas, que têm um repertório finito e que são diferentes de números e de outros símbolos;
2. As letras têm formatos fixos e pequenas variações produzem mudanças em sua identidade (p, q, b, d), embora uma letra assuma formatos variados (P, p, P, p);
3. A ordem das letras no interior da palavra não pode ser mudada;
4. Uma letra pode se repetir no interior de uma palavra e em diferentes palavras, ao mesmo tempo em que distintas palavras compartilham as mesmas letras;
5. Nem todas as letras podem ocupar certas posições no interior das palavras e nem todas as letras podem vir juntas de quaisquer outras;
6. As letras notam ou substituem a pausa sonora das palavras que pronunciamos e nunca levam em conta as características físicas ou funcionais dos referentes que substituem;
7. As letras notam segmentos sonoros menores que as sílabas orais que pronunciamos;
8. As letras têm valores sonoros fixos, apesar de muitas terem mais de um valor sonoro e certos sons poderem ser notados com mais de uma letra;
9. Além de letras, na escrita de palavras usam-se, também, algumas marcas (acentos) que podem modificar a tonicidade ou o som das letras ou sílabas onde aparecem;
10. As sílabas podem variar quanto às combinações entre consoantes e vogais (CV, CCV, CVV, CVC, V, VC, VCC, CCVCC...), mas a estrutura predominante no português é a sílaba CV (consoante-vogal), e todas as sílabas do português contêm, ao menos, uma vogal (Morais, 2012, p. 51).
O professor alfabetizador precisa conhecer as propriedades do SEA para mediar a aprendizagem das crianças. Por exemplo, pode selecionar, mesmo que a partir de livros didáticos, atividades que explorem as dez propriedades do SEA. Além disso, o alfabetizador pode pesquisar e/ou elaborar jogos didáticos fundamentados nesse decálogo. Para isso, além de conhecer os princípios do sistema ortográfico, o alfabetizador deve compreender as etapas de apropriação do SEA.
Na etapa pré-silábica, segundo Morais (2012, p. 54), a criança ainda “não descobriu que a escrita nota ou registra no papel a pauta sonora, isto é, a sequência dos pedaços sonoros das palavras que falamos”. Para quem é alfabetizado, isso pode parecer irrelevante, mas o alfabetizador precisa considerar essa primeira fase da criança em direção à alfabetização.
Nessa fase, o alfabetizador pode explorar a escrita espontânea da criança e a consciência dos sons expressos pelas palavras. Por isso, práticas pedagógicas focadas em escrever e ler vogais, em seguida ler e escrever consoantes, para somente depois formar sílabas canônicas, não contribuem efetivamente para uma alfabetização plena. A criança, na etapa pré-silábica, não conhece a base da sílaba, que é a vogal, sendo que, na língua portuguesa, não há sílaba sem vogal.
O fato de a criança pré-silábica não saber o que as letras representam no papel refuta a ideia pedagógica de primeiramente ensinar as vogais, para depois ensinar consoantes, seguidas das famílias silábicas canônicas, para finalmente ensinar as palavras. Independentemente do método, o alfabetizador, na perspectiva da Teoria da Psicogênese, deve explorar a palavra dentro de um contexto pragmático.
Na etapa silábica, as crianças buscam estabelecer uma relação fonografêmica entre as partes pronunciadas da palavra e uma letra para representá-la, seja com valor sonoro ou sem valor sonoro. Conforme Morais (2012, p. 57), nessa fase (silábica), os alunos “tendem a pronunciar a palavra dividindo-a em sílabas e buscando fazer corresponder as letras ou marcas colocadas (no papel ou sobre outra superfície) aos segmentos silábicos orais que pronunciam”. Essa é a principal característica dessa etapa de apropriação do SEA, momento em que a criança desenvolve habilidades relacionadas à consciência fonológica.
Entre a etapa silábica e a etapa alfabética, existe uma fase de transição chamada de silábico-alfabética. Nesse momento do percurso em direção à apropriação do SEA, a criança “necessita refletir, mais detidamente, sobre o interior das sílabas orais, de modo a buscar notar os pequenos sons que as formam, em lugar de colocar uma única letra para cada sílaba” (Morais, 2012, p. 62). Na fase silábico-alfabética, surgem novos conflitos que fazem a criança abandonar a escrita silábica, implicando em um nível mais complexo de reflexão metafonológica, ou seja, na necessidade de consciência fonêmica. Portanto, o conhecimento do aluno sobre as correspondências grafofonêmicas aumenta, visto que ele precisará aprender os valores sonoros das consoantes.
Ao realizar essa transição, a criança encontra-se na fase alfabética, considerada a etapa final do processo de apropriação do SEA. Chegar à fase alfabética não significa estar alfabetizada, pois o foco da prática pedagógica agora é a ortografização, uma vez que a criança ainda cometerá muitos erros ortográficos.
A criança alfabética, segundo Soares (2022, p. 120), “refaz a descoberta em seu processo de compreensão da natureza da escrita, por meio de estímulos e orientação do alfabetizador”. Para isso, o alfabetizador precisa propor atividades e jogos que explorem a consciência fonológica, um processo metalinguístico que consiste em “refletir sobre os segmentos sonoros da fala” (Soares, 2022, p. 77). A consciência fonológica, assim, exerce um papel importante no aprendizado do SEA.
Nesse contexto, defende-se que a prática pedagógica deve proporcionar à criança a reflexão sobre os sons iniciais e finais das palavras, pois tal exercício é necessário para a apropriação do SEA. De acordo com Morais (2023, p. 29), a consciência fonológica pode estar situada em episódios nos quais “a criança espontaneamente revela estar refletindo sobre as palavras da língua”. Trata-se, portanto, de um conjunto de habilidades metalinguísticas relacionadas às partes da palavra.
Para a criança chegar ao princípio alfabético, ela precisará passar por níveis de consciência fonológica que, conforme Soares (2022), são três: consciência lexical, consciência silábica e consciência fonêmica. Segundo a autora,
na consciência lexical a palavra é uma cadeia de sons; segmentos de palavras podem ser iguais (aliterações e rimas), na consciência silábica a palavra pode ser segmentada em sílabas, na consciência fonêmica as sílabas são constituídas de pequenos sons – fonemas (Soares, 2022, p. 77).
No processo de apropriação do SEA, o desenvolvimento da consciência fonológica está associado à aprendizagem das letras e das sílabas. Por isso, é importante que o alfabetizador explore jogos nas aulas de alfabetização, como veremos na próxima seção.
Metodologia
Diante das reflexões sobre o processo de apropriação do SEA e da importância da consciência fonológica, foi planejada uma atividade com o jogo didático intitulado Bingo dos Sons Iniciais, retirado do caderno de jogos de alfabetização organizado por Leal et al. (2009). Esta pesquisa adotou uma abordagem de natureza qualitativa (Souza et al., 2019), a qual possibilitou a compreensão e a interpretação do fenômeno investigado, proporcionando um novo significado à prática de alfabetização.
A pesquisa, quanto ao objetivo, foi do tipo exploratória, visto que se buscou um processo investigativo que fornecesse uma visão panorâmica sobre o uso do jogo no processo de alfabetização. Esse tipo de pesquisa “ajuda o pesquisador a compreender ou aprimorar o conhecimento sobre determinado assunto, de modo que, após o seu término, seus resultados possam levar a outras pesquisas com novas abordagens” (Souza et al., 2019, p. 34).
O contexto da pesquisa foi uma turma de 4º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal de Cachoeira do Arari, no Estado do Pará, localizada no arquipélago do Marajó. A escolha da escola se deu pelo fato de a pesquisadora ter realizado seu estágio de docência na instituição e ter percebido que os alunos do 4º ano apresentavam baixos níveis de fluência em alfabetização, possivelmente devido ao fato de não terem cursado presencialmente o 1º e o 2º anos do Ensino Fundamental, por causa da pandemia da covid-19, períodos em que o foco da prática docente deveria ser a alfabetização das crianças.
Para o desenvolvimento da pesquisa, o projeto foi apresentado ao professor da turma, que concordou com a proposta. Após isso, as atividades de pesquisa foram elaboradas a partir do jogo de alfabetização, conforme o planejamento descrito a seguir.
Jogo 1: Bingo dos Sons Iniciais
Objetivo do jogo: vence o jogo quem primeiro completar sua cartela, marcando todas as figuras.
Jogadores: 2 a 15 jogadores ou duplas.
Materiais:
Figura 1: Cartela do jogo Bingo dos Sons Iniciais
Fonte: Leal et. al., 2009, p. 41.
- 15 cartelas, cada uma contendo seis figuras e as palavras escritas correspondentes às figuras;
- 30 fichas com palavras escritas;
- um saco para guardar as fichas de palavras.
Regras: Cada jogador ou dupla de jogadores recebe uma cartela. A professora sorteia uma ficha do saco e lê a palavra em voz alta. Os jogadores que tiverem em sua cartela uma figura cujo nome comece com a sílaba inicial da palavra chamada deverão marcá-la. O jogo termina quando um jogador ou uma dupla marcar todas as palavras de sua cartela.
Repertório de palavras utilizadas no jogo (as palavras em maiúsculas são as das fichas):
ARARA – asa – abelha – avião
BANCO – bandeja – bandeira
BIBLIOTECA – bicicleta – bigode
BODE – bola – bota
CAPACETE – cadeira – cavalo – casa – caderno – caverna
CHULÉ – chuveiro – chupeta
DENTISTA – dente – dentadura
ELÁSTICO – elefante – égua
ESTRADA – estrela – esquilo
FAZENDA – faca – fada
FIVELA – fita
GAROTO – galinha – gato – galo
IOGURTE – igreja – ilha – iglu
JAVALI – jaca – jarro – jacaré
LADEIRA – lata – lápis – laço – laranja
MALA – mapa – macaco – maçã
MARGARIDA – martelo
MELECA – melancia – medalha – médico
NATUREZA – navio – nariz
OVELHA – olho – ovo – orelha
PARAFUSO – pavão – palhaço – papagaio – pato – palito
PIOLHO – pilha – pião – pirata – piano – pirulito – picolé
PRAÇA – prato
RAPOSA – rádio – rabo – rato
RÉDEA – relógio – régua – reboque
SACO – sapato – sapo
TATUAGEM – tatu – tapete
UMBU – uva – uvas
VARINHA – vaga-lume – vaca – vassoura
VELHA – vela
A pesquisa foi realizada durante o segundo bimestre, e o jogo foi aplicado ao longo de três semanas, sempre às quartas-feiras, conforme definido pelo professor. Na primeira aula, foi realizada uma leitura diagnóstica para avaliar o nível de alfabetização das crianças. Além disso, foi explicado como seriam conduzidas as aulas semanais. Nas semanas subsequentes, o trabalho focou no jogo de alfabetização, com a participação e acompanhamento do professor da turma em todo o processo de pesquisa.
Durante as atividades, os alunos fizeram registros em folhas de papel. Além disso, foram tiradas fotos, com a devida autorização dos pais, que, no ato da matrícula, assinam um documento permitindo o registro fotográfico das crianças em sala de aula, no contexto de atividades pedagógicas. No entanto, para garantir o sigilo e o anonimato, não foram tiradas fotos em que os rostos das crianças aparecem. Os pais também foram informados de que a presença da pesquisadora e as atividades desenvolvidas faziam parte de um estudo de conclusão de curso vinculado à Universidade Federal do Pará.
Os materiais resultantes da pesquisa, incluindo os registros escritos dos alunos e as fotos, passaram por um processo de análise baseado no método de Análise de Conteúdo (Bardin, 2011). Esse método permite realizar inferências a partir dos dados empíricos, ou seja, trata-se de um procedimento analítico que exige a compreensão e interpretação do fenômeno investigado, a partir das mensagens geradas nas atividades com o jogo de alfabetização. Na seção seguinte, serão discutidos os resultados obtidos na pesquisa.
Jogo de análise fonológica
O uso de jogos pedagógicos é amplamente recomendado para a apropriação do SEA, pois permite a reflexão sobre as propriedades da escrita alfabética e as relações grafofonêmicas. Além disso, a ludicidade é intrínseca ao universo infantil, o que naturalmente motiva as crianças no processo de aprendizagem.
Por outro lado, vale ressaltar que é fundamental que o professor compreenda o que os alunos estão aprendendo ao participar desses jogos, uma vez que nenhum jogo abrange todos os princípios do sistema alfabético de escrita (Leal et al., 2009). Ao ter clareza dos objetivos didáticos envolvidos nos jogos oferecidos aos alunos, o professor pode organizar melhor suas intervenções pedagógicas e definir outras atividades necessárias para que os aprendizes adquiram conhecimentos não abordados pelos jogos.
Na primeira etapa da pesquisa, os alunos participaram de uma atividade de escrita espontânea, com o objetivo de avaliar o nível de alfabetização. A turma era composta por 16 alunos, dos quais 9 estavam no nível silábico-alfabético e 7 no nível silábico, apresentando ainda muitos erros ortográficos. Ao final das atividades realizadas com o jogo, observou-se que muitos alunos ampliaram seu conhecimento sobre o SEA e passaram a cometer menos erros ortográficos.
A escrita espontânea permite ao professor alfabetizador identificar as hipóteses formuladas pelos alunos em relação ao SEA, como ilustrado na Figura 2.
Figura 2: Escrita espontânea de um participante da pesquisa
Fonte: Caderno de Pesquisa, 2023.
Nessa primeira atividade (Figura 2), é possível inferir que o participante, assim como muitos alunos em fase alfabética, apresenta erro ortográfico nas relações regulares envolvendo o dígrafo LH, especialmente quando seguido pelas vogais a e o, ou pela sílaba li, como no exemplo da palavra olho, que foi escrita olio. Foneticamente, isso ocorre porque, na fala da maioria dos falantes, o fonema /λ/ é pronunciado de forma similar a li. Ao articular a sílaba lho, há a percepção de um som semelhante ao da vogal i na sílaba falada. No entanto, isso não constitui um erro fonológico. Pelo contrário, “a criança revela ter adquirido a capacidade de identificar, na fala, fonemas, neste caso um fonema vocálico representado pela vogal i” (Soares, 2022, p. 148).
Na escrita da palavra pirulito (Figura 2), percebe-se que o participante também apresenta características típicas de um aluno silábico-alfabético, pois ainda se encontra na transição entre o nível silábico e o alfabético. Ao escrever prolito, nota-se a consciência sobre o valor sonoro da consoante p, evidenciando o conhecimento linguístico, reflexivo e explícito que o aluno possui sobre o SEA. Essa escrita demonstra os conflitos que surgem durante essa etapa de apropriação do SEA.
O jogo Bingo dos Sons Iniciais proporcionou aos alunos a oportunidade de refletir sobre os sons iniciais das palavras, uma habilidade necessária no processo de alfabetização. Assim, quando uma cartela do bingo era chamada, o aluno podia compreender certas propriedades do sistema alfabético, como “a ordem, a estabilidade e a repetição de letras nas palavras, enquanto, de maneira lúdica, analisavam as semelhanças sonoras” (Leal et al., 2009, p. 16). Na foto, o professor orienta os alunos sobre o jogo e solicita que mencionem pares de palavras, distintas das do jogo, que comecem com sons semelhantes.
Figura 3: Professor orientando os alunos sobre o jogo de alfabetização
Fonte: Acervo da pesquisa, 2023.
A partir das observações realizadas em sala de aula, pode-se inferir que o professor aderiu à ideia de que, ao invés de desenvolver uma prática pedagógica centrada em atividades de treino ortográfico, a utilização do jogo Bingo dos Sons Iniciais permitiu que os alunos tratassem as palavras como objeto de aprendizagem. Assim, a ludicidade no processo de alfabetização colocou os alunos como sujeitos da linguagem em uma perspectiva reflexiva (Leal et al., 2009).
Nesse contexto, além dos aspectos lúdicos, o jogo também promoveu a reflexão linguística sobre as convenções ortográficas do português brasileiro. Por exemplo, na escrita da palavra palhaço, conforme a Figura 4.
Figura 4: Escrita de um aluno alfabético
Fonte: Caderno de Pesquisa, 2023.
O exemplo da Figura 3 mostra que o professor alfabetizador precisa considerar a etapa alfabética como um momento de múltiplas aprendizagens para a criança, e não apenas como uma fase de transição entre a alfabetização e a ortografização. Segundo Morais (2012), ao alcançar uma hipótese alfabética, o aluno cria notações que ainda contêm muitos erros ortográficos.
As atividades com o jogo Bingo dos Sons Iniciais contribuíram para que os alunos compreendessem que, no processo de escrita, é necessário refletir também sobre os segmentos sonoros das palavras, e não apenas focar no significado. Nessa fase, o foco da prática do alfabetizador “deve voltar-se ao alfabeto, um produto cultural que, por ser inventado pelo ser humano e fruto de uma abstração — torna o som visível —, precisa ser ensinado explicitamente” (Soares, 2022, p. 119).
O foco no ensino explícito do alfabeto e das relações grafofonêmicas justifica-se pela escrita da palavra palhaço /palhaço/ (Figura 3), registrada como pelaso. Pode-se inferir que essa escrita é resultante do processo de fonetização, em que o aluno escolhe as letras que representam os sons de cada fonema destacado. Para o fonema /s/, por exemplo, a criança escolheu pelo grafema s, em vez do ç, uma convenção da escrita que necessita ser ensinada de forma sistemática. A relação entre o fonema /s/ e o grafema ç é irregular ou arbitrária. Esse é um exemplo de como um mesmo fonema pode ser representado por mais de um grafema, sem uma regra fixa que defina essa relação ortográfica.
Durante o jogo Bingo dos Sons Iniciais, os alunos puderam refletir sobre essas relações irregulares do português brasileiro. Surgiram diversas perguntas sobre as justificativas para esses fenômenos linguísticos, e o professor explicou que se tratava de fatores arbitrários da língua portuguesa. Ele também exemplificou outras relações irregulares, como: /s/ → s = cesta, mês; /s/ → ss = acesso, posso; /s/ → c = cinto, cebola; /s/ → z = paz, cuscuz; /s/ → x = texto, próximo, entre outros. Portanto, é necessário explorar esses aspectos ortográficos na alfabetização, pois eles são objeto de conhecimento normatizado na escola e devem ser ensinados sistematicamente.
O trabalho com jogos permite ao professor enxergar os erros dos alunos de outra forma: como indicadores de aprendizagem. A ortografia, sendo uma convenção com regularidades e irregularidades inerentes ao sistema da língua portuguesa, precisa ser abordada com esse olhar. Para Rego (2007, p. 30), no ensino de ortografia, “o professor necessita não apenas se apropriar das características desse objeto de conhecimento, mas também reconhecer os erros dos alunos como tentativas de compreender o funcionamento da nossa ortografia”. Portanto, é necessário que o alfabetizador proponha atividades que incentivem a reflexão sobre as relações grafofonêmicas.
Além disso, o jogo Bingo dos Sons Iniciais permitiu desenvolver a consciência fonológica, por meio da exploração dos sons iniciais das palavras (aliteração), comparando palavras quanto às semelhanças sonoras no início da escrita e percebendo que palavras diferentes podem ter partes sonoras semelhantes. No entanto, é fundamental que o professor saiba o que os alunos estão aprendendo com a utilização de jogos em sala de aula. Caso contrário, a atividade lúdica pode se tornar apenas um momento de entretenimento. Quando o alfabetizador compreende os objetivos de aprendizagem envolvidos na atividade lúdica, ele “pode se organizar melhor e decidir acerca das outras atividades que precisará desenvolver, para que os aprendizes se apropriem de outros conhecimentos não contemplados pelos jogos” (Leal et al., 2009, p. 19), como as atividades de ortografização.
Na foto a seguir, a aluna desenvolve uma atividade que explora a aliteração.
Figura 5: Aluna desenvolvendo atividade em sala de aula
Fonte: Acervo da pesquisa, 2023.
Ao conversar com o professor da turma que participou desta pesquisa, foi possível perceber que o trabalho com atividades de aliteração no processo de apropriação do SEA não era comum. Geralmente, ele explorava mais atividades com rimas. No entanto, após os encontros de planejamento, o professor compreendeu a importância de fazer os alunos refletirem sobre as semelhanças sonoras das sílabas iniciais das palavras. A Figura 5 ilustra uma dessas atividades com aliteração.
Morais (2023, p. 84) afirma que pesquisas sobre consciência fonológica têm demonstrado que, ao “refletirem sobre a semelhança sonora de palavras com a mesma sílaba inicial, os alunos não se mostraram tão bem-sucedidos, sendo mais difícil produzir (dizer) palavras que começassem com a mesma sílaba”. Isso reforça a importância de explorar mais atividades de aliteração nas aulas de alfabetização, especialmente as que têm como objeto de conhecimento as propriedades do SEA.
Por fim, segundo os resultados da pesquisa, pode-se inferir que o jogo Bingo dos Sons Iniciais ampliou a compreensão de que uma criança alfabética não é necessariamente uma criança alfabetizada. Após a apropriação do SEA, o aluno ainda precisa percorrer um longo caminho até dominar os aspectos ortográficos do português brasileiro. Além disso, ficou evidente que as atividades de alfabetização podem ser mais criativas, lúdicas e reflexivas, desde que o professor tenha consciência do seu papel no processo de alfabetização de seus alunos.
Considerações finais
Esta pesquisa teve como objetivo discutir o uso dos jogos didáticos de consciência fonológica no processo de apropriação do SEA, abordando a atividade lúdica como uma ferramenta potencial no trabalho do alfabetizador. Ademais, buscou-se refletir sobre as habilidades de consciência fonêmica essenciais para que os alunos compreendam o funcionamento do sistema alfabético.
As atividades com o jogo Bingo dos Sons Iniciais despertaram nos alunos a curiosidade de observar a estrutura interna das palavras, motivando-os a refletir sobre os sons e suas representações gráficas. Dessa forma, essas atividades mobilizaram conhecimentos linguísticos necessários ao desenvolvimento da escrita, visto que o caráter lúdico da atividade traz uma motivação externa para a criança, e cabe ao alfabetizador promover também a motivação interna para o aprendizado.
Incentivar os alunos a perceberem as propriedades do SEA e as regularidades e irregularidades da ortografia do português falado no Brasil são metas fundamentais que todo alfabetizador deve estabelecer. Para alcançar esse objetivo, é necessário expor os alunos a gêneros textuais que fazem uso criativo da linguagem, como poemas, cantigas e trava-línguas. Essas escolhas podem incentivar as crianças a adotarem uma atitude investigativa e prazerosa ao brincarem com as palavras, tanto orais quanto escritas. Como bem destacou Magda Soares, toda criança é capaz de aprender a ler e a escrever.
Referências
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
LEAL, Telma Ferraz et al. (org.). Jogos de alfabetização. Brasília: MEC/SEB, 2009.
MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
MORAIS, Artur Gomes de. Consciência fonológica na Educação Infantil e no ciclo de alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.
REGO, Lúcia Lins Browne. O aprendizado da norma ortográfica. In: SILVA, Alexsandro da; MORAIS, Artur Gomes de; MELO, Kátia Leal Reis de (org.). Ortografia na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
SOARES, Magda. Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever. São Paulo: Contexto, 2022.
SOUZA, Tito Eugênio Santos et al. Metodologia científica: teoria e aplicação na educação a distância. Petrolina: UFV, 2019.
Publicado em 15 de outubro de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
REIS, Fernanda Maurício dos; COLINS, Fabio. Jogo de consciência fonológica no processo de alfabetização linguística. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 38, 15 de outubro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/38/jogo-de-consciencia-fonologica-no-processo-de-alfabetizacao-linguistica
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