Análise expositiva e crítica do artigo “Marx como referencial para análise de relações entre ciência, tecnologia e sociedade”, de Lima Júnior e colaboradores

Sandro Conceição de Matos

Licenciado e bacharel em Ciências Biológicas (UFBA), especialista em Educação, Pobreza e Desigualdade Social (UFBA) e em Educação Científica e Popularização das Ciências (IFBaiano), mestre em Educação e Contemporaneidade (UNEB), professor de Biologia do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (SDE/SP)

O artigo analisado por esta resenha crítica tem como objetivo central a análise das relações entre ciência, tecnologia e sociedade. A análise se dará a partir do referencial teórico e metodológico encontrado no livro O capital, do filósofo Karl Marx, assim como a desmistificação dos três mitos da neutralidade da Ciência (Auler; Delizoicov, 2001), de acordo com a perspectiva marxista.

Logo na introdução, os autores do artigo realizam um breve histórico a respeito do enfoque dado por eles a ciência, tecnologia e sociedade (CTS) dentro dos currículos e das práticas de Educação Científica em países imperialistas, assim como sobre a sua invasão nos países do Sul Global, especificamente no Estado brasileiro.

Em seguida, eles abordam as diferentes concepções de alguns estudiosos do movimento CTS: Auler e Bazzo (2001), Von Linsingen (2007) e Auler e Delizoicov (2001). No texto, procuram encontrar nos autores um ponto em comum, segundo o qual o enfoque CTS ganhe a capacidade de gerar um posicionamento mais crítico dos estudantes sobre as atividades científicas e tecnológicas, tornando-os indivíduos participativos nas decisões político-sociais.

Por fim, os autores do artigo expõem os três mitos apontados por Auler e Delizoicov (2001): o mito da superioridade do modelo de decisões tecnocráticas, o mito da perspectiva salvacionista da ciência e da tecnologia e o mito do determinismo tecnológico, todos recorrentes nas práticas pedagógicas de alguns professores, mas que precisam ser superados pela abordagem CTS de perspectiva marxista.

Após a introdução, os autores do artigo justificam o uso do referencial marxista na análise do movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade e depois apresentam uma revisão das principais categorias descritas por Karl Marx no livro O capital:

  1. mercadoria, valor e trabalho;
  2. dinheiro, capital e mais-valia;
  3. a força de trabalho e seu valor; e
  4. mais-valia e exploração da força de trabalho.

Essas categorias serviram tanto de seções, quanto de base para demonstrar como o sistema capitalista atua no processo de produção da ciência e da tecnologia.

Depois dessa revisão, os pesquisadores defendem que a inclusão e a inovação da ciência e da tecnologia no processo de produção de capital se inserem na categoria mais valia relativa pelo fato delas aumentarem a produção de mercadorias sem a necessidade de expandir a carga horária do trabalhador, além de intensificarem a exploração do trabalhador e de diminuírem o valor da força de trabalho. A diminuição do salário, ou seja, do valor da força de trabalho pago pelo dono dos meios essenciais à vida, provém da redução dos preços das mercadorias consumidas pelo trabalhador, as quais têm, como consequência, o aumento quantitativo pela inserção de constantes inovações científicas e tecnológicas.

Isso posto, os autores exemplificam como as inovações científicas e tecnológicas agem na produção do saber e na produção de alimentos transgênicos, por meio da internet e da engenharia genética. No final da explicação dos exemplos, os autores refutam de maneira sucinta os três mitos da neutralidade científica (Auler; Delizoicov, 2001), por meio da associação entre CTS e Economia Política. A seguir, as sínteses decorrentes dessa associação, cuja finalidade envolvia a rejeição dos três mitos:

  1. Rejeição do mito da perspectiva salvacionista da ciência e tecnologia. A contribuição para o bem-estar social que emerge da ciência e da tecnologia chega a ser ínfima ou mesmo nula, pois o objetivo central do capital é trocar dinheiro por mais dinheiro com a exploração dos trabalhadores e dos recursos naturais, sem preocupação com o desenvolvimento social.
  2. Rejeição do mito do determinismo tecnológico. Inovações científicas e tecnológicas tendem a ser empregadas em larga escala na medida em que se transformam em instrumentos necessários à acumulação do capital. Fato que influencia decisivamente nas direções em que avançam a ciência e a tecnologia.
  3. Rejeição do mito da superioridade do modelo de decisões tecnocráticas. A elite técnico-científica é composta por uma classe de explorados que se especializaram no processo de produção e de inovação tecnológica e científica. Ela coopera, consciente ou não, com a classe dominante. A seleção desses trabalhadores é destituída de critérios técnicos.

As últimas seções do artigo são dedicadas às críticas desacertadas que alguns pesquisadores do movimento CTS trazem da filosofia marxista. Conforme aponta o artigo, esses autores situam Karl Marx no reducionismo econômico ou até mesmo como determinista tecnológico. No entanto, a abordagem materialista histórica e dialética suscitada por ele impossibilita classificá-lo como um reducionista econômico, como um determinista tecnológico ou como um utópico, sem contar a diversidade de obras marxistas que tratam de temas relacionados à evolução humana, à Etologia, à Antropologia e às transformações ecológicas. Portanto, a interpretação social do marxismo não gira em torno apenas pelo fenômeno financeiro.

Karl Marx expõe uma estrutura econômica da qual se eleva toda uma superestrutura jurídica, política, religiosa, educativa, artística, psicológica (Marx, 1983). A estrutura econômica, em suma, é a relação dos humanos entre si e deles com a natureza. Essas relações são mutuamente dependentes e necessárias para a nossa sobrevivência. Nessa relação simbiótica entre os humanos e deles com a natureza ocorre a transformação concomitante da natureza e da espécie humana. Tal transformação do mundo natural e social é mediada pelas ferramentas de trabalho, as quais são construídas e modificadas pela força de trabalho ao longo da história.

Na conclusão, os autores elencam, de forma resumida, os pontos principais discutidos durante o artigo:

  1. a compreensão das inovações científicas e tecnológicas como elementos integrantes do processo de produção da mais-valia relativa;
  2. o interesse da classe dominante em direcionar as pesquisas que geram avanços na ciência e na tecnologia;
  3. a exploração da força de trabalho da classe operária e a sua consequente degradação; e
  4. a utilização do referencial marxista na crítica do determinismo tecnológico, da perspectiva salvacionista na ciência e tecnologia e da superioridade do modelo de decisões tecnocráticas.

Há ainda a proposição de que se coloque a referência marxista na formação dos professores, no planejamento de currículos CTS e “na formulação de posicionamentos da comunidade de pesquisa em educação científica frente às políticas nacionais de ciência, tecnologia e inovação” (Lima Junior et al., 2014, p. 192).

Há dois problemas no artigo que precisam ser elucidados. O primeiro se encontra na página 178, quando os autores colocam o conceito de mercadoria como ponto de partida da análise de Marx. No entanto, é na categoria Trabalho que Marx analisa a natureza do ser humano, ou seja, a sua ontologia em diferentes momentos históricos. É pelo trabalho que as mulheres e os homens, organizados em sociedade, geram produtos materiais e imateriais essenciais à manutenção de sua espécie. A ausência do trabalho equivale, obrigatoriamente, à ausência da espécie humana (Matos, 2020).

A produção de mercadorias está sujeita ao trabalho e, portanto, é imprescindível um estudo inicial dessa categoria que, no modo de produção capitalista, é explorada para produzir grandes quantidades de mercadorias. Essas mercadorias, em última análise, constituem um elemento de concretização do capital. Vale ressaltar que o capital já é gerado na exploração da classe trabalhadora, portanto, ao contrário do que haviam proposto os autores, a categoria ‘trabalho’ é o ponto nuclear da abordagem de Karl Marx (2010), enquanto a mercadoria reveste o produto do trabalho.

O segundo problema refere-se à análise da degradação da classe trabalhadora frente às ações do sistema capitalista em inovar a ciência e a tecnologia para produzir o capital por meio da mais-valia relativa, desvinculada da deterioração dos recursos ambientais e da superação do modo de produção capitalista. Essa desassociação fragiliza o artigo como trabalho acadêmico essencialmente marxista, visto que a práxis teleológica da filosofia marxista exige a superação do caos engendrado pela propriedade privada dos meios de produção.

Referências

AULER, D.; BAZZO, W. A. Reflexões para a implementação do movimento CTS no contexto educacional brasileiro. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n° 1, p. 1-13, 2001.

AULER, D.; DELIZOICOV, D. Alfabetização científico-tecnológica para quê? Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 3, n° 2, p. 105-116, 2001.

LIMA JUNIOR, P. et al. Marx como referencial para análise de relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Ciência & Educação, Bauru, v. 20, n° 1, p. 175-194, 2014.

MARX, K. Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. 27ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

MATOS, S. C de. A evolução humana na perspectiva da ontologia materialista histórica e dialética: uma descrição concisa. Revista Eletrônica Arma da Crítica, Fortaleza, n° 13, p. 57-78, 2020.

VON LINSINGEN, I. Perspectiva educacional CTS: aspectos de um campo em consolidação na América Latina. Ciência & Ensino, Piracicaba, v. 1, p. 1-19, 2007.

Publicado em 06 de fevereiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

MATOS, Sandro Conceição de. Análise expositiva e crítica do artigo “Marx como referencial para análise de relações entre ciência, tecnologia e sociedade”, de Lima Júnior e colaboradores. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 4, 6 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/4/analise-expositiva-e-critica-do-artigo-rmarx-como-referencial-para-analise-de-relacoes-entre-ciencia-tecnologia-e-sociedader-de-lima-junior-e-colaboradores

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