Celeida Tostes: o barro em suas formas pelo olhar da criança: prática de ensino em espaço não formal

Uillian Trindade Oliveira

Pós-doutor em Educação (USP), doutor em Educação e Linguagem Visual (UFES), mestre em Educação (UFES), especialista em Educação Inclusiva e Diversidades, licenciado em Artes Visuais (UFES), graduado em Pedagogia (Multivix), professor adjunto da UFOB e docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Ensino da UFOB, coordenador do projeto de pesquisa Infância, Cultura Visual e a Formação de Professores de Arte no Oeste da Bahia

Michele Bastos Santos

Participante do Programa Residência Pedagógica (UFOB), licencianda em Artes Visuais (UFOB), artista visual

Sobre a educação e suas diversas maneiras de acontecer, destacamos que no século XVIII o Barão de Montesquieu afirmou que recebemos três formas de educação: a dos nossos pais, a de nossos professores e a do mundo. Nesse discurso, ele classifica a quantidade de processos educativos que recebemos em nossas vidas. A educação é um fenômeno complexo e sempre presente na formação humana. Tanto na família, quanto na escola, mas também em locais diversos: na rua, na TV, na internet, e até mesmo em espaços que não sejam didáticos, como na política, no jornalismo, com artistas, colegas de trabalho, amigos, vizinhos e diversos espaços.

Gahnem e Trilla (2017) apontam que a escola foi e é funcional em certas sociedades, porém o que é realmente essencial à sociedade e à educação. A escola é apenas uma de suas formas, não a exclusiva. Assim, os efeitos da escolarização no indivíduo, não podem ser vistos como separados da interação com o mundo. Por diversas vezes, os fenômenos ocorridos fora da escola são transpostos para a educação formal. Nesse sentido, clama-se pela existência de outros espaços educacionais além da escola, complementares a ela. Apesar do surgimento situar-se nas décadas de 1960 e 70, foi nos anos 80 e 90 (em função de um conjunto de fatores políticos, econômicos e sociais) que a educação social ganhou maior relevância no Brasil. Verifica-se a participação, cada vez mais sistemática, das crianças e dos jovens em atividades realizadas em espaços educacionais não escolares, o que vem demandando estudo e sistematização dos processos educativos desenvolvidos em tais ambiências, bem como a ampliação da noção de espaço educacional.

A origem da popularidade do uso das adjetivações informal ou não formal data de fins da década de 1960, com a publicação da obra de P. H. Coombs The world educational crisis (1968). Nela, se enfatizava sobretudo a necessidade de desenvolver meios educacionais diferentes dos convencionalmente escolares. Nesse livro, esses meios receberam os rótulos de informal e não formal. Muitos desses espaços organizam suas atividades em torno do fazer e fruir Arte, os quais vêm registrando resultados positivos tanto no que se refere ao desenvolvimento de competências e habilidades, quanto no que se refere ao convívio social e à relação com os elementos da cultura (laço social).

Detectaram-se muitos espaços que ofertavam Artes nos segmentos Dança, Música e Teatro e uma minoria de espaços que ofertavam à comunidade o ensino específico das Artes Plásticas, sob a justificativa de muitas vezes haver falta de profissionais para atender a demanda. De acordo com Lívia (2008, p. 122), quando as agências financiadoras investem em um espaço, desejam empregar seus recursos em atividades que gerem apresentações públicas em um curto espaço de tempo, por isso se justifica a maior facilidade em receber apoio financeiro e a preferência por atividades que envolvem bandas, danças, peças de teatro ou circo.

A experiência mostrada neste capítulo, ocorreu no contexto da educação não formal, em processos criativos com crianças e o material orgânico barro.

Metodologia

O objetivo maior foi ampliar os conhecimentos estéticos e artísticos das crianças. A abordagem utilizada nesta pesquisa foi de caráter qualitativo, pois compreende as modificações nos respectivos campos sociais. Assim, o pesquisador consegue desenvolver suas teorias por meio do conhecimento empírico obtido no espaço da pesquisa, ou seja, a sua inserção no ambiente de estudo, neste caso, a educação não formal com o barro.

Nesse contexto, entendemos os processos que contribuem para a modificação dos fenômenos sociais que permeiam o local (Flick, 2009, p. 21). Desse modo, para compreendermos as possibilidades na educação não formal foi necessário ir in loco, no espaço de pesquisa e investigar os fenômenos que ocorrem por meio dessa interação das crianças com o barro.

Sobre Celeida Tostes

A artista escolhida para potencializar as oficinas com as crianças é Celeida Tostes. Ela nasceu no Rio de Janeiro em 1929 e faleceu em 1995. Conforme sua biografia consultada no site Escritório de Arte (2022), a artista foi professora e escultora, graduando-se em 1955 na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Após ganhar uma bolsa de estudos para a University of Southern California, onde se especializou em técnicas industriais de cerâmica, estudou na School of Arts do Cardiff College, no País de Gales. Em 1980, foi professora em cursos de cerâmica utilitária na Penitenciária Feminina de Belo Horizonte/MG. Entre 1980 e 1995, coordenou o projeto Formação de Centros de Cerâmica Utilitária nas comunidades da periferia urbana do Morro do Chapéu Mangueira, no Rio de Janeiro/RJ.

A artista elegeu o barro como sua matéria-prima e sua poética foi além da funcionalidade da cerâmica, tornando-a uma forma de exercício experimental em seus trabalhos sobre a força e a fragilidade do corpo feminino (a sexualidade, a fertilidade, maternidade, o nascimento e a morte), como podemos ver nas séries de obras: Vênus, Ovos, Ferramentas ou Bolas. Na obra Rito de Passagem, por exemplo, a artista envolve-se em argila dentro de uma ânfora, saindo dela como se estivesse sendo simbolicamente parida para seu renascer. No contexto da arte contemporânea, a artista desterritorializou o uso da cerâmica como linguagem para apresentar outras atitudes com o barro, possibilitando que os artistas ultrapassassem as limitações e os preconceitos do dualismo arte e técnica para inserir práticas artísticas que reposicionaram o fazer cerâmico. Costa (2003) diz sobre a artista:

Quando você quiser entender a vida – e a arte – com os olhos e o coração da Celeida Tostes, recolha a terra sobre a palma da sua mão e lentamente deixe-a escorrer por entre os dedos. Você então descobrirá que a vida é a ação do espírito, que impulsiona essa experiência, e do corpo, que é esse pó que sai de sua mão, dança no ar e retorna ao chão. Quanto à arte, a arte é o vento (Costa, 2003, p. 33).

Segundo Hennig (2015), Celeida dizia que nossa memória tem profunda relação com o barro, um vínculo profundo com esse importante material orgânico da terra. Assim, essa matéria orgânica se comunicaria ao orgânico que existe em nós: uma memória atávica e atemporal, sem linearidade, que transmite uma tradição ou uma herança, memória da nossa ancestralidade quando entramos em contato com o barro que nos remete ao íntimo e sensorial, em união com os espaços históricos e culturais da nossa existência, fato que fez o antropólogo Henri Stahl apelidá-la "Celeida do Barro" na 21ª Bienal Internacional de São Paulo. Assim, o barro lhe permitiu diferentes abordagens: o erudito e o popular, como a valorização desse material e o seu pertencimento à cultura popular. Com o barro, a artista foi além. Dele se utilizou para dar visibilidade tanto à cultura popular quanto à arte contemporânea. A artista tratava o barro como matéria nobre e refinada, de importante expressividade poética. Nesse sentido, a ceramista atribuiu um novo tratamento artístico ao barro, que antes era tido como pobre, que servia apenas como matéria auxiliar na modelagem e acabamento.

Processo criativo com as crianças e o barro

O barro é um material natural, terroso, de granulação fina, aparentemente inflexível e uniforme, fruto de uma ação milenar na natureza que resulta da decomposição de rochas e da quebra de pedras que se dissolveram na água e novamente se cristalizaram em partículas. Existem diferentes tipos de barro. Cada um tem sua composição. Esse material pode ser conceituado como qualquer terra misturada com água, enquanto a argila possui a capacidade de ser moldável, em maior ou menor grau.

Quando a criança manuseia o barro é potencializada a sua coordenação motora fina, além de experienciar questões de força e peso com o próprio exercício do ato de modelar. Dessa forma, o barro é um material de fácil acesso na natureza, sendo maleável quando umedecido, tornando-se uma massa. Essa massa, permite a exploração tátil para a construção de formas, além de desenvolver a criatividade e a concentração.

O principal material utilizado na oficina foi o barro, que é de fácil acesso. Explicou-se às crianças que o barro, quando utilizado para fazer pratos, xicaras ou outros objetos, passa por um tratamento para se tornar argila. Esse material está presente na vida do ser humano há milhares de anos, por ser um elemento natural. Assim, o barro sempre esteve presente na vida do homem, desde as mais antigas civilizações, tornando-se um elemento utilitário e de expressão artística.

Essas oficinas foram realizadas com dez crianças na faixa etárias entre 2 e 11 anos, como parte do Componente Prática de Ensino I - Espaço não formal, do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal do Oeste da Bahia. A presente pesquisa ocorreu na garagem de uma residência na cidade de Cocos, situada no oeste do Estado da Bahia, a 878km de distância da capital Salvador. As crianças presentes no local foram autorizadas ao exercício pelos pais e seus responsáveis, cientes das atividades, assim como do material que seria usado no processo (e que poderiam se sujar).

No primeiro encontro, ocorreu uma oficina em que várias crianças foram apresentadas à argila e suas peculiaridades. Explicamos brevemente e em uma linguagem simples como aconteceriam as oficinas e quais eram seus objetivos. Em seguida, apresentamos a artista Celeida Tostes e seus trabalhos para que as crianças entendessem melhor a proposta.

Figura 1: A estagiária apresenta o vídeo da artista Celeida Tostes

Quando eram mostradas as obras da artista, houve troca com as crianças, pois ouvimos o que teriam a dizer sobre o que estavam vendo, buscando compreender o que pensavam sobre a artista. Em alguns momentos, riram por causa de algumas obras e até se surpreenderam ao ver Celeida Tostes banhada no barro em uma de suas interven ções: "Senti então a necessidade imensa de misturar-me com o meu material de trabalho. Sentir o barro em meu corpo, fazer parte dele, estar dentro dele" (Tostes, 1979).

Foto em preto e branco de homem e mulher posando para foto

Descrição gerada automaticamente

Figura 2: Rito de passagem, de Celeida Tostes, em performance no ano de 1979.
Fonte: Frame do vídeo O relicário de Celeida Tostes. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CkDzC5S0W4Q.

No terceiro encontro, foi apresentado o barro às crianças, com explicações a respeito das formas de modelagem. A partir daí, as orientamos e as deixamos à vontade para construíssem suas peças a partir das suas visões de mundo. A princípio, houve resistência de algumas crianças devido ao fato de nunca terem lidado com o material. Manifestaram o receio de se sujarem, além da timidez própria do processo criativo. Outras estavam animadas, fazendo o que vinha à cabeça. Vimos bolas, cabeças, vacas e pães nascerem do barro das crianças.

A partir dessas criações, solicitamos que fizessem esculturas de observação, tanto dos trabalhos de Celeida como de objetos próximos a elas. Nesse momento, o fato de a estagiária auxiliar as crianças nas produções as encorajou bastante. Algumas peças se quebraram e tiveram que ser refeitas.

Uma imagem contendo pessoa, no interior, mulher, jovem

Descrição gerada automaticamente

Figura 3: Menino modelando o barro

Foram compartilhadas imagens previamente selecionadas de obras da artista para que os alunos escolhessem aquela com a qual se identificassem para iniciarem outros processos criativos. Assim como eles, a estagiária escolheu uma obra que a inspirou, a mesma em que a artista passa barro por todo o corpo. Nesse contexto, criou-se um rosto, fato que inspirou uma das meninas que também decidiu seguir a ideia.

Uma imagem contendo pessoa, no interior, mulher, urso

Descrição gerada automaticamente

Figura 4: Menina modelando um rosto

Após o fim dos trabalhos com as crianças e com seus processos finalizados, todos se limparam e se sentaram para refletir sobre as experiências na oficina.

Algumas crianças tiveram vergonha de expressar o que achavam da prática, outras disseram o quanto "amaram" participar. A fala de um dos meninos nos surpreendeu: "Quando vi você abrindo essa massa, quis ir embora… parece nojento, mas, depois que vi você pegando, gostei demais". Isso foi algo que surpreendeu bastante a estagiária, fazendo-a perceber o quanto um professor pode potencializar e mudar a visão de mundo de uma criança. Outras crianças disseram que gostariam de repetir a aula em outros dias, outras se preocuparam em levar suas peças para casa.

Pessoas sentadas ao redor de uma mesa de madeira

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Figura 5: Crianças modelando o barro

Uma imagem contendo no interior, mesa, plástico, comida

Descrição gerada automaticamente

Figura 6: Menina modelando uma panela

Uma imagem contendo no interior, mesa, comida, marrom

Descrição gerada automaticamente

Figura 7: Criança em processo de modelagem

Considerações finais

Constatamos nas crianças a surpresa ao ver a performance da artista Celeida Tostes. Diante do relato das crianças, podemos concluir que a educação não formal é voltada para questões que dizem respeito ao dia a dia dos participantes. O principal objetivo dessa corrente educativa é a formação de cidadãos aptos a solucionar problemas do cotidiano, a desenvolver habilidades, a organizar-se coletivamente, a apurar a compreensão do mundo à sua volta e a ler criticamente a informação que recebem. Isso é feito pela valorização de elementos culturais já existentes na comunidade, às vezes mesclados a novos elementos introduzidos pelos educadores e pela experiência em ações coletivas, frequentemente organizadas segundo eixos temáticos, como foi o caso das oficinas com o barro.

A primeira ideia da prática era ver como as crianças iriam reagir ao barro, pois entendemos que são crianças e, por isso, estão em processo de desenvolvimento. Tudo foi apresentado para que houvesse boa compreensão do assunto, sem torná-lo chato ou cansativo, trazendo referências da artista renomada.

Nessas aulas de Arte, a criança pode exercitar as suas potencialidades perceptivas, criativas e imaginativas, se expressando tanto pelo verbal quanto pelo plástico, por meio da descoberta do barro. Nesse cenário, o compromisso do professor é adequar os conteúdos para o desenvolvimento das expressões e das percepções das crianças. Como ocorreu na oficina, as crianças foram orientadas a sentir, a ver e a observar as coisas da natureza que estão à sua volta.

Nas atividades, a modelagem chamou a atenção das crianças principalmente pela possibilidade de criar formas e texturas diferentes. Dessa maneira, o barro lhes permitiu que aguçassem os sentidos (o tato e a visão), desenvolvendo a psicomotricidade e outras habilidades importantes para a sua formação. Para modelar, a estagiária ensinou-as a bater a massa, a enrolar, a furar, a torcer, a puxar e a deixar com um aspecto liso, utilizando os dedos molhados. A criança experiencia uma série de estímulos sensoriais quando toca a massa úmida e levemente fria do barro, passando da experimentação à modelagem em seus voos criativos.

Celeida empregou nobreza à tradição brasileira da olaria ao respeitar o barro como força expressiva de matéria pesquisada, elaborada e mostrada como produto artístico, ou seja, como matéria nobre, de refinamento artístico e de possibilidades poéticas. Seguindo a artista, a estagiária também desvelou as possibilidades artísticas com junto às crianças, dirimindo o preconceito com o material, fator importante na educação em Arte. "Vamos celeidar!".

Referências  

ARANTES, Valéria Amorim (org.). Educação formal e não formal. São Paulo: Summus, 2008. (Coleção Pontos e Contrapontos).

CARVALHO, Lívia Marques. O ensino de arte em ONGs. São Paulo: Cortez, 2008.

COSTA, M. L. Arte do fogo, do sal e da paixão - Celeida Tostes. Rio de Janeiro: FCBB, 2003.

FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Trad. Joice Elias Costa. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.

GAHNEM, Elie; TRILLA, Jaume. Educação formal e não formal. São Paulo: Summus, 2017.

GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e cultura política. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 71).

HENNIG, Isabel. A memória que veio do barro: Celeida Tostes e o saber feminino na cultura popular. Revista Digital Art &, ano XII, n° 16, dezembro de 2015.

LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2005.

TOSTES, Celeida. Biografia. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: https://www.escritoriodearte.com/artista/celeida-tostes. Acesso em: 19 nov. 2022.

ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. São Paulo: Artmed, 2010.

Publicado em 06 de fevereiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

OLIVEIRA, Uillian Trindade; SANTOS, Michele Bastos. Celeida Tostes: o barro em suas formas pelo olhar da criança: prática de ensino em espaço não formal. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 4, 6 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/4/celeida-tostes-o-barro-em-suas-formas-pelo-olhar-da-crianca-pratica-de-ensino-em-espaco-nao-formal

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