Currículo e Educação Física: uma reflexão sobre o espaço-tempo do esporte

Éderson Andrade

Doutor em Educação, pesquisador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Esporte e Exercício Físico (Unemat), professor de Educação Física da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso

Élson Aparecido de Oliveira

Mestre em Educação Física, pesquisador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Esporte e Exercício Físico (Unemat), professor do curso de Educação Física do Univag

Riller Silva Reverdito

Doutor em Educação Física, coordenador e pesquisador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Esporte e Exercício Físico (Unemat), professor do curso de Educação Física da Unemat

Jaqueline Mendes da Silva

Mestra em Educação, pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Esporte e Exercício Físico (Unemat), professora de Educação Física do IFMT

O esporte como fenômeno sociocultural alcança, em múltiplos cenários, a vida das pessoas, podendo ser experimentado de diversas maneiras e em diferentes dimensões (Bracht, 1997; Almeida; Rose Junior, 2010; Marques; Almeida; Gutierrez, 2007; Galatti et al., 2018). O universo esportivo apresenta múltiplas facetas e, por isso, importa-nos refletir sobre seu legado e seu potencial na construção de identidades, especialmente refletindo essa construção sob o viés do currículo e da Educação Física no contexto escolar.

Acreditamos que o contexto escolar é um ambiente potente para acolher e criar aspectos formativos do esporte, dada a sua dinâmica social, pois gera interações em meio a processos formativos e/ou educativos, gerando experiências potentes na constituição do processo de identificação. Contudo, parece-nos coerente presumir que o esporte não transforma o mundo. Mas, como expressão cultural, potencializa tecidos sociais capazes de influenciar de modo positivo os valores pessoais e sociais, sendo capaz de experiências transformadoras em cada pessoa, ou seja, o esporte pode transformar positivamente a vida das pessoas (Reverdito et al., 2020), construindo um mundo efetivamente melhor.

Lançando mão do discurso utilitarista sobre o esporte como o “salvador da pátria”, também cientes de sua complexidade expansiva e fenomenal, é possível afirmar ser errônea a ideia que por si só o esporte seja capaz de mudar todos os problemas das pessoas. Por outro lado, ao deslocar esse discurso para uma nova ótica capaz de compreender e fazer o esporte como construtor de processos de identificação, enxergamos o potencial para um projeto de transformação de realidades a partir do contexto escolar. 

Discutimos aqui que o deslocamento do discurso sobre a força do esporte para um projeto de transformação pode se tornar fértil quando problematizamos o espaço-tempo em que o esporte é difundido e vivenciado. Defendemos então que a escola, no currículo da Educação Física, é um espaço-tempo oportuno para que o esporte seja experimentado em vieses mais profundos, criando raízes e relações diretas com a formação escolar, negando-se a ser dissociado da formação humana.

A escola é um espaço social implantado em espaços sociais singulares. Lugar de encontros com finalidades da compreensão e da construção de saberes historicamente consolidados, mas não se limitando a isso. Consiste em um espaço fértil para novas experiências humanas e, por conseguinte, a construção de processos de identificação (Reverdito et al., 2016). Logo, a escola é espaço-tempo para um currículo, sendo esse marcado de decisões políticas, de escolhas sociais e culturais sobre aquilo que foi produzido pelo ser humano ao longo da história e construído na própria história corrente, como fundamental para a experiência das novas gerações (Galatti et al., 2018).

Logo, sendo a escola com o currículo um espaço-tempo, precisamos ocupá-lo com as experiências desse mundo. Nesse enredo, o esporte sendo um fenômeno humano potente e em ampla expansão, consiste em uma experiência essencial, devendo, portanto, ser oportunizada na escola de forma pedagógica para a formação humana. Nesse sentido, compreendemos que a Educação Física na escola é marcada por múltiplas manifestações da cultura corporal de movimento, sendo altamente profícua para explorar como a vida se conecta em si, com o outro e com o mundo, nos gestos, nos traços marcados nos corpos e nas suas linguagens. Nesse universo, pululam amores, desejos, vibrações e frustrações. A construção do currículo da Educação Física se torna um terreno favorável para a construção de identidades culturais quando as práticas corporais, ou o esporte, enceta para sentir bem ao vivenciar e ressignificar a vida pessoal com a coletiva e o mundo.

Desse modo, precisamos estar atentos quanto a esse terreno, pois nele coabitam formas de projeções identitárias, formas de construção de práticas em Educação Física, capazes de forjar identidades extremistas, reacionárias, críticas, reflexivas, dentre muitas outras formas de se compreender e compreender o mundo, de inferir e interferir no mundo. Podemos dizer que o currículo, de forma sintética, pode ser construído de forma tecnicista, crítica e pós-crítica, sendo que cada uma dessas formas irá nos levar às possibilidades formativas, em possibilidades identitárias (Silva, 1999; Lopes; Macedo, 2011; Neira; Nunes, 2006; 2009). As práticas esportivas no currículo da Educação Física podem construir possibilidades de formações de identidades distintas. Destacamos, assim, o cuidado necessário com tais práticas, o cuidado que os professores de Educação Física precisam para pensar e fazer os tempos e os espaços do esporte como potencializadores para a formação das identidades.

Questionamo-nos, então, a respeito de qual seria o espaço-tempo do esporte no contexto escolar? Perseguindo a questão, este ensaio visa problematizar a construção curricular da Educação Física, cotejando a presença do esporte nessa construção. Iniciamos a discussão em torno da construção do objeto de estudo e trabalho da Educação Física, para problematizar a construção do currículo e seus atravessamentos no esporte. Por fim, buscamos repensar o espaço-tempo do esporte no currículo da Educação Física como o espaço-tempo da construção identitária.

Educação Física: seu objeto e suas manifestações

Falar e discutir sobre a Educação Física no contexto escolar não é uma tarefa fácil. Talvez a dificuldade se inicie pela formação inicial dos seus professores, pois a proximidade e o distanciamento da área de saúde fazem presença durante os anos de formação. Algumas políticas curriculares, tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) e a Base Nacional Comum Curricular (2017), acaloram a discussão e muitas vezes provocam mais dificuldades de entendimento, pois esses documentos apresentam a Educação Física como linguagem, mesmo trazendo aspectos da saúde dentro da área, por isso propomos que cabe aos professores de Educação Física a compreensão do objeto de estudo da área, para que possamos ter práticas pedagógicas profícuas para a formação dos estudantes, promovendo com o esporte e as outras manifestações corporais, uma construção de identidade capaz de fazer bem à pessoa e ao mundo no qual ela está inserida. Entrando nesse terreno, muitas vezes conturbado, defendemos que a Educação Física no contexto escolar tem como objeto de estudo e de ação pedagógica, consequentemente, a cultura corporal de movimento.

Pensamos que é potente para a área a compreensão do movimento como aspecto fundamental à Educação Física, no contexto escolar. Entendemos, assim, que o movimento humano deve ser evidenciado e tratado como linguagem, como dialogicidade humana, afastando-se da compreensão do movimento como produção física de puro deslocamento do movimento pelo movimento.

A Educação Física como linguagem é falar em linguagem corporal como leitura do mundo. Tal leitura é considerada por nós como uma linguagem instável, imprevisível e em permanente movimento do que pode ser significado nas e com as práticas corporais. Sinalizamos assim que, cada gesto, cada movimento, se expressa na linguagem. A forma de ser e estar no mundo, consigo e com os outros, ou seja, as formas de conexão com tudo e todos pelo movimento é carregado de significações. Textos escritos no corpo que possibilitam processos de identificação e de formação.

Assim como Neira (2007) e Nunes (2016), defendemos que o movimento humano tratado no contexto escolar precisa ser compreendido como uma manifestação humana marcada por textos-gestos que comunicam afetos, desejos e paixões que provocam e mediam relações humanas. Portanto, compreendemos o movimento humano como uma linguagem que deve ser trabalhada pedagogicamente no contexto escolar.

Tratar o movimento humano de forma pedagógica é compreender que nele há múltiplas formas de vivências, ou seja, a produção cultural do movimento humano é carregada de significações que podem ser vivenciadas e ressignificadas por cada estudante no contexto escolar. Assim, tratar essa ressignificação de forma pedagógica é possibilitar as leituras e as releituras, fazendo com que os estudantes possam ter acesso a qualquer prática corporal, por meio do ato de movimentar-se ou mesmo pelo ato de conhecer o movimento por meio de gravações, vídeos, produções textuais, produções midiáticas, dentre outras formas.

Passamos a direcionar nossas posições e ações no atravessamento das manifestações corporais diversas, com as danças, as acrobacias, os esportes, as lutas, as práticas corporais de aventura, dentre outras presentes na multidão de manifestações possíveis, como potencialidade de interações com o próprio corpo, com o outro e com o mundo. Essas manifestações da cultura corporal de movimento são textos e gestos que comunicam, que problematizam mensagens no nosso tempo, do tempo passado e do tempo futuro, permitindo que consigamos ver e sentir o corpo falando, ou seja, uma prática cultural, marcada por relações de poder. Assim, partimos na defesa de que o currículo da Educação Física deve ser engendrado nesse contexto do movimento humano, por meio das múltiplas manifestações de práticas corporais, logo, também como cultura, cultura corporal de movimento.

Essa compreensão pode nos levar a entender que o esporte, como uma dessas manifestações, será entendido como linguagem, forma de se expressar, de interagir, de se comunicar, levando o esporte a potencializar identidades de sujeitos que constroem culturas.

Currículo, Educação e esporte

A partir do contexto que enceta o esporte como linguagem e como construtor de identidades, passamos a problematização do currículo e sua relação com a Educação Física e o esporte, potencializando a nossa visão sobre o espaço-tempo do esporte no currículo da Educação Física. Buscamos evidências das aproximações entre as teorias de currículo, os currículos da Educação Física e a presença do esporte nesse lugar.

As teorias de currículo começaram a ser sistematizadas principalmente a partir do início do século passado até meados da década de 1950, podemos sinalizar a forte presença e a pressão das teorias tradicionais de currículo, uma visão mais técnica de compreender e fazer currículos. Talvez possamos dizer que a preocupação central estaria em fabricar currículos, com feroz perspectivação sobre o alcance dos objetivos propostos. A partir de 1960, podemos sinalizar a presença das teorias críticas em currículo, um movimento de questionamento sobre o aparato tecnicista tradicional, trazendo questões como poder e classe social e conceitos potentes para pensar a construção do currículo, a fim de iniciar uma outra forma de pensar o processo educativo para formar pessoas mais críticas ao mundo.

No início da década de 1990, observamos a emergência de aspectos do poder relacionados a questões da cultura e da identidade na construção curricular, aspectos ascendentes, desde esse período pós crítico, com preocupações lançadas em torno da diferença, da diversidade, das questões multiculturais, dentre outros. É importante ressaltar que a chegada de um campo teórico curricular não apagou o criado anteriormente, mas os fez coabitarem nos contextos das pesquisas, em documentos de políticas e em práticas pedagógicas.

Compreendemos, com Silva (1999; 2010), que o currículo é um documento de construção de identidades. Por meio dele são construídas práticas pedagógicas, marcadas por relações de poder que potencializam a formação das pessoas, de como cada sujeito irá se sentir no mundo, interagir com o mundo e inferir no mundo. Destarte, toda e qualquer prática desenvolvida e vivenciada no contexto do esporte será um construtor de identidades. Dessa forma, a Educação Física e o esporte também serão responsáveis pela construção da identidade dos estudantes.

Dentre algumas discussões sobre identidade, nos aproximamos de Stuart Hall (2006), quando ele elabora uma interessante tese acerca da construção da identidade. Nela, o autor compreende que há o sujeito forjado no Iluminismo, sendo totalmente centrado, unificado, contendo, desde o nascimento até a sua morte, um percurso esperado a seguir. Há ainda o sujeito sociológico, ou seja, aquele que se constrói nas redes sociais, em um movimento do eu com a sociedade e, por fim, o sujeito pós-moderno cuja identidade não é fixa, mas se constrói por processos de significação na linguagem e nas culturas (Hall, 2006). Podemos sinalizar que esse fluxo formativo identitário paira entre nossas práticas curriculares do esporte. Dessa forma, o esporte será capaz de buscar a formação das pessoas em torno de possibilidades fixas e fechadas ou de possibilidade abertas aos movimentos do sujeito com o mundo.

Compreendemos que o nosso mundo é altamente flutuante e líquido, marcado por processos de significações, como na linguagem corporal do esporte, por exemplo, que a cada momento se reconstrói surgindo novas formas de praticar ou até mesmo uma outra forma de se praticar. As relações e as construções são movediças. A linguagem consegue construir e reconstruir culturas a todo momento.

Nesse contexto, a construção das identidades refuta a possibilidade de centralização (Bauman, 2006) e mesmo quando tentativas buscam essa fixação, o sujeito corre um grande risco para se constituir. Defendemos assim que a escola, logo, a Educação Física, podem possibilitar práticas pedagógicas para que os sujeitos se sintam inseridos no mundo e garantam o direito de ser nas diferenças, entendendo que a identidade é um processo de significação permanente.

Isso implica dizer que a cada gesto realizado, a cada movimento construído, novos significados também são construídos, eles são para cada um de nós uma forma de comunicação, de dizer algo, de ler algo, de sentir algo. Ao passo que esse mesmo gesto ou movimento está passível de um outro olhar, uma outra forma de ler, pois a identidade construída nas práticas esportivas pode ser constante e nova. O que compreendemos sobre esporte hoje, não necessariamente era o que compreendíamos ontem ou o que vamos compreender amanhã, pois a identidade como processo vai mudando permanentemente.

Como dito anteriormente, até a década de 1950 tínhamos a forte presença das teorias tradicionais no campo do currículo. Essa força construiu movimentos na educação de uma forma geral e na Educação Física. Nesse momento, a Educação Física se aproximou dos aspectos mais técnicos desse campo teórico. Podemos sinalizar que tínhamos um currículo de práticas esportivizadas vivido no contexto escolar, que expressava aspectos do currículo tradicional, com uma construção em torno de conteúdos técnicos, com objetivos orientados para as dimensões físico-motoras e uma avaliação excludente, buscando e evidenciando os mais aptos. Podemos nos perguntar: por que, mesmo com outras formas, essa forma de fazer o currículo do esporte ainda se faz presente na escola? Resposta: porque currículo é uma relação de poder marcada por aquilo que os seus construtores acreditam e defendem.

O currículo tradicional teve como uma das principais referências no Brasil a obra Princípios básicos do currículo e ensino (1976), de Ralph Tyler. Para esse autor, o currículo deve ser construído por meio da seleção de conteúdos que podem ser bem utilizados na sociedade e, dessa forma, o foco deve ser nos conteúdos e objetivos centrados em uma avaliação técnica, focando nos resultados técnicos. Tyler foi um grande influenciador de curriculistas brasileiros, tais como Marina Couto (1966), Dalila Sperb (1966) e Lady Traldi (1997), dentre outros.

Para Marina Couto, por exemplo, currículo “é o inteiro programa de vida de cada aluno. E, segundo sua significação literal, currículo é, de fato, caminhada, corrida, jornada e traz a ideia de continuidade e sequência” (Couto, 1966, p. 1). Para Dalila Sperb, o “planejamento de um currículo escolar inclui a seleção de um conjunto de fins a serem alcançados pela educação” (Sperb, 1966, p. 6). Lady Traldi diz que “o problema do currículo se prende à ideia da escola e daquilo que ela deve executar” (Traldi, 1977, p. 25). Ambas as autoras nos mostram que o currículo é uma questão técnica a ser construída para o contexto escolar alcançar seus objetivos e metas, como proposto por Ralph Tyler.

Nesse contexto, a Educação Física se sustentou (e infelizmente em muitos lugares ainda hoje se sustenta) em um currículo também tradicional. Ancorado em um currículo tradicional de práticas esportivizadas, a Educação Física centralmente se situou em aspectos técnicos do esporte, ou seja, buscar o rendimento técnico dos estudantes. Esse currículo é pautado principalmente na repetição dos movimentos para se chegar a um rendimento esperado.

Essa forma de ensinar e vivenciar o esporte nos encaminha a acreditar na potencialidade da formação de um sujeito centrado em técnicas, centrado em padrões, que possivelmente terá dificuldade de lidar com as mudanças de cenários e com as diversidades que constituem a sociedade. Não queremos dizer que ficará a responsabilidade ao esporte, caso opere a partir dessa perspectiva, de formar essa identidade, mas é importante reconhecer que a sua colaboração será grande. Por isso, defendemos um afastamento desse currículo tradicional, pois precisamos provocar a formação de sujeitos críticos ao mundo que vive e não um mero repetidor de ações técnicas.

Pensando nesse processo de formação crítica, o movimento curricular crítico assume um espaço relevante no Brasil, principalmente a partir da década de 1980. Inundado pelo retorno de vários intelectuais expulsos durante a Ditadura Militar, o Brasil entra na década de 1980 com um fôlego democrático, marcado por lutas que nos levariam a grandes conquistas na educação. No campo do currículo, as teorias críticas começam a emergir e redesenhar o cenário. Esse redesenho impactou também a Educação Física e autores como Lino Castellani Filho, Elenor Kunz, Celi Nelza Zülke Taffarel, Valter Bracht, Carmen Lúcia Soares impactaram diretamente o currículo da Educação Física no Brasil.

Para traçar um debate acerca dos sentidos de currículo e “inaugurar” uma grande discussão sobre currículos críticos no cenário brasileiro, Moreira (1990) apresenta as perspectivas derivadas de alguns aspectos para a produção curricular em sua obra. A primeira perspectiva apresentada é a que se deriva da transferência educacional. Principalmente a partir da crítica ácida de Martin Carnoy, o autor problematiza os processos de colonização curricular, em que há uma transferência perversa de países colonizadores e imperialistas para os países periféricos. Contudo, Moreira (1990, p. 24) destaca que o processo de transferência sempre falha, “principalmente por não levar em conta, as interpretações, a mediação dos contextos culturais, políticos, sociais e institucionais”. Esses estudos questionaram (questionam) a repetição técnica dos conhecimentos, a partir da problematização social capitalista e do contexto social da cultura popular dos sujeitos, dentre outros aspectos que encetam para a construção de identidades críticas.

O currículo, em uma perspectiva crítica, dentre suas várias possibilidades, busca romper com modelos tradicionais de currículo, questionando temas importantes para a formação humana, tais como classe social, ideologias, conscientização e emancipação. Como salienta Silva (1999, p. 30), as teorias críticas de currículo questionam a realidade social e educacional e “desconfiam do status quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e injustiças sociais”.

Na Educação Física, naquele momento da sua história, a obra Metodologia do Ensino da Educação Física (1992) ocupou importante espaço na área, no que se refere a um currículo crítico de Educação Física. Ancorados no materialismo histórico-dialético, com estudos marxistas e gramscianos, os autores propuseram um currículo de Educação Física que provocasse o questionamento das práticas vivenciadas pelos estudantes, buscando que problematizassem as questões sociais em torno da cultura corporal, tendo um olhar crítico e reflexivo sobre o mundo (Soares et al., 1992). Nesse currículo crítico da Educação Física, devem problematizar as desigualdades e injustiças sociais no contexto da cultural corporal, ou seja, deve conter os conhecimentos historicamente produzidos pela sociedade nas lutas, danças, ginásticas, jogos e esportes, sendo eles uma possibilidade de formação crítica aos estudantes.

Destarte, o esporte como uma dessas manifestações, precisa ser ensinado de forma crítica, ou seja, questões sociais que marcam a presença do futebol, por exemplo, não se dão apenas com a reprodução técnica dos movimentos, como acreditam os curriculistas tradicionais. Nesse currículo crítico, cabe ao professor de Educação Física buscar estratégias. Assim, para além de ensinar a prática do futebol, ensinar o futebol para a vida, ensinar sobre o futebol que viola os direitos das pessoas, ensinar o futebol e as relações econômicas que constituem a vida das pessoas. Cabe ressaltar que é preciso compreender que o ensino do esporte deve ser tratado de forma pedagógica.

Nesse cenário, passamos a acreditar que currículos críticos do esporte podem potencializar a construção de identidades que questionem a si, o outro e o mundo quanto às mazelas sociais que constroem nossa sociedade. Essa forma de vivenciar, sentir e aprender o esporte pode permitir que os sujeitos se posicionem frente a situações que retiram os direitos sociais e que possam mudar a direção de políticas sociais para atender às necessidades sociais. Contudo, ainda sentimos a falta, nesse currículo do esporte, de possibilidades de problematização das diferenças de pensar e possibilitar práticas que elevem os direitos de ser, de ser mulher, de ser LGBTQIA+, de ser negro/a, de ter uma identificação que fuja dos padrões eurocêntricos, heteronormativos e colonizadores.

Podemos perceber uma potência maior quanto a essas discussões no campo das teorias pós-críticas de currículo. As teorias pós-críticas de currículo, que assumem múltiplas possibilidades descentradas para problematizar a questão curricular, nos permitem direcionar os olhares para as diferenças que constroem a vida em sociedades. Para Silva (1999, p. 17), o currículo deve ser “compreendido como: 1) uma prática de significação; 2) uma prática produtiva; 3) uma relação social; 4) uma relação de poder; e 5) uma prática que produz identidades sociais”. Logo, podemos perceber uma forte marca de relações de poder que envolvem as construções identitárias estabelecidas por sujeitos descentrados, deslocados das padronizações sociais, que se constroem ao meio da cultura e da linguagem. Assim, o currículo passa a ser compreendido como um texto, como prática de significação. O currículo "torna-se, assim, luta política por sua própria significação, mas também pela significação do que vem a ser sociedade, justiça social, emancipação, transformação social” (Lopes; Macedo, 2011, p. 253).

Na Educação Física, Marcos Garcia Neira tem se apresentado como um dos principais autores que tratam o currículo como processo cultural, como processo de significação, como linguagem que constrói a cultura, que movimenta o currículo cultural em suas múltiplas relações de poder. Nesse sentido, o currículo da Educação Física passa a ser compreendido no contexto de suas manifestações, de forma aberta, um espaço-tempo de dispersão, de construções múltiplas de sentidos, de negociações de identidades construídas e reconstruídas em culturas distintas (Neira, 2007).

Assim, o currículo do esporte refuta qualquer possibilidade de enquadramento do outro, a partir de práticas tecnicistas e tradicionais, tencionando o movimento de construção de identidades que irá negociar suas relações entre sujeitos diferentes. Caberá aos professores de Educação Física pensar e fazer práticas esportivas que evidenciem culturas, que problematizem questões de gênero, de raça, LGBTQIA+, dentre outras demandas da diferença. Ao ensinar o futebol, por exemplo, cabem práticas pedagógicas no ensino do futebol, bem como a necessária problematização na relação da mulher e o feminismo no futebol, do negro e o racismo no futebol, a presença da comunidade LGBTQIA+ e a homo/transfobia no futebol.

O ensino do esporte a partir das teorias pós-críticas de currículo potencializa a possibilidade da construção de identidades abertas aos fluxos culturais, a liquidez das demandas que constroem a sociedade, permitindo relações democráticas entre os sujeitos, criando espaços-tempos de negociações e não de negação do outro. O esporte poderá assim ser capaz de construir sujeitos sensíveis aos direitos dos outros, das diferenças, introduzindo ações que garantam cada vez mais a justiça social.

Cabe salientar que as teorias curriculares não foram sendo eliminadas uma a uma com o surgimento da mais recente. Elas estão presentes, muitas vezes, dentro de uma mesma escola. É preciso pensar que as nossas práticas esportivas e como ensinamos o esporte, tem uma ligação direta com a construção de identidades que podem tendenciar para múltiplos lugares e, muitas vezes, para alguns lugares onde a democracia não habita. Dito isso, precisamos pensar em: como temos ensinado o esporte? Que perspectiva temos assumido? Que identidades estamos construindo? Qual o espaço-tempo do esporte no currículo da Educação Física?

Qual é o espaço-tempo do esporte no currículo da Educação Física?

Chegando até aqui, sentimos a necessidade premente de compreender o que o espaço-tempo do esporte é na vida das pessoas, por isso é preciso retirar o direito de qualquer pessoa em abominar o esporte do contexto escolar, pois ele é formativo e possibilita a formação de sujeitos capazes de tornar o mundo um lugar democrático, com justiça social a todas as diferenças culturais.

Queremos problematizar que o esporte é um construtor de identidades, de formação das pessoas. Mas para chegarmos a esse processo, precisamos fazer esporte em uma perspectiva pedagógica para que possibilite a garantia do direito às pessoas de sentir e viver o esporte com qualidade.

O espaço-tempo do esporte no currículo da Educação Física, carregado de pedagogização em seu ensino, são as linguagens, os textos, os gestos, as interações entre sujeitos que permitem a comunicação, as trocas e os sentimentos que emanam a cada movimento nas práticas esportivas.

Por isso acreditamos que os professores necessitam buscar formas de como fazer com que os estudantes compreendam o esporte como formação, para sentir no esporte um espaço-tempo que pode fluir, criar, produzir, problematizar, inferir sobre esportes em sua vida, na vida com os outros e com o mundo. É esse esporte que queremos que faça presença na escola e que se faz forte, porque faz parte da vida das pessoas como uma das maiores manifestações humanas. O esporte pedagogizado permite o acesso às pessoas, por meio de suas práticas, a viver uma vida melhor.

Esse esporte construído no currículo da escola permite às pessoas sentirem prazer em práticas esportivas, que aprendam o esporte para a vida, sentindo-se bem em praticar esporte para lazer, para qualidade de vida, para se sentir bem de várias formas.

Assim, o esporte no currículo da Educação Física irá possibilitar a transformação das pessoas, para que elas possam transformar o mundo em um lugar melhor. O esporte no currículo da educação é o espaço-tempo da formação identitária das pessoas que estarão no mundo, transformando-o. Nesse espaço-tempo, precisamos nos perguntar: que pessoas estamos formando? Que sujeitos estamos formando em nossas práticas no ensino de esporte?

Isso nos permitirá pensar se o que se ensina como esporte está sob forma técnica. Provavelmente, as respostas do sujeito formado às questões gerais do mundo serão de forma técnica. Se quero pensar em uma formação crítica, solicitação tão presente nos projetos pedagógicos das escolas, preciso pensar no esporte de forma pedagógica crítica.

Essas questões nos permitem pensar: como formar alguém crítico se minhas práticas são técnicas e tradicionais? Fundamentado em esportes tradicionais, como forte presença de aulas que buscam a repetição em técnicas esportivas, o currículo tradicional do esporte possivelmente formará estudantes para serem técnicos em suas respostas, não sendo capazes de problematizar questões diversas, imprevistas.

Na construção de identidades críticas, caberá um currículo do esporte de forma crítica, com ações críticas que permitam aos estudantes questionar e problematizar. Mesmo o currículo do esporte sendo concebido a partir dos conhecimentos historicamente construídos, nessa perspectiva, ele será potencializador de identidades que questionam as mazelas econômicas e sociais do mundo. 

Práticas esportivas forjadas a partir de teorias pós-críticas deverão instalar-se em ações pós-críticas, tais como a problematização de questões de gênero e raça. Não caberá somente a presença dos esportes tradicionais, mas também uma forte presença dos esportes de várias culturas, sendo construído e reconstruído, permitindo a criação de um espaço-tempo democrático, permitindo assim a possibilidade da criação de identidades democráticas que garantam espaços para o diálogo.

Por fim, devemos compreender o esporte como fenômeno que necessariamente faz parte da nossa vida e constitui as pessoas. Por isso, dentro da escola, há de haver um espaço-tempo especial – pois ele faz parte da nossa vida – como direito das pessoas. Um fenômeno que se faz nas culturas, nas linguagens, como construtor de identidades, que forma pessoas quando construído em um contexto de formação humana e pode mudar os rumos da democracia no mundo. Esse é o espaço-tempo do esporte, um espaço-tempo pedagogizado que é cultura, linguagem e construtor de identidades.

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Publicado em 06 de fevereiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

ANDRADE, Éderson; OLIVEIRA, Élson Aparecido; REVERDITO, Riller Silva; SILVA, Jaqueline Mendes da. Currículo e Educação Física: uma reflexão sobre o espaço-tempo do esporte. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 4, 6 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/4/curriculo-e-educacao-fisica-uma-reflexao-sobre-o-espaco-tempo-do-esporte

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