"Eu esqueci o nome, mas ele é idoso, tem bigode e é bom em Matemática”: cientistas, gênero e raça em debate com crianças do Ensino Fundamental I
Rafaela Alves Luzia da Silva
Doutoranda em Ensino de Ciências (Propec/IFRJ - Câmpus Nilópolis), professora do Departamento de Anos Iniciais do Colégio Pedro II
Maria Cristina do Amaral Moreira
Doutora em Educação em Ciências e Saúde, professora e coordenadora do (Propec/IFRJ - Câmpus Nilópolis)
Há espaço para a aproximação entre o universo infantil e o universo da Ciência, desde a mais tenra idade. Essa proximidade ocorre de forma tácita, por meio de vivências do cotidiano, se considerarmos o componente curricular de Ciências, presente no ambiente formal das instituições escolares. Os diferentes momentos vividos, somados aos diversos estímulos aos quais as crianças são expostas, colaboram para a construção do imaginário do público infantil a respeito das Ciências e dos cientistas. Este artigo considerará, em especial, a imagem de cientistas que habitam o imaginário de um grupo específico de crianças do Ensino Fundamental I.
O debate acerca das visões que os estudantes trazem dos cientistas é antigo, porém acreditamos que não esteja ainda esgotado. Mead e Métraux (1957) foram os pioneiros nesse tipo de investigação, tendo estudantes do Ensino Médio dos Estados Unidos como amostras. Essa iniciativa inspirou Chambers (1983) a desenvolver o método Draw-a-Scientist Test (DAST). Ele criou indicadores para analisar desenhos de cientistas feitos por crianças do Canadá, dos Estados Unidos e da Austrália. De Meis et al. (1993) compararam desenhos de diferentes países, incluindo a realidade oriunda de estudantes brasileiros, e Castelfranchi et al. (2008) propuseram uma evolução dinâmica e um aprofundamento do DAST para conhecer a percepção de crianças italianas que participavam de grupos focais.
Apesar dos diferentes métodos aplicados em culturas diversas, a visão estereotipada do cientista foi percebida em todos os trabalhos previamente citados. De modo geral, o cientista representado nos desenhos analisados é um homem que usa jaleco e trabalha em um laboratório cercado por tubos de ensaios e experimentos mirabolantes. Os resultados da pesquisa desenvolvida por Costa, Silva e Arroio (2012, p. 5) não foram diferentes. Os autores destacam a ausência de cientistas mulheres, indicando um “padrão significativo em desenhos da característica masculina, do gênero masculino como cientista o que pode abrir reflexões para discutir o machismo ainda intrínseco na sociedade que subjuga a mulher perante a carreira científica”.
A discriminação de gênero apontada pode ser relacionada com uma das sete visões deformadas do trabalho científico de Gil Pérez et al. (2001), que é a noção individualista e elitista da Ciência. Nesse caso, apenas o cientista – homem e gênio – é o detentor do saber, saber que prevalece em detrimento do trabalho coletivo, em cooperação. Essas visões foram construídas a partir de concepções epistemológicas equivocadas, impactando negativamente tanto a produção do conhecimento científico como a qualidade do ensino de Ciências.
Nesse processo de construção do que seja um cientista para crianças, a literatura, os filmes e os desenhos animados ocupam um importante espaço e merecem destaque neste debate. Para Castelfranchi et al. (2008), o modo como a mídia retrata os cientistas contribui não só para a construção da imagem do cientista, como para uma percepção pública do que sejam as Ciências.
O estereótipo do cientista louco, excêntrico e gênio que irá salvar o mundo por meio das invenções e das explosões criadas em laboratórios pode ser encontrado em diferentes personagens de produções infantis, como a Luna (protagonista do desenho Show da Luna), o Dexter (protagonista do desenho Laboratório de Dexter) e Flint Lockwood (protagonista do filme Tá chovendo hambúrguer).
Figura 1: Exemplos de cientistas do universo infantil
Fonte: Revista Crescer, Desciclopédia e Fandom.com.
Para além da questão machista, acrescentamos o recorte racial a essa discussão: cientista homem, gênio, superior e de pele branca. Esse estereótipo está impregnado de simbologia, visto que vivemos em uma sociedade estruturalmente racista. O racismo pode ser compreendido como
uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam (Almeida, 2019, p. 22).
Nessa relação de poder, são os negros, aqui compreendidos como a soma daqueles que se autodeclaram pretos ou pardos, seguindo os critérios de cor ou raça do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que acumulam prejuízos irreparáveis em diferentes setores da sociedade. No Brasil, o mito da democracia racial anuncia que somos todos iguais. No entanto, na contramão dessa afirmação, a cor da sua pele pode definir se você será alvejado pela polícia ao comemorar um emprego, receber chibatadas em plena luz do dia enquanto trabalha, correr maior risco de sofrer violência obstetrícia, entre tantos outros casos de racismo que se avolumam nas cenas do cotidiano.
Cavalleiro (2001, p.141) menciona o racismo e o machismo como temas polêmicos e difíceis para se estabelecer um diálogo. Todavia “são temas que, por causa de sua importância, não podem permanecer fora da pauta de discussões sobre educação e cidadania”. A escola está intrinsicamente ligada a essa abordagem, pois possui um importante papel na formação do sujeito crítico. Contudo, no papel de equipamento de uma sociedade apresentada como estruturalmente racista e machista, ela reproduz a lógica do menosprezo, sobretudo, às mulheres negras.
Dando ênfase ao âmbito epistemológico, os saberes das mulheres negras foram, e seguem sendo, invisibilizados também na área da Ciência, pois,
sendo a ciência um espaço de poder, a representação de seu desenvolvimento foi associada à imagem de sujeitos sociais aceitos e hegemônicos. Assim sendo, todos que estavam foram desses padrões, mas que buscavam se vincular ao processo de desenvolvimento do conhecimento científico, eram rechaçados, inferiorizados e silenciados (Pinheiro, 2020, p. 13).
Sendo assim, entendemos o currículo de Ciências como uma das heranças da colonização a qual fomos submetidos. Esse currículo retrata a colonialidade nas três dimensões apresentadas por Pinheiro (2020): as dimensões do ser, do poder e do saber. Isso torna invisíveis aqueles que fogem ao padrão europeu (dimensão do ser), tornando o conhecimento europeu, produzido por homens brancos, superior às demais raças (dimensão do poder), estabelecendo que o saber europeu é o verdadeiro, desconsiderando assim todos os demais (dimensão do saber).
Felizmente, muitos autores têm direcionado suas pesquisas ao enfrentamento de desigualdades que também estão enraizadas no espaço escolar. Dialogamos, especialmente com Cavalleiro (2001), Gomes (2012) e Pinheiro (2021; 2023), buscando incentivar educadores e demais interessados no tema pensando no desenvolvimento de alternativas pedagógicas que rompam com o padrão de colonialidade atualmente estabelecido. É urgente que os currículos escolares brasileiros apresentem a população negra para além da figura do escravizado.
Considerando o contexto apresentado, este artigo tem como objetivo compreender e apresentar a visão de um grupo de crianças a respeito dos cientistas para fomentar o desenvolvimento de outras propostas ao longo do ano letivo. Este é o recorte de um trabalho mais amplo, e seus resultados fomentarão a pesquisa de doutorado em Ensino de Ciências, realizado no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro ((Propec/IFRJ).
A tese, ainda em desenvolvimento, apresentará interseções entre o Ensino de Ciências e a perspectiva étnico-racial. Com isso, diferentes propostas pedagógicas serão elaboradas e organizadas em uma revista de divulgação científica para crianças, produto educacional da pesquisa. Cabe ressaltar que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (registrada na Plataforma Brasil sob o n° 69923023.5.3001.9047) das instituições envolvidas na proposta e seguiu todos os procedimentos obrigatórios exigidos pelas normas das Resoluções nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde.
Gênero e raça no ensino de Ciências e o currículo escolar
O contexto que motivou o desenvolvimento das atividades e, consequentemente, a escrita deste artigo foi o ensino de Ciências voltado para o público infantil, em especial os estudantes do Ensino Fundamental I. A temática é cercada de questões relevantes, como a reprodução, por parte dos docentes, da visão elitista e individualista das Ciências, apresentadas por Gil Pérez et al. (2001).
Ainda que a sala de aula não seja o único espaço para que a imagem do cientista seja re(pensada), a aula de Ciências é parte importante e significativa do processo de ensino. É imprescindível que se esteja alerta para as possibilidades de ensino que não estão apenas impressas nos livros didáticos, uma vez que muitas delas não estejam presentes nas atividades e nas reflexões sugeridas por esse material educacional.
No que concerne à relação entre o conhecimento escolar e o científico, Lopes (2007, p. 191) enfatiza que, tanto nas Ciências Naturais como nas Ciências Sociais, “a teoria não é uma rede de pescar dados pois os dados não estão disponíveis, de forma acabada, em real suposto como tal, a despeito da interpretação”. Em outras palavras, não é por meio de dados desconexos que vamos entender a Ciência. Pensar num cientista branco, do sexo masculino, trabalhando sozinho e mergulhado em tubos de ensaio e em aparelhos característicos de laboratório esclarece pouco a respeito do que seja o trabalho científico. Portanto, a Ciência é social e humana e precisa de exemplos contemporâneos a partir de pessoas reais.
Somado a isso, um fator igualmente preocupante é a questão do currículo como campo de disputa que reforça a manutenção de silenciamentos e de apagamentos, como o das histórias pretas em relação à Ciência. De acordo com Arroyo (2011, p. 138), “os currículos são pobres em experiências porque são pobríssimos em sujeitos”. Esse estereótipo de cientista, esconde de conhecimentos culturais e de valores, as identidades dos sujeitos. Logo, incluir experiências significativas com cientistas reais e seu trabalho, ao longo da história, mostra o que é importante conhecer daqueles que falam desse conhecimento.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é o documento que define as competências essenciais para o desenvolvimento dos currículos da Educação Básica. Suas diretrizes indicam os conhecimentos, as habilidades, as atitudes e os valores para as etapas Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Ele se tornou a “referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares” (Brasil, 2017, p. 8). O documento foi promulgado em 2017 (etapas Educação Infantil e Ensino Fundamental) e em 2018 (etapa Ensino Médio), tendo a sua versão final orientada pelos “princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (Brasil, 2017, p. 7).
O desenvolvimento do documento oficial demorou três anos para ser concluído e aceito após a terceira versão. Todo o processo de elaboração foi marcado por inúmeras disputas políticas e conflitos de interesses epistemológicos. O site oficial da BNCC afirma que o processo de construção foi democrático, ressaltando a participação de diferentes segmentos e profissionais. No entanto, ao expor a metodologia da construção da BNCC, Aguiar (2018, p. 15) afirma que “fica clara a metodologia de construção linear, vertical e centralizadora”.
Nesse campo de batalha, os temas voltados à diversidade tiveram pouco ou nenhum destaque na versão final do documento, se configurando como um problema, porque
a luta pela universalização da educação no Brasil faz-se acompanhar por debates e políticas relacionadas ao respeito a diversidades e especificidades, como quando se considera a educação indígena, a educação do campo, questões de gênero e sexualidade, a luta contra o racismo e contra a homofobia. Tais temas, longe de dirigirem-se a segmentos específicos da sociedade, integram a agenda de uma escola que se quer plural e democrática, base, por sua vez, de relações de mesma natureza (Adrião; Peroni, 2018, p. 49).
As expectativas por uma política pública nacional que formalizasse a importância de pautas sociais, como as apontadas, foram frustradas com a publicação de um documento que não promoveu rupturas. A BNCC, que se denomina democrática e em prol de uma sociedade justa e inclusiva, eliminou os debates de gênero e raça, atendendo a interesses conservadores.
Diferente da BNCC, a Lei nº 10.639/03 é bem explícita no que se propõe. Tendo sido promulgada em janeiro de 2003, tornou obrigatória (nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, oficiais e particulares), a inclusão do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, considerando
o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil (Brasil, 2003).
Após 20 anos de implementação da lei, ainda são muitos os desafios encontrados para efetivá-la. O mais geral e relevante deles é o da interpretação errônea que os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira devam ser ministrados exclusivamente nas áreas de Educação Artística, Literatura e História brasileira, quando, na verdade, a lei indica especialmente essas áreas, sem excluir as demais. Esse é um dos equívocos apontados por Pinheiro (2021) que entende que, por essa razão, as áreas de Matemática e Ciências da Natureza acabam por distanciar a temática étnico-racial de suas aulas.
Portanto, realizamos uma aproximação do ensino de Ciências com a pauta étnico-racial e de gênero, sobretudo pela disseminação de exemplos de cientistas negras brasileiras. Ao apresentar seus rostos e as investigações, que realizaram com sucesso e convergem em contribuições à sociedade, incluímos as experiências reais, apontadas por Arroyo (2011), ao “contar a história que a história não conta”, trecho retirado do samba-enredo campeão do carnaval carioca em 2019, “Histórias para ninar gente grande”, da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. A música denuncia o apagamento dos negros que construíram o Brasil, apresentando o apagamento histórico e social que também ocorre em currículos e livros escolares. Esse autor reforça que
há coletivos que não são reconhecidos como atores, apenas como beneficiários agradecidos ou mal agradecidos de uma história cultural, pedagógica, política, econômica, construída e conduzida pelos grupos hegemônicos detentores do poder, da terra, da riqueza, ou do conhecimento e da ciência e da cultura (Arroyo, 2011, p. 138).
A frase “Aonde a gente não se vê, a gente não se pensa”, da doutora Bárbara Carine Soares Pinheiro enquanto palestrava na mesa Mulheres, Epistemologias e as Novas (Re)Configurações da Ciência para um salão lotado de olhos e ouvidos bem atentos, soma-se ao que discutimos sobre a aproximação do ensino de Ciências e a pauta étnico-racial e de gênero. A palestra, realizada no XIV Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (Enpec), trouxe a relevante discussão da presença de mulheres na produção do conhecimento, na luta por uma sociedade diversa, cujo conhecimento eurocêntrico é hegemônico.
A frase, falada em um contexto de representatividade, foi fonte de inspiração na construção teórica desta pesquisa. Essa fala ainda provocou reflexões que extrapolaram o escopo teórico, alcançando possibilidades práticas, com um projeto voltado para meninas negras do Ensino Fundamental I. Levar a imagem e os saberes oriundos das mulheres negras para o lugar de visibilidade é direito e se tornou um compromisso de pesquisa. Entendemos que o currículo escolar deve sustentar esse compromisso.
Na figura 2, exemplificamos, por meio da biografia de cientistas negras no currículo de Ciências, que há a inclusão de sujeitos sociais pelo viés das questões étnico-raciais e de gênero pelos conhecimentos legítimos e válidos.
Figura 2: Exemplos de cientistas negras brasileiras
Fonte: Instagram, 2023.
A construção da autoestima do aluno negro passa pela sua compreensão a respeito de como um indivíduo pertence a uma cultura coletiva. Cabe ao professor ainda estimular o “desenvolvimento desta criança em seu conjunto, observando os aspectos emocionais, cognitivos, físicos e culturais. [...] Romper com os preconceitos e estereótipos, rejeitar estigmas e valorizar a história de cada um” (Romão, 2021, p. 163).
Metodologia
A ideia para a realização do Draw-a-Scientist Test (DAST) surgiu a partir da leitura do já consagrado trabalho Stereotypic images of the scientist: The draw-a-scientist, de Chambers (1983). Ainda que algumas adaptações tenham sido colocadas em prática pelas autoras, mantemos diversos elementos da proposta original, como: a aplicação da atividade pela professora regular da turma e o fato de não haver nenhuma discussão prévia sobre o tema.
Este trabalho foi realizado no início do ano letivo de 2022, em uma instituição pública federal da cidade do Rio de Janeiro. Na ocasião, a docente da disciplina Laboratório de Ciências e autora deste artigo promoveu diferentes atividades de diagnose com as suas duas turmas do 3º ano do Ensino Fundamental I. As atividades foram desenvolvidas com o intuito de conhecer as habilidades e as concepções de Ciências apresentadas pelos estudantes para, assim, elaborar propostas educacionais assertivas às turmas em questão. Os estudantes, público-alvo deste estudo, totalizaram 50 crianças em idade escolar, entre oito e nove anos.
Entre as atividades realizadas pelos estudantes, investigaremos duas propostas voltadas para a temática. Ambas foram respondidas individualmente pelos estudantes em um caderno específico, montado pela docente em sala de aula e no mesmo dia, sem a sua intervenção.
A primeira atividade realizada foi intitulada Você Conhece um Cientista? e solicitava que os estudantes registrassem o nome de um cientista já conhecido por eles.
Figura 3: Você conhece um cientista?
A atividade seguinte, intitulada Desenhe um Cientista, incentivava que as crianças desenhassem um cientista a partir de suas imaginações. O enunciado estimulava o uso da imaginação e uma atenção especial aos detalhes (Figura 4). Mesmo que esse pedido tenha sido reforçado oralmente pela docente, foi respeitado o desejo daqueles que optaram por não desenhar detalhes. Vale ressaltar que diferentes recursos estavam disponíveis para serem utilizados nos desenhos, como canetinhas, lápis de cor e giz de cera, incluindo uma caixa específica com diferentes cores de tons de pele.
Figura 4: Desenhe um cientista
Considerando o exposto, a presente proposta se classifica como uma pesquisa empírica de abordagem qualitativa, uma vez que “responde a questões muito particulares [...], ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes” (Minayo, 2012, p. 21). A análise dos dados oriundos do DAST será realizada a partir da metodologia qualitativa denominada Análise de Livre Interpretação (ALI). Esse método favorece a atuação do professor-pesquisador da área de ensino de Ciências, possibilitando a liberdade interpretativa “entre teoria e prática, entre refletir e fazer” (Anjos; Rôças; Pereira, 2019, p. 27).
Assim, as análises foram realizadas considerando-se a versão original das respostas e dos desenhos entregues pelos discentes. Tendo em vista o objetivo dessa pesquisa, o exame dos 50 desenhos foi realizada a partir de três principais indicadores: o gênero do cientista desenhado, a cor da pele indicada no desenho e os elementos que compõem o cenário desenhado.
Resultados e discussão
A respeito da categoria “gênero”, vale destacar que, até o momento de realização desta atividade, apenas professoras mulheres haviam ministrado a disciplina Laboratório de Ciências para esse grupo de estudantes, o que pode ter influenciado na representação do cientista. Embora a imagem de mulheres tenha aparecido em um número significativo (Figura 5), o mesmo não ocorreu quando a solicitação foi pelo nome de cientistas. A maior parte da turma não conhece cientistas. Aqueles que conhecem se limitaram a cita um único cientista, Albert Einstein, e a mencionar as professoras do laboratório de Ciências ou personagens de desenhos e filmes (Quadro 1).
O título deste artigo foi inspirado na resposta de uma das crianças a essa pergunta: “Eu esqueci o nome, mas ele é idoso, tem bigode e é bom em Matemática”. Mesmo não lembrando o nome de Einstein, sabia que ele era um cientista.
Quadro 1: Nome dos cientistas
Cientista |
Recorrência |
Não conheço |
34 |
Albert Einstein |
7 |
Professoras do laboratório de ciências |
6 |
Frankenstein |
2 |
Deixou em branco |
2 |
Cientista do filme Tá chovendo hambúrguer |
1 |
Não identificado |
1 |
Ainda no indicador “gênero”, analisamos as características dos desenhos dos estudantes, como roupa, bigode, cabelo, indicação do nome, entre outros detalhes. A incidência do gênero masculino foi maior, ainda que a diferença para o gênero feminino não tenha sido significativa (Figura 5).
Figura 5: Indicador gênero
A Figura 6 apresenta dois dos desenhos feitos pelos estudantes. Foi possível perceber inspiração em desenhos animados e em personagens de história em quadrinhos e animes. Uma das crianças identificou que a personagem do seu desenho é o Albert Einstein (lado esquerdo).
Figura 6: Desenhos de cientistas
A categoria “cor da pele” foi analisada a partir das cores utilizadas para pintar os cientistas desenhados. A maioria dos estudantes optou por não colorir o desenho, outros utilizaram as cores rosa, marrom, colorido e preto (Figura 7).
Figura 7: Indicador cor da pele
Compreendemos que essa é a mais subjetiva das categorias, considerando que os estudantes não foram induzidos a colorir os desenhos antes da atividade ou questionados pelas suas escolhas após a finalização da proposta (Figura 8).
Figura 8: Desenho de cientistas
A terceira e última categoria buscava compreender a percepção dos estudantes do universo de um cientista. Para tal, foram analisados roupas, objetos e demais detalhes presentes nos desenhos. A figura 8 indica que parte significativa dos estudantes entende o cientista no contexto de um laboratório (Figura 9).
Figura 9: Indicador cenário
A Figura 10 destaca dois exemplos do cenário apresentado. Os estudantes desenharam os cientistas cercados de elementos relacionados a laboratórios: luva, jaleco, óculos, tubos de ensaio, líquidos com bolhas, entre outros. Aqui, cabe mais uma ressalva. A atividade proposta foi realizada dentro de um laboratório de Ciências, com a presença de vários dos elementos destacados pelos estudantes.
Figura 10: Desenho de cientistas
A atividade de diagnose apresentada foi realizada no início do ano letivo de 2023. Os resultados exibidos neste artigo contribuíram para compreendermos a percepção que este grupo de crianças do Ensino Fundamental I possui a respeito dos cientistas e do fazer científico. Esse entendimento serviu de insumo para o planejamento de todo o ano letivo da disciplina Laboratório de Ciências. Desse modo, foi possível pensar e promover novas atividades, com o propósito de ampliar o repertório dos estudantes do tema e colaborar com a autoestima de meninas negras.
Conclusão: um olhar (esperançoso) para o futuro
Acreditamos que “para fazer ciência com as crianças e para as crianças (como educadores, divulgadores ou escritores) é importante, antes de tudo, escutar as crianças, entender o que elas sabem sobre a ciência e os cientistas e, a partir daí, construir um diálogo” (Castelfranchi et al., 2008, p. 14). A etapa de escuta das crianças foi apresentada neste texto e pretendemos publicar os diálogos construídos a partir dessa etapa inicial em artigos futuros.
A análise das atividades propostas aponta à existência de diferentes aspectos relacionados à imagem do cientista. O resultado evidencia que o cientista que habita o imaginário infantil tem o estereótipo de um homem, dentro de um laboratório, cercado por tubos de ensaio e experimentos mirabolantes. Para além da questão de gênero, o recorte de raça também representa um ponto importante. O fato de nenhum cientista negro ter sido lembrado, somado ao fato de poucos cientistas negros terem sido representados nos desenhos, indica a existência de um terreno fértil para que o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira seja promovido também a partir do ensino de Ciências, em consonância com a Lei nº 10.639/03.
Muito embora o grupo de 50 estudantes represente uma amostra relativamente pequena, o resultado apresenta insumos valiosos para uma prática docente que se proponha romper com a lógica predominante de gênero e de raça já estabelecida em nossa sociedade. A iniciativa apresentada aqui possibilitou a aproximação da compreensão que os estudantes têm desse tema e permitiu que outras propostas pedagógicas fossem pensadas ao longo do ano letivo, em especial as voltadas ao reconhecimento de mulheres negras cientistas e suas contribuições para a sociedade brasileira.
O racismo e o machismo presentes no cotidiano da nossa sociedade, inclusive no ambiente escolar, nos atravessam e nos desanimam. Queremos, no entanto, concluir este artigo com um olhar esperançoso para o futuro, apresentando alguns exemplos atuais e significativos para se pensar o ensino de Ciências com crianças.
Refletindo sobre a importância das meninas negras se verem em determinados espaços, a Figura 11 apresenta, respectivamente, a boneca Barbie da doutora Jaqueline Góes e a série da Netflix Super-heroínas da equipe 4. Enfatizamos a relevância que a mídia possui na construção do imaginário infantil a respeito do cientista. Dessa forma, os dois exemplos se tornam relevantes, social e pedagogicamente.
Figura 11: Para meninas negras se verem
Fonte: Amazon, Editora Mostarda.
A Figura 12 apresenta duas sugestões voltadas para educadores comprometidos com as problemáticas de gênero e de raça apresentadas. O livro Como ser um educador antirracista, escrito por Bárbara Carine Soares Pinheiro, e a coleção Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas, escrita por Flávia Martins de Carvalho, podem colaborar com as reflexões e as ações no fazer docente.
Figura 12: Para educadores comprometidos refletirem
Fonte: Amazon, Editora Mostarda.
Este texto é o nosso convite para que docentes que ensinam Ciências para crianças do Ensino Fundamental I contribuam com a descolonização dos currículos escolares das instituições brasileiras.
Construir uma identidade negra positiva nas crianças, em especial nas meninas negras, é uma tarefa que também passa pela nossa prática docente.
Referências
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Publicado em 26 de novembro de 2024
Como citar este artigo (ABNT)
SILVA, Rafaela Alves Luzia da; MOREIRA, Maria Cristina do Amaral. "Eu esqueci o nome, mas ele é idoso, tem bigode e é bom em Matemática”: cientistas, gênero e raça em debate com crianças do Ensino Fundamental I. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 43, 26 de novembro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/43/eu-esqueci-o-nome-mas-ele-e-idoso-tem-bigode-e-e-bom-em-matematicar-cientistas-genero-e-raca-em-debate-com-criancas-do-ensino-fundamental-i
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