Professor, pesquisador ou ambos? Apresentação do problema

João Lucas Poiani Trescentti

Mestre em História (Unesp)

Circula com bastante frequência na internet uma entrevista que Clóvis de Barros Filho concedeu a Jô Soares (1938-2022) em 2013, na qual apresentou – com a didática e irreverência naturais de seu estilo de orador – alguns dados de sua biografia. Aliás, essa entrevista passou a ser reproduzida em várias de suas palestras, também disponíveis, integral ou parcialmente, nas redes. O principal propósito do professor naquele momento foi exemplificar como a Filosofia compreende (ou pode contribuir para compreender) o sentido das escolhas pessoais; para isso, recorreu à memória afetiva de seus 13 anos de idade, quando, motivado por um seminário que ministrou na aula de Geografia do colégio, identificou a oportunidade de tornar-se professor.

Embora trajetórias pessoais sejam singulares, cumpre destacar que minha iniciação à docência foi parecida. A inclinação pela leitura e o interesse em explicar os assuntos aprendidos na escola desabrocharam, coincidentemente, na mesma idade do professor, o que se aprofundou ao longo do Ensino Médio, especialmente em minhas apresentações de seminários em aulas de História, Filosofia, Sociologia e Geografia. Quando percebi, já não prestava atenção apenas no conteúdo das aulas, mas também em como cada docente abordava o tema, a maneira de falar, o comportamento ético diante da turma, os exemplos utilizados para a explicação do conteúdo, bem como a capacidade de instigar o aprofundamento das questões com vistas a expandir o horizonte reflexivo dos estudantes, incorporando, ainda que deliberadamente, práticas pedagógicas.

A despeito de, confesso, ter flertado com o Jornalismo, optei por prestar vestibular para História, motivado pela ideia de que a profissão, a escola e o ambiente de trabalho exigem compromisso intelectual. O ingresso no curso de História da Unesp coincidiu com a saída de minha cidade natal, no interior de São Paulo, porém bem menor que Assis, onde passei a residir. Em pouco tempo, constatei que minha escolha foi acertada, diferente de alguns colegas que, logo no início, perceberam que aquela não era “sua praia”.

Nos primeiros meses do curso, confirmei minha ideia inicial de que a função do professor é ser um estudioso de determinado tema, fazendo da escola um ambiente de divulgação e aprofundamento de saberes. A formação universitária que recebia visava contribuir sobremaneira para a ampliação do conhecimento, uma vez que a instituição oferecia aulas com docentes de sólida formação, além de dispor de biblioteca e centros de documentação com vasto acervo, e eventos cotidianos que abordavam os mais variados temas. O jovem inquieto (e até um pouco “reclamão”, admito) que criticava a cidade natal pela falta de uma biblioteca pública bem organizada, espaços culturais como cinema, teatro, museus e pela falta de vontade política (tanto dos civis quanto de seus representantes) para a ampliação de debates sobre a pluralidade dos saberes, encantou-se com as novas possibilidades. Noutras palavras: eu poderia reaver o tempo perdido lendo, escrevendo e me formando intelectualmente a partir do que a universidade ofertava.

Se os quatro anos de Graduação confirmaram a escolha da docência, também me instigaram a aspirar à Pós-Graduação, cuja natureza se fundamenta na pesquisa – possibilidade que, aliás, eu conhecia, mas pouco (ou nada) compreendia antes de ingressar na Unesp. No entanto, o término do curso, em 2017, e o início do Mestrado, em 2019, coincidiram com o avanço do desmonte das políticas públicas, algo ainda mais evidente com a pandemia da covid-19. Nesse momento, já havia deixado Assis e retornado para minha cidade de origem. O encantamento do início da Licenciatura deu lugar ao descontentamento com o meio de inserção, cuja estrutura social e das mentalidades ora reveladas mantinham-se intactas. Fantasmas do passado pareciam ter regressado para me assombrar.

Concomitantemente ao Mestrado, em boa parte realizado de forma remota, lecionei na Educação Básica. Pensei que essa seria a oportunidade perfeita para confirmar minha hipótese inicial: a escola deve dedicar-se à construção e à divulgação do saber, constituindo-se em um ambiente de estudos e formação de conhecimento crítico, porque científico, cultural, artístico e filosófico. No entanto, identifiquei o oposto: um abismo entre a teoria e a prática, entre a universidade e a escola. Por terem consciência dessa desconexão, as instituições universitárias têm-se mobilizado para debater o assunto, ainda que, a meu juízo, tardiamente. Um exemplo é o recente colóquio da própria Unesp, intitulado "As Humanidades e a formação do pensamento crítico".

A iniciativa é louvável e contribui significativamente para a ampliação do debate, pois propõe pensar a universidade em função de seus três pilares (ensino, pesquisa e extensão) e sua relação com a sociedade, além de refletir sobre a permanência estudantil. No entanto, há dois fatores que merecem atenção:

  1. não se pode acreditar que apenas divulgar o assunto na internet – o que, de fato, tende a favorecer quem não tem condições de se deslocar até a sede do evento – seja sinônimo de compreensão do tema ou de sensibilidade pela causa por parte do público;
  2. o debate continua circunscrito aos que fazem parte do corpo institucional (docentes, discentes e servidores), uma vez que faltam propostas para os egressos, sejam da Graduação ou da Pós-Graduação, cuja formação é qualificada, mas socialmente desvalorizada, especialmente no caso dos estudantes de Licenciatura.

É verdade que o tripé que sustenta a academia envolve atividades de naturezas diversas, todas fundamentais, mas que exigem competências variadas para sua execução. Por isso, não se pode desconsiderar, por exemplo, o público-alvo do texto ou da fala, ou seja, ter em mente o leitor ou telespectador idealizados. No entanto, a questão parece ser ainda mais complexa. Isso pode ser explicado com o exemplo do curso de História: os estudantes, já na Graduação, são instigados a pensar como historiadores, prática que se intensifica na Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado). A pesquisa em História é realizada a partir da delimitação de um problema, da seleção de documentos e de seu rigoroso tratamento metodológico, com o objetivo de compreender o passado e a atuação de seus agentes, o que resulta na identificação da historicidade dos eventos pretéritos, confirmando ou propondo novos caminhos na historiografia.

O texto historiográfico exige rigor ético e competência de análise abstrata e, embora convide à reflexão sobre o presente, sua natureza não está ligada à análise conjuntural nem ao desejo de atender, a bel-prazer, anseios ou expectativas de grupos sociais, políticos ou econômicos. O historiador pode partir de uma inquietude atual, mas, ao escrever, não deve perder o fio condutor do período em estudo e a pergunta que pretende responder, ou seja, não se trata de uma escrita livre de regras e em função da conjuntura. Eis o enunciado do problema: após ser ensinado a pesquisar e a incorporar a prática do ofício de historiador, o egresso se vê em um “não lugar”, ou seja, não encontra espaço no campo acadêmico, mas sim na Educação Básica (pública ou privada, e se tiver muita sorte), onde o ambiente de trabalho apresenta cobranças diferentes da academia, além de, muitas vezes, ser hostil à intelectualidade, à prática de pesquisa e até mesmo ao ensino.

É justamente nesse momento que se torna clara a distinção entre docência e pesquisa, não somente no sentido da natureza do ofício, mas também em função de uma hierarquia, na qual a pesquisa ocupa o topo. A docência é vista como secundária, como se sua prática não contribuísse para a realização das próprias pesquisas. Esquece-se que a troca e o debate de ideias com colegas e alunos permitem criar e inovar, uma vez que,

>>raramente, grandes invenções são produto único e exclusivo de uma mente supostamente genial; quase sempre, ao contrário, elas dependem de ambientes sociais favoráveis à criatividade, à competição e à colaboração, e invariavelmente atendem a interesses sociais capazes de estimulá-las. Se não fosse assim, a invenção seria uma simples excentricidade e não um artefato cultural importante (Pimenta, 2021, p. 42).<<

No caso do ensino público paulista, o desafio para o egresso em História é: como aplicar o que foi aprendido na Universidade, se ao deixar o campo acadêmico o aluno é visto apenas como um replicador de conteúdo, inserido em um ambiente de trabalho completamente desfavorável ao ensino e à pesquisa? Esse é o dilema a ser enfrentado, cujas propostas de solução precisam ser discutidas o mais prontamente possível, já que o Ensino Básico carece de ser repensado em sua estrutura e como política de Estado, não como algo intermitente.

Se a intenção deste texto foi apresentar o problema, não me furto a levantar questões que possam instigar reflexões sobre estratégias propositivas. Por exemplo:

  1. Se há ao menos uma escola em cada cidade do estado, por que elas não podem se constituir em espaços autônomos de pensamento e em centros que acolham as mais variadas formas de manifestação intelectual disponíveis na sociedade, como cinema, teatro, exposições, ciclos de palestras e leituras?
  2. Em que medida a universidade pública e as associações de área (Anpuh, Anpocs, Anphlac) podem contribuir para a construção e integração dos espaços escolares, tornando-os receptivos à ação intelectual, favorecendo a participação de docentes distantes das cidades em que se localizam os campi das instituições, pulverizando, assim, as discussões que, por ora, estão concentradas nos grandes centros?
  3. Como organizar a estrutura curricular de aulas, cuja grade horária é rígida, uma vez que várias matérias são distribuídas ao longo do dia, o que impede o professor de ter um horário organizado com cada turma para se preparar devidamente para os encontros?
  4. Por que a carga horária docente é tão rigorosa, a ponto de impedir, por exemplo, que o professor se desloque para outros locais em busca de formação?
  5. Como instituir a função do docente enquanto pensador e produtor de conhecimento em diversas áreas, e não aplicar à sua prática um modelo burocrático, que se sobrepõe à intelectualidade?

Ao lançar algumas pistas, espera-se instigar a reflexão sobre o tema. Se a escolha da carreira não é frustrante, o mesmo não pode ser dito em relação ao(s) ambiente(s) de trabalho fora da academia, disponível(eis) (ou não) para a nova geração de recém-formados. O profissional tem muito a oferecer, mas não pode fazê-lo, pois é preciso lidar com uma Educação Básica em frangalhos, em que a pesquisa não existe e, no cenário atual, professores enfrentam obstáculos que impedem o exercício com a qualidade devida até mesmo da própria docência.

Referência

PIMENTA, João Paulo. O livro do tempo: uma história social. São Paulo: Edições 70, 2021.

Publicado em 26 de novembro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

TRESCENTTI, João Lucas Poiani. Professor, pesquisador ou ambos? Apresentação do problema. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 43, 26 de novembro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/43/professor-pesquisador-ou-ambos-apresentacao-do-problema

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.