A produção textual na escola em um viés dialógico

Lara Roberta Silva Assis

Mestra em Letras e Linguística (UFG)

Rodrigo Milhomem de Moura

Doutor em Letras e Linguística (UFG)

Eliane Marquez da Fonseca Fernandes

Professora no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da UFG

Para início de conversa...

O ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa (LP) é um tema bastante discutido em congressos, seminários, salas de aulas, reuniões de professores/as, enfim, em várias instâncias sociais. Por muito tempo, perdurou nas práticas pedagógicas dos/as educadores/as a preocupação com os aspectos puramente gramaticais: “o ensino tradicional da língua materna era uma tentativa de aproximar o aluno da norma culta padrão, premiando a aproximação e punindo o desvio” (Nascimento, 2001, p. 10). Portanto, negligenciavam-se os usos sociais e culturais da linguagem, construindo, desse modo, diversos enunciados e mitos de que o Português “é difícil” e “não sei falar português”. Antunes (2003) reitera esses dizeres e expressa que a escola se preocupou muito mais com o ensino gramatical prescritivo do que com o ensino-aprendizagem de viés discursivo e textual, interessada

apenas com marcar o “certo” e o “errado”, dicotomicamente extremados, como se falar e escrever bem fosse apenas uma questão de falar e escrever corretamente, não importando o que se diz, como se diz, quando se diz, e se tem algo a dizer. Por ser uma gramática, professores e alunos só veem a língua pelo prisma da correção e, o que é pior, deixam de ver os outros muitíssimos fatos e aspectos linguísticos (os fatos textuais e discursivos, por exemplo), realmente relevantes (Antunes, 2003, p. 33).

Negligenciar os processos discursivos: contextuais, variacionais e históricos da linguagem nas aulas de LP, privilegiando o ensino das normas gramaticais como “um manual com regras de bom uso da língua a serem seguidas por aqueles que querem se expressar adequadamente” (Travaglia, 2009, p. 24), fez com que muitos/as estudantes, ao longo de suas vidas, desacreditassem que seria possível “aprender” sua própria língua, acreditando que eram apenas espectadores e não produtores/as da língua/linguagem que os/as circunda e os/as constitui. Discursos como esses, possibilitaram o surgimento de outras perspectivas que passaram a contestar o ensino abstrato da língua/linguagem em nossa sociedade. Dentre elas, destacamos a análise dialógica do discurso (ADD) que ampara e fundamenta este estudo.

As discussões do Círculo de Bakhtin constituem uma teoria filosófica da linguagem centrada no dialogismo. Para Bakhtin (2016, p. 11), “o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana”. Cada esfera social cria e veicula seus próprios enunciados e, como sujeitos discursivos, nós nos comunicamos por meio dos gêneros do discurso que têm finalidades bem delineadas e ideologicamente direcionadas.

Entendemos, com base nessa vertente, que um sujeito não existe sozinho no mundo, visto que ele só se constitui nas relações de alteridade estabelecidas com os outros sujeitos do discurso (o eu e os outros). Essa linha teórica, em consonância com os estudos de Língua Portuguesa do Brasil, contribuiu para que as aulas de linguagem fossem encaradas de outra forma – não mais como prescrições gramaticais. Assim, desde o advento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998) foram surgindo novas abordagens metodológicas para as aulas de LP, passando a incorporar em seu discurso a centralidade do texto no ensino-aprendizagem da língua/linguagem, a partir dos gêneros discursivos. Isso possibilitou novas maneiras de ensino-aprendizagem da língua materna: mais contextualizadas, dialógicas e menos arbitrárias.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), documento de caráter normativo que norteia a educação atual, também privilegia o trabalho com o texto e os gêneros nas aulas de LP.

Essa centralidade do texto em sala de aula (oral ou escrito), apresentada desde os estudos de Geraldi (1984) e englobada pelos PCN, reconhece que na sociedade em que vivemos todos estamos produzindo textos. Nossa vida é uma espécie de texto e ao produzi-lo, estamos produzindo gêneros discursivos. Segundo Bakhtin (2016, p. 12), esses são “tipos relativamente estáveis de enunciados”. Os gêneros estão dispostos socialmente, mas trazem singularidades, a depender do campo da atividade humana ao qual se vinculam: direito, educação, medicina, linguística, educação.

Pensando nessas formas de linguagem e no ensino-aprendizagem da escrita na Educação Básica, traçamos como objetivos: discutir o ensino-aprendizagem da escrita, a partir do gênero “artigo de opinião” e analisar excertos de artigos produzidos por estudantes do 9º ano de uma escola pública de Goiânia/GO. Para tanto, ancoramo-nos nos pressupostos da análise dialógica do discurso nas categorias: dialogismo, discurso, polifonia, gêneros do discurso (Volóchinov, 2017; Bakhtin, 2016; 2013; 2011; Faraco, 2009; Sobral, 2009; Fiorin, 2006) e de escrita (Passarelli, 2012; Fernandes, 2007; Garcez, 2004).

Metodologicamente, o estudo segue o paradigma qualitativo-interpretativista (Bortoni-Ricardo, 2008; Esteban, 2010; Suassuna, 2008), focando no estudo de caso (André, 2005; Yin, 2005; Ludke e André, 1986). A pesquisa ocorreu no primeiro semestre de 2019 e contou com a participação de, aproximadamente, 65 estudantes e uma professora. Várias produções foram descartadas de acordo com os critérios: 1) textos com dez linhas ou menos; 2) textos com palavras ou trechos ilegíveis.

As produções precisam estar sob o modelo de um “artigo de opinião”. Para selecionarmos o gênero, levamos em consideração o ano em que os/as educandos/as se encontravam (9º ano), pois trata-se de um momento em que os textos argumentativos são mais presentes e estudados no Ensino Fundamental – Anos Finais. A proposta, elaborada pela professora, trouxe o tema bullying e cyberbullying, com o corpus de análise constituído de alguns trechos das produções escritas de alguns desses estudantes do 9º ano dessa escola pública de Goiânia/GO.

Para que pudéssemos selecionar os textos, seguimos as recomendações do Comitê de Ética da Universidade Federal de Goiás. Dentre elas, não deveríamos expor a caligrafia desses/as educandos/as. Por esse motivo, tivemos que digitar os textos em Word, seguindo à risca o foi escrito por eles/as de modo que não atrapalhasse a qualidade de nossas análises. Cada um dos escritos recebeu um código de identificação PT (Produção Textual), indicador de 1ª versão e 2ª versão, e uma numeração, por exemplo: PT 1ª versão – 01 e PT 2ª versão – 01.

O artigo foi dividido em tópicos. No primeiro tópico, “Notas sobre a escrita na perspectiva dialógica”, realizamos uma discussão a respeito das categorias que fundamentam a pesquisa. No segundo tópico, “Trechos de artigos de opinião de estudantes de uma escola pública goiana: uma análise dialógica”, fizemos discussões a respeito do processo de escrita dos estudantes.  

Notas sobre a escrita na perspectiva dialógica

A escrita não está mais só no papel, “ganhou outros suportes – chão, paredes, muros, telas, faixas, outdoors, luminosos, placas, roupas e até mesmo a própria pele” (Fernandes, 2007, p. 69-70). Consideramos, desse modo, que um trabalho mais efetivo com esse saber deve considerar seus usos sociais (nos diversos contextos), visto que é por meio dos sujeitos que os textos se constroem e ganham sentido (Garcez, 2004). Além disso, o/a professor/a deve possibilitar aos/às estudantes na sala de aula, desde o início da alfabetização, o contato com vários gêneros que circulam socialmente para que estejam “preparados” para agir nos diversos espaços sociais em que são requeridas essas práticas.

Complementando esses dizeres, Fernandes (2007, p. 77) afirma que “aprender a redigir é uma expectativa dos jovens, uma necessidade para a continuidade escolar, uma exigência do mercado e uma opção de lazer”. Contudo, em muitos casos, a escrita é pretexto para nota e avaliação, tendo como fim a leitura do/a professor/a e o cesto de lixo. Isso mostra aos/às educandos/as que é uma prática social apenas escolarizada que não ultrapassa os limites da escola (Geraldi, 2003). Daí a necessidade de dar outros fins para esses textos: os murais da escola, jornais da cidade, blogs, vlogs, entre outros.

Ainda pensando no processo de produção escrita, é válido frisar que, para elaborarmos qualquer texto, devemos possuir conhecimento do assunto, organizar as ideias, mobilizar as vozes sociais, culturais, econômicas, políticas para construir sentidos. Além disso, não devemos entender o ato de escrever como algo apenas individual ou particular, mas coletivo e social, pois engloba vários dizeres, discursos e valorações. Segundo Garcez (2004, p. 21), algumas estratégias podem ser adotadas, com vistas a organizar e sequenciar as ideias para a fluidez do texto:

Tentar conhecer e analisar o seu próprio processo de produção de texto; Afastar desânimo se a primeira versão do texto não for satisfatória; Cultivar a paciência; Compreender que várias releituras garantem aperfeiçoamento do texto; Reconhecer que reescrever é o processo natural de construção de um bom texto; Mostrar para outra pessoa e aceitar sugestões, pois é uma prática muito produtiva (Garcez, 2004, p. 21).

Sob essa ótica, a autora reitera que é necessário que cada um de nós observemos e descubramos nossos próprios procedimentos de escrita. Ela também nos chama a atenção para o papel da revisão e da reescrita do texto, pois é fundamental que a produção seja revisada e reescrita várias vezes, a fim de que o/a leitor/a consiga compreendê-la da melhor forma possível. Um texto nunca estará concluído, pois não temos o controle das inferências alheias. No entanto, ele necessita passar por um processo de acabamento. É necessário entrar em situação de empatia com o “nosso” outro, “ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal como ele o vê, colocar-me no lugar dele e [...] completar o horizonte dele com o excedente de minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento” (Bakhtin, 2011, p. 23). Em outras palavras, o texto sofrerá os acabamentos também do meu outro, ele enxergará aquilo que o “eu” não consegue ver sozinho naquele momento. Corroboramos os dizeres de Passareli (2012) ao tratar das etapas do processo de escrita.

Quadro 1: As etapas do processo da escrita

Fonte: Baseado em Passarelli, 2012.

Passarelli (2012) apresenta quatro etapas para a realização do processo de escrita. A primeira delas é o planejamento: momento em que o/a autor/a seleciona as informações que irão ajudá-lo/a discorrer sobre determinado tema. Esse momento também é primordial para que as ideias principais sejam organizadas (em uma espécie de projeto de texto). A segunda etapa é a tradução de ideias em palavras: nesse momento, inicia-se a escrita, estabelecendo os parágrafos e relacionando as principais informações organizadas no processo de planejamento. Durante a terceira etapa ocorrem os processos de revisão e reescrita: a revisão ocorre quando o/a escritor/a se torna leitor/a de seu texto, observando as questões que precisam ser adequadas. Ba reescrita, o autor/a vai reescrever o texto a partir de seus próprios apontamentos, considerando os outros/as leitores/as – caso exista essa possibilidade. Por fim, a quarta e última etapa é a editoração, momento conhecido como “passar a limpo”, no qual as alterações feitas na etapa anterior são observadas novamente e muitas vezes o/a autor/a volta a fazer novas revisões em seu texto. Depois, pode-se veiculá-lo em dado suporte: uma rede social, um blog, vlog, entre outras possibilidades.

Desse modo, defendemos os processos de escrita e rescrita como algo dialógico, pois, “para haver relações dialógicas, é necessário que qualquer material linguístico [...] tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, fixado a posição de um sujeito social” (Faraco, 2009, p. 66). Dito de outro modo: só há dialogia e discurso quando existe um sujeito que imprime nos enunciados suas valorações, seu tom, evocando outros enunciados: “sem sujeitos e contextos, não há discurso, ao mesmo tempo em que, sem discurso, não há sujeitos e nem contextos apreensíveis linguisticamente” (Sobral, 2009, p. 101). O/a estudante é um sujeito discursivo, constituído dialogicamente com outros sujeitos e com outras vozes na comunicação discursiva. Volóchinov (2017) considera que os aspectos sociais, políticos e ideológicos se concretizam na realidade por meio da interação.

Diante disso, a comunicação é um processo ininterrupto (Volóchinov, 2017), consequentemente, pode se manifestar de diferentes modos, não necessariamente por ações, sinais, dentre outros meios. A interação, dessa maneira, passa a ser “a realidade fundamental da língua” (Volóchinov, 2017, p. 219). A partir desse viés, compreendemos que os sujeitos são seres sociais que praticam uma atitude responsiva-ativa nas relações comunicativas, pois “toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não uma fase inicial preparatória da resposta”. O próprio falante é determinado precisamente nessa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva” (Bakhtin, 2011, p. 272).

As práticas dialógicas ocorrem por meio de enunciados: “um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (Bakhtin, 2011, p. 272). Diante dessa afirmação, compreendemos que os enunciados são constituídos pela ligação com outros já existentes. Assim, o sujeito, ao se comunicar, evoca outros enunciados já dispostos na corrente discursiva, valorando-os e modificando-os. Durante as produções de texto, os/as aprendizes recorrem aos enunciados já existentes, ressignificando-os em suas escritas, imprimindo-lhes novas significações e sentidos. Por exemplo, ao produzirem o artigo de opinião, os/as alunos/as produziram enunciados discutindo um tema proposto pela professora, alinhados aos seus conhecimentos de mundo, vivências sociais, às cobranças escolares e da docente e pressupondo seus futuros/as leitores.

Trechos de artigos de opinião de estudantes de uma escola pública em Goiânia: uma análise dialógica

Para nossas análises, selecionamos alguns trechos de textos produzidos pelos/as estudantes de turmas do 9º ano. Iniciamos nossa discussão de modo a apresentar a proposta que direcionou o trabalho da professora: escrever um artigo de opinião sobre o tema “Prática de bullying e cyberbullying no ambiente escolar”.

Quadro 2: Proposta de texto

Proposta de redação

O artigo de opinião é um gênero do discurso argumentativo que tem a finalidade de expressar o ponto de vista do autor a respeito de determinado tema. A validade da argumentação é evidenciada pelas justificativas de posições assumidas pelo autor ao apresentar informações e opiniões que se complementam ou se opõem. No texto predominam sequências expositivo-argumentativas.

A partir da leitura dos textos motivadores seguintes e com base nos conhecimentos construídos ao longo de sua formação, redija um artigo de opinião a respeito da prática de bullying e cyberbullying no ambiente escolar. Defenda seu ponto de vista, apresentando argumentos que evidenciem a prática de bullying e cyberbullying na escola e propondo algumas soluções para combater essa problemática.

Textos motivadores

Texto I

A palavra bullying tem origem na língua inglesa e faz referência a bully, que entendemos como “valentão”, aquele que maltrata ou violenta de forma constante outras pessoas por motivos supérfluos. É justamente esse ato de maltratar ou violentar o outro de forma sistemática e repetitiva que é denominado bullying. Falamos de cyberbullying, então, quando a agressão se passa pelos meios de comunicação virtual, como nas redes sociais, telefones e nas demais mídias virtuais.

Muito embora o cyberbullying não consista em agressões físicas, e por isso é comumente visto como menos danoso, tem consequências tão ou mais graves quanto as do bullying físico. O abuso sofrido pela vítima do bullying virtual é, em sua maioria, de cunho psicológico, no entanto ela pode chegar a se tornar física em casos extremos. Ameaças de morte, agressão física e publicação de informações pessoais de vítimas são alguns dos meios mais violentos de cyberbullying, já que coloca a vítima em situação de risco e constante apreensão diante da possibilidade de um atentado contra sua vida.

A agressão contínua pela qual uma vítima de cyberbullying passa pode trazer consequências graves como trauma psicológico, isolamento social, desenvolvimento de problemas relacionados à depressão, podendo até mesmo levar a vítima ao suicídio. O agravante do bullying virtual é a constante agressão que o agressor é capaz de infligir sobre seu alvo, uma vez que, diferente do bullying convencional em que a vítima tem contato presencial limitado com seu agressor (geralmente na escola), no mundo virtual o agressor tem sempre a vítima ao seu alcance, a qualquer hora do dia ou da noite.

Disponível em: http://brasilescola.uol.com.br/sociologia/cyberbullying.htm. Acesso em: 15 mar. 2019.

Texto II

Uma pesquisa realizada pelo Ipsos coloca o Brasil como o segundo país com a maior incidência de casos de cyberbullying no mundo. Foram entrevistadas 20.793 pessoas em 28 países.

No Brasil, os perfis na internet são usados em 70% das vezes que uma criança é atacada nas redes. Nesse quesito, o país fica atrás de apenas quatro países: Peru (80%), Argentina (74%), México (73%) e Malásia (71%).

Em geral, o agressor é alguém que convive diariamente com a criança ou com o adolescente, principalmente colegas de classe. O ambiente escolar é o local onde acontecem 51% dos casos de bullying no mundo.

Disponível em: https://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/brasil-e-o-2-pais-com-mais-casos-de-bullying-virtual-contra-criancas-11072018. Acesso em: 15 mar. 2019.

Texto III

O cyberbullying pode assumir muitas formas. No entanto, existem nove formas que são as mais comuns:

1. Injúria: enviar repetidamente e-mail, scrap ou mensagem para uma pessoa dizendo que ela é “imbecil, asquerosa, nojenta”.

2. Difamação: enviar repetidamente e-mail, scrap ou mensagem para várias pessoas dizendo que “fulano é burro porque foi mal na prova”.

3. Ofensa: enviar mensagens eletrônicas repetidamente com linguagem vulgar.

4. Falsa identidade: fazer-se passar por outra pessoa para obter vantagem ou por ato ilícito.

5. Calúnia: publicar uma mensagem na comunidade virtual da escola dizendo “fulano roubou minha carteira”.

6. Ameaça: enviar repetidamente mensagens que incluem ameaças de danos físicos, fazendo a vítima temer por sua segurança.

7. Racismo: preconceito ou discriminação em relação a indivíduos considerados de outra raça.

8. Constrangimento ilegal: perseguição; pudor que sente quem foi desrespeitado ou exposto a algo indesejável.

9. Incitação ao suicídio: instigar, impelir, suscitar alguém a dar a morte a si mesmo.

Disponível em: http://institutofuturosocial.com.br/cyberbullying-a-violencia-virtual-que-afeta-a-vida-real/. Acesso em: 15 mar. 2019.

Fonte: Material pedagógico da professora das turmas de 9º ano.

A proposta apresenta alguns pontos principais do artigo de opinião e de como deve ser elaborado. Os textos motivadores visam elucidar os conceitos de bullying e cyberbullying na escola, mostrando pesquisas realizadas do tema e como essas práticas estão materializadas nesse ambiente. Além disso, apresenta um glossário de termos como “injúria”, “incitação ao suicídio”, “racismo” e “intolerância”, todos ligados ao tema.

Nesse contexto, é válido frisar que entendemos o artigo de opinião como um gênero “que se vale da argumentação para analisar, avaliar e responder a uma questão controversa [...] discute um tema atual de ordem social, econômica, política ou cultural, relevante para os leitores” (Boff et al., 2009, p. 3). Feitas essas considerações, para facilitar o entendimento das relações dialógicas materializadas em nossas análises, recorremos a Fiorin (2008) que propõe três formas de definir o conceito.

Quadro 3: Conceitos de dialogismo

Fonte: Baseado em Fiorin, 2008.

Considerando as três definições propostas por Fiorin (2008), vemos que a primeira maneira exposta no esquema define que é por meio do dialogismo que ocorre o funcionamento da linguagem. Assim, torna-se base para que o enunciado se constitua, partindo de outros já existentes. Para isso, é necessário que haja a presença de, no mínimo, duas vozes em um único enunciado. Já na segunda explicação, notamos que o/a locutor/a traz outras vozes para formar o seu próprio enunciado e acaba estabelecendo essa relação de dialogismo. Na terceira e última forma, ele define a ideia de que o dialogismo constitui o indivíduo e suas ações por meio dessas vozes aceitas ou refutadas. Logo, seu interior é formado por essa multiplicidade de vozes que, consequentemente, estabelecem novos dialogismos. Os textos produzidos pelos/as estudantes apresentam essas diversas formas, dialogando com a proposta elaborada pela professora, conforme pode ser observado no recorte 1, da PT- 38 (1ª versão).

A vítima do bullying na hora leva tudo na brincadeira, mas depois, quando está sozinho ele começa a chorar ele fica magoado.

Fonte: Recorte de uma produção de texto realizada por um estudante do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública de Goiânia (grifos nossos).

No trecho “a vítima do bullying leva na brincadeira ou fica magoado”, o autor demonstra os desencadeamentos das práticas de bullying na vida cotidiana de muitos sujeitos, do qual, ele mesmo, pode ter sido vítima. Assim, ele reitera sua visão e nos revela que, em muitos casos, a vítima responde ao que está sofrendo por meio do choro, da solidão e do isolamento. Podemos dizer, assim, que não é possível vivermos sem estabelecermos relações dialógicas. O/a estudante, ao colocar-se na rede discursiva do tema bullying, começa a significá-lo e ressignificá-lo, estabelecendo relações com seu/sua futuro/a leitor/a. Ele demonstra ter argumento de autoridade para tratar do tema e, a nosso ver, demonstra que a interação estabelecida com os textos motivadores produz sentido e dialogia. No recorte da PT – 33 (1ª versão), está:

Deus me livre! Precisamos de ajuda para com a sociedade, principalmente os jovens. Então, por isso acho que, se os pais dialogassem mais com os filhos, pra dar mais atenção, dar como exemplo para eles que eles são importantes e fazer campanhas [...].

Fonte: Recorte de uma produção textual realizada por um aluno do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública de Goiânia (grifos nossos).

A partir da análise do recorte, conseguimos notar a presença das várias vozes que permeiam o discurso mobilizado pelo autor na produção de seu texto. Para corroborar o discurso, recorremos à Bakhtin (2013, p. 4, grifos nossos), quando expressa que “é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimentos, mantendo a sua imiscibilidade”, o que o autor chama de polifonia. Observamos, desse modo, que o estudante não enuncia sozinho, mas evoca discursos sociais, religiosos e familiares. Vemos que, logo no início, ele escreve: “Deus me livre!”, remetendo a uma voz social e/ou religiosa, já que é uma expressão bastante utilizada no dia a dia como forma de “livramento” de algo ruim. Em seguida: “Precisamos de ajuda para com a sociedade, fazendo referência a uma voz de apelo social, uma mudança partirá de um movimento social, coletivo. Ao complementar a ideia de que quem precisa de ajuda são “principalmente os jovens”, ele indica que esse público é responsável também pela mudança, uma voz a ser escutada e não silenciada. Ainda no recorte a respeito dos pais estabelecerem diálogo com seus filhos, surge o termo “acho”. Nesse momento, ele apresenta a sua voz, demarcando a sua opinião. Portanto, todo o processo é dialógico, atravessado por várias vozes sociais até que o estudante consiga mostrar a sua própria. Ressaltamos que, no gênero artigo de opinião escrito em primeira pessoa, o termo “acho não é aceito pelos/as professores/as de LP, justamente por pessoalizar o texto. Acredita-se que isso não convencerá o interlocutor.

Continuando nessa linha de análise, passemos ao processo dialógico observado na PT-2 (1ª versão):

Bullying e cyberbullying

Na escola é muito comum alguém fazer piadinhas ou algo do tipo com outras pessoas, em alguns momentos a vítima do bullying não goste desse ato. Há também o cyberbullying, que é um ato que difama os outros, através das redes sociais.

O bullying pode ser mais grave do que imaginamos, pois há uma grande possibilidade dessa violência terminar em mortes trágicas. Muitas das vezes a vítima já foi criticada demais por conta do seu cabelo, da sua altura, peso ou cor de pele, que em vez de se tratar com um psicólogo ou uma pessoa próxima para contar, ela resolve se vingar dos atos sofridos.

O cyberbullying é uma violência praticada contra alguém através da internet ou por meio de outras redes sociais. Por lá o agressor intimida, difama ou insulta o outro para se sobressair por cima deles. Até perfil fake ele cria para ameaçar a vítima. Com isso a pessoa ameaçada pode até pensar em suicídio.

Em vez de passar medo ou algo do tipo, deveriam procurar um psicólogo, psiquiatra ou um terapeuta para tentar resolver seus problemas e não descontar em outras pessoas que não tem nada a ver com eles.

Fonte: Produção textual realizada por um aluno do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública de Goiânia (grifos nossos).

O título da produção “Bullying e cyberbullying” é bastante amplo. Ao pensar no texto como um todo, observamos que no primeiro parágrafo o autor relata um fato relacionado ao bullying, apontando uma primeira causa dessa prática – “as piadinhas realizadas contra a vítima” – e conceitua cyberbullying. No parágrafo seguinte, ao abordar o termo bullying, apresenta uma das consequências dessa prática: “mortes trágicas”. O estudante também explica que as várias causas pelas quais ocorre essa prática discriminatória são: “por conta do cabelo, da sua altura, peso ou cor de pele”, e volta a definir outra consequência: “a vingança da vítima pelos atos sofridos”. No início do terceiro parágrafo, conceitua mais uma vez o cyberbullying, o que já havia feito no fim do primeiro. Depois, aponta alguns problemas que podem ser “a causa” dessa prática: a difamação e o insulto, que podem resultar em suicídio de quem sofreu o ato. Por fim, no último parágrafo, procura apresentar uma solução para esses problemas. Notemos que o estudante dialoga, o tempo todo, com o tema solicitado e com o glossário.

Ao analisarmos a construção do texto e a discussão da temática, observamos que o autor apresenta uma escrita mais “engessada” e que pouco se desprende dos textos motivadores da coletânea. No texto do aprendiz, predominam sequências expositivo-argumentativas. Durante a escrita de gêneros dissertativos-argumentativos é comum os/as estudantes seguirem uma estrutura pré-estabelecida. Essa estrutura é adquirida pelo sujeito ao longo de sua formação e, portanto, ele tem em mente que nesse tipo de texto há uma ordem definida: introdução, desenvolvimento e conclusão (como se isso fosse uma regra “do bem escrever” e garantisse uma versão final consideravelmente boa). Nesse momento, comungamos dos dizeres de Sobral (2009, p. 102), quando expressa que “todo sujeito tem um dado projeto enunciativo [...], a que corresponde uma resposta ativa de ao menos outro sujeito, e que pode alterar a própria maneira de realizar esse projeto enunciativo”. O estudante, ao ser desafiado pela proposta, cria um projeto de dizer para responder ativamente ao solicitado por meio da escrita de seu artigo de opinião, apresentando uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão.

Essas enunciações promovidas pelo indivíduo levam a compreender que o discurso exerce diferentes papéis na comunicação discursiva dos falantes, podendo ser um discurso que se realiza por meio da fala, da escrita, de gestos, dentre outros modos comunicativos, e que pode ser criado por um planejamento elaborado pelo interlocutor ou surgir espontaneamente no momento em que ocorre a comunicação. Nesse sentido, ao produzir o texto no objetivo de entregar à professora, o educando tenta influenciá-la e convencê-la de que ele se atentou às solicitações. Isso nos leva a crer que o processo de escrita foi dialógico, desde o pensar do tema, à sistematização das ideias a partir do próprio ato de escrever, assim como uma resposta ativa às solicitações. Por isso, durante o processo, ele mobiliza diversos discursos sociais e diversas vozes que participam de seu projeto de dizer, com vistas a atingir um objetivo: “tirar nota suficiente”, pois “há, em todo discurso, um ajuste, uma negociação, entre entoação avaliativa e responsividade ativa, que começa antes mesmo de ser proferida a primeira palavra” (Sobral, 2009, p. 87). Desse modo, antes de receber a proposta da educadora, o/a estudante já está em processo de reflexão a respeito de como deverá escrever o seu texto.

Considerações finais

Este estudo discute o ensino-aprendizagem de escrita a partir do gênero artigo de opinião, analisando excertos de artigos produzidos por estudantes do 9º ano de uma escola pública de Goiânia/GO. Assim, analisamos algumas produções de texto à luz da vertente dialógica discursiva. A partir disso, podemos dizer que a escrita é uma prática social, não restrita aos saberes escolares. Na perspectiva dialógica, ela mobiliza dizeres e enunciados de outros textos, contextos, tempos e sujeitos.

Assim, entendemos que a escrita deve passar por um processo de acabamento, para que consigamos produzir um texto crítico e com propósito. Reiteramos, também, como professores e professoras de Língua Portuguesa, ser fundamental compreendermos o texto em sua singularidade e relações dialógicas, criando possibilidades em nossas aulas para que os/as estudantes exercitem sua criatividade, criticidade e dialogia. Contudo, devemos estar atentos/as às propostas de escrita dadas aos aprendizes, visto que isso também dependerá da forma como as encaramos, pois os/as estudantes podem responder apenas ao que está sendo solicitado, sem problematizar os usos da escrita em suas vidas. Portanto, reiteramos que é fundamental possibilitar aos/às estudantes que problematizem, conscientemente, as práticas de escrita nos âmbitos sociais.

Por meio de nossa discussão, observamos que a professora apresenta o conceito de artigo de opinião, mas não o aprofunda na discussão do gênero e do processo de argumentação. Dessa forma, os/as estudantes – em especial o produtor do último texto PT-2, 1ª versão produz um texto do gênero sem se aprofundar nas questões sociais e complexas da temática. O processo polifônico e ativo-responsivo são percebidos, à medida que os/as estudantes conseguem imprimir certas vivências e axiologias em suas produções.

Em suma, para um efeito de acabamento deste texto, é importante reconhecermos que há uma infinidade de gêneros discursivos que circulam em nosso cotidiano e que a produção escrita dos/as estudantes se coloca na rede com as “relações intersubjetivas [...] falante-ouvinte, escritor-leitor, que se constituem enquanto sujeitos do discurso” (Brandão, 2005, p. 271). Ao escreverem, os/as estudantes não escrevem sozinhos, mas escrevem permeados pelos dizeres e vozes dos outros e outras do discurso. Citamos no trabalho o artigo de opinião, que é bastante presente nas práticas escolares dos anos finais do Ensino Fundamental, mas poderia ter sido qualquer outro gênero. Por esse motivo, o ensino por meio dos gêneros discursivos leva o educando a perceber a função social e ideológica da língua/linguagem em nossa vida, em nosso cotidiano e em nossos modos de interação (Marcuschi, 2008). Assim, levantamos a bandeira de que o gênero deve ser pensando em suas esferas sociais e não como pretexto para se ensinar regras gramaticais. Pensando desse modo, o gênero poderá assumir outras funções na vida dos/as estudantes e trazer sentido às aulas de Língua Portuguesa.  

Referências

ANDRÉ, M. E. D. A. de. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Liberlivros, 2005.

ANTUNES, I. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, M. O romance polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

BAKHTIN, M.  Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.

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Publicado em 03 de dezembro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

ASSIS, Lara Roberta Silva; MOURA, Rodrigo Milhomem de; FERNANDES, Eliane Marquez da Fonseca. A produção textual na escola em um viés dialógico. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 44, 3 de dezembro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/44/a-producao-textual-na-escola-em-um-vies-dialogico

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