Conceição Evaristo: o que a História esconde, as palavras ditas libertam

Silvânia Maria da Silva Amorim Cruz

Doutoranda em Letras (Unicentro), professora de Língua Portuguesa do Estado de Pernambuco

Escrever é retirar-se. Não para a sua tenda para escrever, mas da sua própria escritura. Cair longe da linguagem, emancipá-la ou desampará-la, deixá-la caminhar sozinha e desmunida. Abandonar a palavra.
Jacques Derrida, 2009

Primeiras palavras

Conceição Evaristo, mulher, negra, nascida em uma favela, é escritora, acadêmica e ativista brasileira. Por suas obras, contribui significativamente para a Literatura, especialmente no campo da Literatura Afro-Brasileira e do discurso feminista. Seus textos abordam questões de raça, gênero e desigualdade social no Brasil, compondo uma escrita que evoca e traz à tona suas histórias, memórias, experiências e lutas. Assim, sua obra é marcada pelas lembranças da escravidão, pela experiência de ser mulher negra e pela esperança de mudança. Suas experiências individuais manifestam, assim, vivências coletivas de um povo, de uma comunidade. Além de suas produções literárias, a autora é formada em Educação, com experiência como professora e pesquisadora. É mestra em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, com obras traduzidas para diversos idiomas.

Neste ensaio, analisaremos três poemas da obra Poemas da recordação e outros movimentos (de 2008): “Vozes-mulheres”, “Meia lágrima” e “A noite não adormece nos olhos das mulheres”. Neles, Evaristo constrói um discurso persuasivo de resistência e crítica às ideologias dominantes e às estruturas de poder que propagam estereótipos em torno da mulher negra. Para tanto, nossa discussão será embasada em Foucault (1996), no que concerne ao discurso como manifestação de poder e controle social, bem como na escrita de si sob as perspectivas da autoconsciência, da autorreflexão e da resistência.

Conceição Evaristo: ruptura e emancipação

Historicamente, refletir sobre mulheres negras implica considerar uma cultura hegemônica que legitima e mantém a predominância de determinada cultura enquanto marginaliza e subjuga outras. Essa cultura é, ainda, patriarcal, ao colocar as mulheres frequentemente em situações de subordinação; é machista, ao propagar a posição de superioridade dos homens em relação às mulheres e provocar estereótipos de gênero; é eurocêntrica, ao apresentar uma visão distorcida da história e da sociedade, excluindo e negligenciando outras culturas e, assim, perpetuando desigualdades.

Dessa forma, para muitos, ainda parece natural que uma pessoa negra seja perseguida em supermercados, seja alvo de tiros, seja abordada pela polícia, apenas pela sua negritude. Há, ainda, as situações em que uma pessoa negra ocupando cargos de prestígio – como político, juiz ou médico –, acaba por ser questionada ou elogiada, como se tal posição fosse impossível ou quase impossível para pessoas negras. No entanto, “por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder” (Foucault, 1996, p. 10).

Contra esses abusos, Conceição Evaristo e suas obras são reconhecidas, uma vez que refletem a resistência e o empoderamento da mulher negra, além da busca por igualdade no que se refere às comunidades marginalizadas no Brasil. Nos discursos da autora, encontramos o que afirma Foucault (1996), o discurso usado para além da tradução de sistemas de dominação, o discurso enquanto razão de luta, enquanto busca pelo poder que queremos “nos apoderar”.

Iniciemos nossa análise dos poemas de Evaristo na obra Poemas da recordação e outros movimentos (2008), com o poema “Vozes-mulheres”, em que a autora, pela memória, trata da feminilidade e da resistência negra, com versos que relatam suas vivências na infância e na adolescência, em meio às mulheres da família: avós, mães e filhas.

A voz de minha bisavó ecoou

criança nos porões do navio.

Ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância,

o eco da vida-liberdade

(Evaristo, 2008, p. 10, grifos nossos).

Na temática abordada, Evaristo, por meio da linguagem, da escrita de si, realiza uma autorreflexão que, embora em diferentes contextos históricos e culturais, narra um ciclo que, sem luta e resistência, pode continuar se repetindo por gerações e gerações ainda hoje (A voz da minha bisavó... A voz da minha avó... A voz da minha mãe…). Esse ciclo está baseado em trabalhos subalternos, por vezes mascarados, mas que, historicamente, colocam o negro e, aqui, especificamente a mulher negra, em uma posição inferior e subordinada na hierarquia social, econômica ou organizacional, como observado em “A voz de minha avó/ ecoou obediência/ aos brancos-donos de tudo”. Exercendo funções de trabalho em condições precárias, com baixos salários, sem benefícios e, em alguns casos, sem os direitos trabalhistas básicos, essa classe enfrenta formas de trabalho que são exploradoras, desvalorizadas e/ou marginalizadas.

Nos versos que se referem à filha, “Na voz de minha filha/se fará ouvir a ressonância,/o eco da vida-liberdade”, observa-se a busca por outro destino para essas mulheres, para todas elas, não apenas as da família Evaristo, e uma luta refletida na e para a coletividade negra. Trata-se de uma luta contra a exclusão e a interdição institucionalizada do discurso (Foucault, 1996), de modo a dar voz a um povo que foi silenciado por séculos.

No poema “Meia lágrima”, o eu-lírico evoca a resistência citada:

Não,

a água não me escorre

entre os dedos,

tenho as mãos em concha

e no côncavo de minhas palmas

meia gota me basta.

Das lágrimas em meus olhos secos,

basta o meio tom do soluço

para dizer o pranto inteiro.

Sei ainda ver com um só olho,

enquanto o outro,

o cisco cerceia

e da visão que me resta

vazo o invisível

e vejo as inesquecíveis sombras

dos que já se foram.

Da língua cortada,

digo tudo,

amasso o silêncio

e no farfalhar do meio som

solto o grito do grito do grito

e encontro a fala anterior,

aquela que emudecida,

conservou a voz e os sentidos

nos labirintos da lembrança

(Evaristo, 2008, p. 50).

O uso dos vocábulos "meia/meio" feito pela autora revela uma dualidade da sua vida enquanto mulher negra, uma duplicidade do ser negra no Brasil: de um lado, sua subjetividade; de outro, o sujeito sem identidade e sem voz; de um lado, sua cultura de origem; de outro, a cultura imposta; de um lado, suas ideologias; do outro, as ideologias decretadas (...meia gota me basta/Das lágrimas em meus olhos secos/basta o meio tom do soluço/para dizer o pranto inteiro...) [grifos nossos].

Assim como no poema “Vozes-mulheres”, em “Meia lágrima” Evaristo segue uma sequência narrativa que vai das memórias da escravidão à esperança e confiança em um futuro melhor na última estrofe. Mais uma vez a dualidade se faz presente: a dor e a esperança; o sofrimento e a conquista; a escravidão e a liberdade; o silêncio e o grito (Da língua cortada/digo tudo/amasso o silêncio/e no farfalhar do meio som/solto o grito do grito do grito...).

A poesia da autora é, portanto, mais que um poema: é uma forma de protesto e de luta, na qual sua escrita revela a historicidade e a identidade de um povo, de modo que:

as identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões quem nós somos ou de onde nós viemos, mas muito mais com as questões que nós podemos nos tornar, como nós temos sido representados e como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios (Hall, 2014, p. 108-109).

Dado o exposto, essa é uma escrita emancipatória. Uma mulher negra que escreve a partir das suas memórias e da história de um povo, em uma escrita desamarrada do signo, que busca empoderar aqueles que, historicamente, foram marginalizados e silenciados. Além disso, Evaristo procura desconstruir as narrativas dominantes, responsáveis pela propagação de estereótipos, de preconceitos e de desigualdades, contribuindo, assim, para a sensibilização e a conscientização sobre questões sociais. Sua obra luta pela transformação da sociedade, desafiando a homogeneidade imposta e destacando a importância da multiplicidade de perspectivas.

Assim, a estudiosa tem possibilitado a reflexão sobre os estereótipos e os preconceitos que foram perpetuados por discursos que marcam a compreensão cultural e social de uma sociedade, conduzindo-nos à análise e ao questionamento da história desses discursos, indo nós, portanto, de encontro à perpetuação desses fenômenos (Foucault, 1996).

Em “A noite não adormece para as mulheres”, a autora evoca não apenas a negritude, mas também o ser mulher, mencionando algumas mulheres (...vaginas abertas/retêm e expulsam a vida/donde Ainás, Nzingas, Ngambeles/e outras meninas luas...), com destaque para a rainha Nzinga, grande líder e símbolo de resistência contra o colonialismo português e a opressão, um marco na história da África.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede

(Evaristo, 2008, p. 21).

Nas estrofes do poema, observamos a repetição do verso “A noite não adormecerá”. A referência à noite leva-nos a construir sentidos que podem envolver os aspectos da escuridão, da tristeza, da falta de luz ou de esperança de tantas mulheres negras ao longo da história: mulheres escravizadas, abusadas, violentadas, silenciadas...

Trata-se de cenários repetidos por décadas, em um ciclo quase que ininterrupto de geração para geração (A noite não adormece nos olhos das mulheres vaginas abertas/ retêm e expulsam a vida/donde Ainás, Nzingas, Ngambeles/e outras meninas luas/afastam delas e de nós/os nossos cálices de lágrimas). Mesmo hoje, sabemos que formas veladas de escravidão e inúmeras manifestações de exclusão e violência ainda perduram.

Evaristo evoca a importância do não esquecimento, a necessidade de vigiar e rememorar a história (A noite não adormece/nos olhos das mulheres/a lua fêmea, semelhante nossa,/em vigília atenta vigia/a nossa memória), uma história marcada pela ideologia dos colonizadores, reprodutora de um regime escravocrata, propagadora de estereótipos, inclusive na literatura, em que a mulher negra é frequentemente ausente ou cercada de preconceitos.

Sobre essa questão, a autora afirma:

se há uma literatura que nos inviabiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de representação da mulher negra na literatura. Assenhorando-se “da pena”, objeto representativo do poder falocêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro imagens de autorrepresentação. Criam, então, uma literatura em que o corpomulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulhernegra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para além de um sentido estético, busca semantizar um outro movimento que abriga todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se torna o lugar da vida (Evaristo, 2005, p. 54).

Em vista disso, a escrita de Evaristo rompe com estereótipos, levando o leitor a questionar e buscar mudar essas percepções, promovendo, assim,  sensibilização e conscientização sobre a diversidade e a singularidade dos povos, das pessoas. Assim, ela utiliza a literatura como ferramenta para a busca de igualdade de oportunidades e de tratamento para todas as pessoas, independentemente da identidade de gênero, de raça, de orientação sexual, entre outros marcadores identitários. Nessa perspectiva, a autora convida a refletir sobre os princípios de Foucault (1996) para a análise e a percepção do discurso:
  1. a inversão, ou seja, inverter a compreensão do sujeito sobre a origem dos discursos;
  2. a descontinuidade, percebendo os discursos como descontínuos e passíveis de rupturas;
  3. a especificidade, que nos conduz a questionar as obviedades e
  4. a exterioridade, que diz respeito à consideração das ordens externas de possibilidades do discurso.

Pensar o discurso é, portanto, refletir sobre as “formações discursivas” (Foucault, 1996), como estabelecedoras de regras que definem o que é aceitável e o que não é. Sob o viés da escrita de Evaristo, essa reflexão contribui para a construção de conhecimento, para as rupturas de estereótipos e para a emancipação negra.

Considerações finais

Com a compreensão de que a linguagem desempenha papel crucial na expressão de ideias, de valores e de poder, este ensaio traz a escrita de Evaristo como uma forma de ruptura, ao desafiar ou transcender normas e regras no que diz respeito ao ser mulher negra no Brasil. Dado o exposto, trata-se de uma escrita emancipatória, ao empregar, em suas narrativas, novos discursos para desafiar estruturas de poder existentes, expondo desigualdades e injustiças e, assim, buscando mudanças. Assim, configura-se como um discurso de resistência e de desconstrução das narrativas dominantes que perduram ao longo da história, influenciando como os sujeitos se veem e como são vistos pelos outros, perpetuando estereótipos e preconceitos e, consequentemente, construindo as identidades sociais (Foucault, 1996).

Referências

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane (org.). Mulheres no mundo. Etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005. p. 201-212.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 103-133.

Publicado em 10 de dezembro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

CRUZ, Silvânia Maria da Silva Amorim. Conceição Evaristo: o que a História esconde, as palavras ditas libertam. Revista Educação Púbilca, Rio de Janeiro, v. 24, nº 45, 10 de dezembro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/45/conceicao-evaristo-o-que-a-historia-esconde-as-palavras-ditas-libertam

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