Relatos de experiências: a dislexia na vida real

Ana Beatriz Franklin Verardi

Mestranda em Educação e Saúde (Unifesp)

Wenis Vargas de Carvalho

Doutorando em Educação (Udesc)

Marcio Hollosi

Professor doutor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde da Unifesp

De acordo com a Associação Brasileira de Dislexia (ABD), esse transtorno atinge até 17% da população mundial; mesmo assim, grande parte da sociedade nunca ouviu falar dela; ela não é debatida nos meios acadêmicos por futuros professores e profissionais de ensino e, consequentemente, também não é visibilizada dentro de salas de aula, ainda que seja distúrbio comum com sintomas específicos e de fácil diagnóstico. Tampouco é reconhecida dentro de casa por pais e responsáveis. A dislexia é um transtorno de aprendizado que não deixa marcas visíveis, mas, sem projetos interventivos, pode atrapalhar ou interromper planos e sonhos.

Mais importante que entender o que acontece dentro do cérebro de uma pessoa disléxica – tendo em vista que a maneira como ele trabalha é completamente diferente da maneira como trabalha o cérebro de uma pessoa não disléxica – é desfrutar da experiência que as pessoas com esse distúrbio possuem; é usar suas vivências para problematizar o método educacional atual e lutar contra uma sociedade que prega um sistema de ensino restrito, no qual aptidões como a escrita, a leitura e a aritmética, são vistas como sinônimo de inteligência – e apenas elas.

Esta pesquisa pauta a importância do debate sobre o transtorno específico de aprendizagem da dislexia (TEA) dentro de esferas ligadas ao ensino e à Educação, problematizando a ausência de matérias específicas que abordem o tema e de políticas públicas que garantam e assegurem o acesso de disléxicos à educação de qualidade de maneira inclusiva – direito garantido pela Constituição Federal de 1988. Com ela, pretende-se dar maior visibilidade a esse transtorno, fazendo com que a dislexia seja uma opção de diagnóstico daquele aluno com dificuldades de consciência fonológica, memória verbal e velocidade de processamento verbal, impedindo que a história contada pelos entrevistados se repita – relatos de exclusão, humilhação e ignorância por parte de seus colegas e de seus professores – e acabando com a ideia de que pessoas com um “inusitado estilo de aprendizagem”, como Ronald D. Davis (2004) descreve a dislexia, devam ser excluídas socialmente por suas diferenças.

Têm-se, notoriamente, adultos como principal objeto de estudo desta pesquisa devido ao seu maior conhecimento: imagina-se que uma pessoa entre seus 40 e 60 anos já explorou mais os desafios e as conquistas da vida cotidiana do que um jovem disléxico – seja ele diagnosticado ou não. Além disso, esses adultos já enfrentaram um sistema mal projetado e nada holístico de ensino, podendo fazer adendos e críticas diretas, além de apontar faltas e possíveis melhorias.

O foco deste estudo é, portanto, ouvir aqueles que já foram subjugados por um transtorno pouco conhecido, convencê-los de que suas aptidões são maiores que seus fracassos em um sistema mal projetado de ensino e pensar em maneiras de modificar as estruturas educacionais para que as experiências de disléxicos dentro de ambientes escolares não sejam de exclusão – e isso ocorrerá quando houver espaços suficientes para que a dislexia seja vista com clareza, não como problema, mas como possibilidade para pensar em diferentes formas de abordagem. Ou seja, estudar a dislexia em adultos é criticar e (tentar) modificar um ensino falho, problematizando-o. É colocar em pauta um distúrbio que afeta consideravelmente a população, dando visibilidade a ele e colocando-o em evidência dentro do cenário público. Estudar a dislexia em adultos é salvar crianças de desistirem da escola e, por consequência, de um de seus direitos civis. É desfazer o mito de que inteligência está relacionada à capacidade de leitura, escrita e soletração – e de que aqueles que possuem quaisquer dificuldades em fazê-los estão fadados ao insucesso.

O artigo está estruturado da seguinte forma: há, a seguir, os objetivos da pesquisa: o que pretende-se alcançar com ela, por que o tema em questão foi escolhido, para quem esta pesquisa é desenvolvida etc. Logo, há a metodologia. Nela é detalhada a maneira como os objetos de estudo foram escolhidos, o material que foi estudado e como a pesquisa foi articulada; fontes de informações, detalhes a respeito dos entrevistados, organização da entrevista etc. Depois, na revisão de literatura, há informações importantes e necessárias para a compreensão total do assunto tratado; respostas para perguntas como “o que é a dislexia?”, “como é seu diagnóstico?”, “há cura?” estão descritas nessa seção. A análise de dados conta com a descrição dos resultados obtidos por meio do que foi estudado até então: leituras, relatos, análises… Em seguida, a conclusão revela o que pode ser constatado com base nos dados avaliados – e se o objetivo principal foi concluído. Por último, há uma lista com os materiais utilizados para que a pesquisa fosse possível.

Há uma grande evasão de alunos com dislexia do sistema convencional de ensino – tanto público quanto privado. O desconhecimento desse distúrbio, juntamente a falhas de métodos inclusivos e medidas interventivas, pode confirmar a hipótese de que essa escusa não é por incapacidade daqueles que convivem com um transtorno específico de aprendizagem, mas por incapacidade, da parte de professores e demais alunos, de tornar o ambiente educacional receptivo e abrangente. A pesquisa visa debater e analisar a falta de integração de alunos disléxicos dentro da atmosfera escolar, evidenciando falhas e explorando usos e possibilidades de intervenções.

A partir da maior quantidade de informações possível adquiridas mediante os mais diversos gêneros escritos e não escritos, fichamentos são feitos facilitando o levantamento das características principais do transtorno de aprendizagem da dislexia. Esse entendimento facilita a segunda fase da pesquisa: uma entrevista realizada com duas pessoas, uma mulher de 57 anos e um homem de 53 anos, escolhidos por pertencerem a um grupo mais experiente (são adultos) e, mesmo assim, pouco visibilizado – até mesmo esquecido – em pesquisas. A diferença no gênero possibilitará duas perspectivas distintas – a da mulher disléxica e a do homem disléxico. Sendo irmãos, com idades próximas, os entrevistados partilham oportunidades semelhantes, embora as tenham aproveitado de maneira particular. Essa entrevista deve ser semiestruturada, de maneira a ser direcionada por meio de perguntas, mas deve possuir tom informal, procurando deixar os entrevistados à vontade para conversar e contar o que julgarem relevante, sem precisar se policiar para falar, gesticular, escrever etc. (considerando que a dislexia é um distúrbio que afeta principalmente esses três pilares cognitivos, esse cuidado é importante). Foram feitas perguntas como nível de escolaridade, profissão e a respeito do diagnóstico. Histórias foram bem-vindas. Relatos, também. Com esses dados, questões podem ser respondidas: qual o papel do professor na vida dos entrevistados? O que poderia ser melhorado? E sobre a inclusão: ela existe? As histórias são positivas?, além de outras. As respostas são importantes para dar concretude e visibilidade ao distúrbio, às pessoas que o possuem e a um possível projeto interventivo que vise principalmente à reinserção social daqueles que foram subjugados. Os nomes dos participantes das entrevistas foram ocultados a fim de preservar suas identidades.

Revisão de literatura

Albert Einstein, Leonardo da Vinci, Walt Disney, Agatha Christie, John Lennon, Cher, Quentin Tarantino, Henry Ford, Jennifer Aniston, Keanu Reeves. Nomes conhecidos, famosos por talentos diferentes, mas unidos por uma característica comum: todos são disléxicos. No Brasil, a dislexia atinge cerca de 15 milhões de brasileiros, de acordo com o jornal Correio Braziliense, em matéria publicada em 2010 e atualizada em 2020. Por ser uma condição autogerada, não há sequer uma pessoa disléxica que apresente exatamente as mesmas características ou sintomas que outra pessoa disléxica: cada uma possui suas próprias combinações de dificuldades e de habilidades.

Ainda que esse transtorno atinja grande parte da população, pouco é o conhecimento acerca dele. Ainda que existam livros teóricos sobre o tema (Dislexia: novos temas, novas perspectivas, de Luciana Mendonça Alves, Renata Mousinho e Simone Aparecida, de 2018), livros fictícios (Longe da árvore, de Andrew Solomon, de 2013), filmes (Como estrelas na terra, de Aamir Khan e Amole Gupte, de 2007) e séries (Glee, de Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan, de 2009) que retratam a dislexia, pouco se debate sobre ela em ambientes reais, como acadêmicos e escolares, onde de fato isso seria necessário. A dislexia e seu enorme universo só são explorados profundamente por aqueles que precisam disso para se adaptar a uma sociedade que não está preparada para recebê-los – é muito difícil uma pessoa se dar conta de que é disléxica, porque seus sintomas são facilmente confundidos com sintomas de TDA e TDAH, por exemplo, mas quando isso ocorre há a percepção de que não existe uma rede de apoio preparada para atendê-la: a dislexia é invisibilizada, e poucos (se não nulos) são os projetos interventivos para acolhê-la.

A dislexia é um transtorno específico de aprendizagem (TEA) que causa falhas no processamento da leitura, no reconhecimento e armazenamento preciso das palavras, na capacidade de decodificação dos signos linguísticos e na soletração – podendo afetar também outras habilidades, visto que nenhuma dessas capacidades funciona de maneira isolada. Ainda assim, esse TEA não causa comprometimento de inteligência, influência sociocultural ou emocional. (Alves; Mousinho; Capellini, 2018). A dislexia possui três graus: leve, moderado e severo; segundo o Instituto ABCD (2021), baseiam-se em geral na severidade das dificuldades apresentadas pelo indivíduo. Sendo a dislexia um transtorno do neurodesenvolvimento, outros déficits podem vir associados a ela. Problemas com o processamento visual e com a coordenação motora, por exemplo, são comuns. Uma pessoa disléxica pode também, devido aos seus desvios cognitivos, apresentar outras desordens, como discalculia (transtorno específico de aprendizagem com comprometimento na Matemática), dislalia (desordem da fala) e disortografia (transtorno específico de aprendizagem com comprometimento na escrita). Os entrevistados neste trabalho possuem, juntamente à dislexia – e por conta dela –, estes dois últimos distúrbios.

O diagnóstico inclui avaliações com diversos profissionais especializados. Ainda que a internet ofereça sites que possibilitam “testes” que apontam uma possível dislexia, como o mantido pelo Instituto ABCD, eles não substituem a avaliação multidisciplinar necessária para alcançar o laudo completo. Essa avaliação segue passos rigorosos: é necessário testar, primeiramente, se o disléxico não possui nenhum problema auditivo ou visual. Depois, ele passa por testes elaborados por profissionais de Psicologia, Neuropsicologia, Fonoaudiologia e Psicopedagogia. Como é um transtorno que afeta que o reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra e a habilidade de decodificação e soletração (definição adotada pela International Dyslexia Association – IDA, em 2002), deve-se prestar atenção em sinais como dispersão, falta de atenção, atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem, dificuldade em memorizar rimas e canções, dificuldade na aquisição e automação da leitura e da escrita, confusão para identificar esquerda e direita, falta de coordenação motora e até mesmo desorganização – todas essas características são indicativas de dislexia e, ao serem notadas, devem ter suas causas investigadas. Um diagnóstico precoce favorece o entendimento do disléxico sobre si mesmo e ajuda a adaptá-lo ao âmbito escolar.

Alunos disléxicos são geralmente tratados como preguiçosos e dispersos. Por seu transtorno ser invisível e silencioso, ele não é percebido pelos professores, que acabam negligenciando seus alunos por achar que a falta de concentração e a confusão durante as atividades é pura displicência de quem não quer aprender. Nesse momento há a percepção do quão seletiva é a educação convencional: a primeira falha no sistema de ensino é notada no momento em que um transtorno específico de aprendizagem passa despercebido e influencia negativamente no crescimento estudantil do disléxico, deixando lacunas educacionais que dificilmente serão resolvidas no futuro.

Há diversas histórias de adultos com dislexia que tiveram seu ensino sucateado devido ao despreparo de seus professores para atendê-los. Não há necessidade de acompanhamento especial ou de um profissional especializado no assunto; há somente a exigência de um professor que conheça as dificuldades e as habilidades provindas do transtorno da dislexia e que seja capaz de criar e adaptar atividades e provas para que haja uma avaliação justa e um desenvolvimento igualitário entre disléxicos e não disléxicos – mas infelizmente essa equidade não é encontrada nas instituições de ensino, assim como não se encontram professores preparados para lidar com formas alternativas de pensar, característica nata de qualquer disléxico.

Para este trabalho, dois adultos foram entrevistados: uma mulher de 58 anos e um homem de 54; ela com dislexia severa e ele com dislexia moderada. Ambos descobriram-se disléxicos há pouco tempo – como comumente acontece; por causa do diagnóstico tardio, sofreram em um sistema educacional desigual e despreparado.

Os relatos revelam a realidade daqueles que, por seu distúrbio de aprendizagem, penam com a defasagem de seu ensino, primeiramente no período de alfabetização e, posteriormente, na sequência desse processo, com dificuldades no acompanhamento das aulas e no cumprimento de atividades que exijam leitura e escrita, como ditados ortográficos, reescritas e leitura em voz alta; por isso, sofrem exclusão dentro da classe – não somente por parte de seus colegas, mas de seus professores também, o que dificulta ainda mais sua permanência na esfera escolar. Durante as entrevistas, o desconforto vivido pelos dois disléxicos dentro da sala de aula é abordado em vários momentos e fica perceptível que as consequências dessa falta de inclusão ecoam ainda hoje em sua autoestima e em sua maneira de agir e reagir em seu trabalho, em suas relações e em seu modo de ver a si mesmo e o mundo.

Não existe cura para a dislexia, mas ela pode ser corrigida. Portanto, quanto mais cedo for seu diagnóstico, maiores são as chances de pensar em um projeto interventivo que auxilie o disléxico a entender seu transtorno e se adaptar ao seu jeito de ver, pensar e entender o mundo ao seu redor – sem a necessidade de passar por um método de ensino penalizante e exclusivo. Esse projeto interventivo deve ser pensado juntamente com o aluno – uma simbiose entre educador e educando – para que suas dificuldades particulares sejam abordadas e reparadas e suas qualidades sejam consideradas durante as atividades – visto que não há qualquer comprovação de que o nível de inteligência de um disléxico seja inferior. De acordo com o Instituto ABCD, crianças com dislexia se beneficiam do ensinamento explícito, direto, individualizado, multissensorial, sequencial e preventivo.

A dislexia não é uma doença que impede o aprendizado; é um transtorno cuja raíz é o modo com que a ensinança ocorre dentro das escolas. O disléxico não sofre de um mal ou de uma enfermidade cruel; ele é afligido apenas por um sistema de ensino mal projetado, em que a ideia social de que saber ler perfeitamente e escrever corretamente é o equivalente a ser inteligente quando, na realidade, existem muitas outras formas de inteligência.

Análise de dados

De acordo com o documentário Journey Into Dyslexia, produzido pelos premiados cineastas Alan e Susan Raymon em 2011 e transmitido pela HBO, no mínimo 50% das crianças com transtornos de aprendizagem abandonam a escola – dentro desta porcentagem encontram-se crianças com dislexia, discalculia, TDAH etc. Isso demonstra a ineficácia do Estado em assegurar o direito à educação digna, gratuita, pública e de qualidade garantido pela Constituição Federal de 1988. Essa falta de interesse em adaptar a educação visando torná-la receptiva e inclusiva traz danos significativos para aqueles que não conseguem acompanhar um ensino tradicional – danos por vezes irreversíveis, que repercutem incessantemente nas esferas sociais dessas pessoas.

Os objetos de estudo deste trabalho são adultos que, devido à ausência de projetos educacionais holistas, precisaram passar por uma “reabilitação social”: foi necessário convencê-los de que são inteligentes e capazes, mesmo com a dislexia – o contrário do que aprenderam durante seu período escolar.

Em todos os relatos ouvidos e lidos – não se tratando apenas das entrevistas realizadas para este trabalho, mas mencionando também histórias encontradas em sites que têm a dislexia como foco –, os professores são vistos como cruéis e malvados, que viam seus alunos disléxicos como preguiçosos, desatentos e até mesmo fracassados. As histórias mostram os prejuízos que a falta de recepção trouxe para a vida dos adultos disléxicos sem diagnóstico precoce, ou seja, que passaram pela vida escolar sem a percepção de que existia um transtorno que dificultava seu aprendizado, acreditando apenas que eram falhos e incapazes.

A primeira entrevista, realizada com uma mulher de 58 anos, M. A., nascida e criada em Angatuba, cidade do interior do estado de São Paulo, narra episódios traumáticos que ainda ecoam, atrapalhando suas relações interpessoais. Com dislexia severa, ela repetiu a série quatro vezes – uma vez a 7ª série e três vezes o 1º ano do Colegial (atual Ensino Médio). Terminou a escola por pressão, visto que sua mãe era professora; ainda assim, foi diagnosticada com dislexia somente aos 56 anos – para sua mãe e para seus professores, como comumente acontece, ela era apenas uma adolescente preguiçosa e bagunceira.

M. A. afirma saber desde pequena que era diferente, mas só soube recentemente que se tratava de dislexia. Quando questionada sobre o impacto que isso teve em sua vida, ela conta que, por ser chamada de “burra” por seus educadores e seus colegas na escola, hoje ela é uma adulta insegura que evita se comunicar pela escrita, o que é uma barreira em sua vida, considerando que as redes sociais possuem papel importante nos tempos atuais.

Por outro lado, como é comum entre os disléxicos, ela adquiriu habilidades que a fazem se destacar em outros âmbitos – a dislexia atrapalha a leitura e a escrita, mas favorece as atividades ligadas à imaginação e à criatividade. Atualmente, ela é uma empresária de sucesso e muito querida por seus funcionários devido ao fato de conseguir lidar com situações complexas de forma justa e equilibrada.

Enquanto M. A. contava suas vivências, uma característica ficou clara: a troca dos sons das letras vozeadas pelo som das letras desvozeadas, como o som da letra B pelo som da letra P, o som da letra V pelo som da letra F e o som da letra D pelo som da letra T. Essa troca, também comum entre disléxicos, foi a causa do que a empresária descreve ter sido a pior experiência que ela já teve por conta de seu transtorno. Na 7ª série, ao fazer uma prova de Ciências, ela trocou a palavra “pelo” por “belo” – as grafias são semelhantes, o que confunde facilmente um disléxico. Depois da prova, ela foi ao supermercado com sua mãe e acabaram encontrando a professora, que teria rido do seu erro e falado que ela deveria desistir, porque “não passaria de ano daquele jeito”. O episódio a fez desistir momentaneamente dos estudos. Esse exemplo mostra a importância da reflexão acerca das barreiras enfrentadas por alunos com dislexia dentro de um sistema de ensino pensado apenas para aqueles que não enfrentam nenhum tipo de transtorno de aprendizagem.

Outro ponto que deve ser observado é o fato de que ninguém reconhecia que existia uma dificuldade real – nem mesmo a mãe da entrevistada, que é professora de Artes na rede pública. Isso mostra a ineficiência do ensino no que diz respeito à inclusão de pessoas disléxicas, um distúrbio que é facilmente perceptível e que, diagnosticado precocemente, pode ter seus prejuízos significativamente reduzidos.

O segundo entrevistado, A. E., um homem de 54 anos, também se lembra bem de seus tempos de escola. Apesar de possuir dislexia mais branda, a falta de conhecimento acerca de seu transtorno dificultou significativamente sua permanência na sala de aula.

Como a primeira entrevistada, ele também possui certa dificuldade em diferenciar as letras com sons e/ou grafia parecidas. Além disso, apresenta dificuldades em pronunciar dígrafos, omite palavras e letras durante a leitura e confunde direita e esquerda – também características comuns entre disléxicos.

Formado em Administração de Empresas pelas Faculdades Integradas de Itapetininga, hoje ele é dono de uma rede de supermercados; lida muito bem com a dislexia, descoberta aos 16 anos ao pensar em procurar uma fonoaudióloga devido aos seus problemas na fala. No entanto, foi aconselhado por um amigo a não procurar ajuda, porque “seu jeito de falar fazia parte de quem ele era”. Para ele, essa fase foi a mais conturbada; a vergonha de tirar dúvidas devido aos erros de pronúncia e de escrever em atividades conjuntas fez com que ele não se sentisse confortável em expressar seus pensamentos.

Mesmo com as dificuldades, terminou a escola e a faculdade; atribui isso à ajuda de colegas que entendiam suas dificuldades e lidavam com elas com paciência e parceria. E mais: o fato de ser de família rica o ajudou a não sofrer com o bullying e com a exclusão – infelizmente, um privilégio que nem todos têm.

A. E. só teve certeza de sua dislexia na faculdade, e só buscou ajuda profissional quando teve sua primeira filha, por medo de atrapalhar seu processo de alfabetização. Se durante sua permanência estudantil algum professor tivesse notado suas dificuldades e reconhecesse que são sintomas do transtorno da dislexia, a história seria diferente e o acompanhamento profissional aconteceria mais cedo, fazendo com que o diagnóstico fosse antecipado e ele pudesse ter recebido mais intervenções.

Dois acontecimentos marcaram sua vida como pessoa disléxica. O primeiro, quando foi viajar com seus primos e, quando sugeriu irem a um bar, não foi compreendido: “o que é um par?” “Par? Onde tem isso?”. O segundo foi quando pediu ao seu filho que pegasse uma bebida na geladeira e seu filho o questionou porque teria uma “pepita” na geladeira.

Hoje, ele escreve bem, mas precisa ler e reler seus textos mais de uma vez, o que demanda muita concentração e uma energia absurda. A dislexia segue presente, mas, agora, conviver com ela não é mais um fardo – passou a ser apenas uma de suas muitas características.

São dois relatos diferentes de duas pessoas que lidaram e lidam de modo diverso com seu transtorno de aprendizagem. Cada disléxico possui suas particularidades e é importante que haja apoio e reconhecimento para enxergá-las e pensar maneiras de torná-las favoráveis para o processo de aprendizagem.

O reconhecimento do que se tem ajuda na compreensão de dificuldades e sintomas. Saber-se disléxico é o começo de tudo: de uma vida menos penalizante e da possibilidade de uma reintegração social proveitosa, reconhecendo limites e enxergando novas possibilidades. A dislexia não é um problema; pelo contrário. Davis (2004), Raymon e Raymon (2011) e Pinto (2013) evidenciam em seus textos um ponto importante e necessário: a dislexia é um dom.

Conclusão

Com base na leitura de textos jornalísticos e científicos, assim como na análise de documentários e de entrevistas realizadas com pessoas disléxicas, nota-se que o sistema educacional não está preparado para receber pessoas com transtornos de aprendizagem, mais especificamente com o transtorno da dislexia.

Apesar de atingir uma parcela considerável da população mundial, o conhecimento acerca dessa dificuldade é ínfimo, assim como são ínfimos os métodos interventivos inclusivos disponíveis para garantir uma passagem equitativa dos disléxicos pela vida escolar; também não há políticas públicas pensadas para assegurar a permanência deles no sistema de ensino.

Mesmo que seja significativamente discutida, a inclusão não é uma realidade; há muito preconceito e violência simbólica contra aqueles que não seguem os padrões impostos socialmente quanto ao que é “ser inteligente” ou “obter sucesso”. O resultado disso é uma grande evasão escolar e a ideia de insuficiência e incapacidade por parte daqueles que não recebem um diagnóstico precoce devido à ignorância de seus professores e educadores – aqueles que deveriam servir como apoio – frente aos sintomas da dislexia.

Para que deixe de existir um tabu sobre a dislexia, o sistema deve reconhecer que há diferença entre pessoas com dislexia e pessoas sem dislexia, mas que essa diferença pode ser benéfica: não existem dois indivíduos disléxicos iguais e cada um será moldado pelo seu padrão único de habilidades, aptidões e experiências. As possibilidades de trabalhar com algo tão moldável são infinitas, basta que haja conhecimento e disponibilidade de se pensar em atividades inclusivas, e a palavra-chave para isso é criatividade. Para Ronald D. Davis (2004), para disléxicos “o processo criativo e o processo de aprendizagem, se não idênticos, estão tão intimamente ligados que são inseparáveis”.

Uma modificação no sistema pedagógico e o conhecimento por parte dos professores sobre o TEA são essenciais para que haja permanência confortável de disléxicos dentro dos sistemas de ensino público e privado. Tendo em vista os dois entrevistados, a implementação de estratégias e métodos diferenciados de ensino facilitariam sua passagem pela vida escolar. A falta de apoio e de conhecimento implicam ignorância e inacessibilidade.

Referências

ALVES, Luciana Mendonça; MOUSINHO, Renata; CAPELLINI, Simone Aparecida. Dislexia: novos temas, novas perspectivas. v. 4. Rio de Janeiro: Wak, 2018.

DAVIS, Ronald D. O dom da dislexia. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

INSTITUTO ABCD. Entendendo a dislexia. Curso online, realizado em 22 de julho de 2021.

PINTO, Mónica Grasiela da Silva. Viver com dislexia: estudo de um modelo empírico e da sua aplicabilidade nos modelos científicos de reeducação. Dissertação, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2013.

RAYMON, A.; RAYMON, S. Journey into Dislexia. TV-G. HBO. 1h17min. 2011.

SANTOS, Roseane. “Me chamavam de burro e repeti 7 vezes”: ele só descobriu a dislexia aos 35. Viva Bem, UOL, 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/06/10/me-chamavam-de-burro-e-repeti-5-vezes-ele-so-descobriu-dislexia-aos-35.htm. Acesso em: 10 dez. 2021.

Publicado em 20 de fevereiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

VERARDI, Ana Beatriz Franklin; CARVALHO, Wenis Vargas de; HOLLOSI, Marcio. Relatos de experiências: a dislexia na vida real. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 5, 20 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/5/relatos-de-experiencias-a-dislexia-na-vida-real

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.