Trabalho, saúde e cidadania: um estudo das pesquisas escolares realizadas por estudantes cearenses na Biblioteca Pública de Maranguape

Francisco Ari de Andrade

Professor doutor na Universidade Federal do Ceará

Erinelda da Costa Paixão

Doutoranda em Educação (UFC)

Hoje, com o mundo da informação na palma da mão, não são muitos os estudantes que cultivam o hábito de buscar nos acervos das bibliotecas respostas para a resolução de suas tarefas escolares. Essa mudança nos hábitos e nas práticas culturais dos estudantes é um reflexo da revolução tecnológica, que nos apresentou os textos eletrônicos e influenciou, significativamente, a relação das pessoas com a cultura escrita, seja na produção, na transmissão ou na apropriação dos textos. Esse movimento, como afirma o historiador Roger Chartier (1999), ocasionou transformações não apenas na materialidade do suporte escrito – o livro – bem como nas diferentes maneiras de ler. Desse modo, a forma de aprender também sofreu transformações.

Não obstante, a proposta apresentada neste artigo tem o intuito de recuar no tempo e na história das práticas educativas, quando o advento da tecnologia ainda não se havia inserido no contexto escolar e a busca pelos acervos bibliográficos nas bibliotecas era um recurso essencial no processo de ensino-aprendizagem, a fim de investigar as pesquisas escolares dos estudantes cearenses, no ano 1980, realizadas na Biblioteca Pública Capistrano de Abreu, em Maranguape, no Estado do Ceará.

O que esses alunos estudavam? Quais saberes curriculares mobilizaram o conhecimento escolar no referido período? Questionamos, ainda, de que maneira tais saberes refletiam concepções pedagógicas e culturais presentes na Reforma Educacional realizada pela Lei nº 5692/71, que influenciou os anos posteriores a sua elaboração, projetando um modelo político para a nova sociedade que se almejava.

Graças à abertura teórico-metodológica das novas vertentes de análise e produção histórica (Certeau, 2020; Bloch, 2001; Burke, 2011), os historiadores da Educação têm podido elaborar uma história da escolarização de uma maneira diferente daquela veiculada pelos textos e regimentos oficiais (leis, instruções oficiais) ou pelos discursos pedagógicos (livros, revistas e manuais pedagógicos), utilizando fontes diversas que muitas vezes escapam ao seu propósito primeiro.

Ao argumentar acerca da diversidade documental de fontes da escola e de possíveis temas de pesquisa a serem desenvolvidos a partir delas, Maria J. Mogarro (2005, p. 81-82) acentua que

muitas dessas fontes de informação encontram-se no exterior da escola a que respeitam (e, consequentemente, do seu arquivo), sendo parte integrante de um universo que hoje é múltiplo e complexo. Esse universo engloba as fontes de informação mais tradicionais e consagradas, assim como aquelas que conquistaram recentemente o seu lugar nesse contexto; integra fontes produzidas no interior das instituições, mas outras que lhes são exteriores; muitos dos seus documentos estão marcados pela materialidade dos seus suportes, outros pela oralidade com que os actores educativos expressaram os seus discursos.

Logo, no intuito de responder às interrogações que norteiam esse estudo, elencamos, como fonte, o relatório anual da rotina administrativa do funcionário responsável pela gestão da referida biblioteca. Tal documento, concebido como testemunho dos exercícios de pesquisas dos estudantes, embora não seja uma fonte da escola, se constitui fonte para a escola (Ragazzini, 2001), na medida em que é portador de informações sobre práticas pedagógicas do quotidiano discente em um contexto historicamente determinado, apresentando indícios para a compreensão de uma realidade formativa, auxiliando na escrita da história da educação local, sem perder de vista sua relação com a educação nacional.

A estrutura do texto que ora apresentamos está organizada da seguinte forma: primeiramente, faremos uma breve exposição da concepção de práticas culturais ancorada nas pesquisas de Anne-Marie Chartier (2007), com foco nas práticas escolares de leitura e escrita. Na sequência, apresentaremos o quadro quanti-qualitativo das pesquisas escolares dos estudantes, categorizado por áreas de conhecimento, cruzando os dados extraídos à proposta pedagógica explicitada na Reforma Educacional, pela Lei nº 5.692/71, evidenciando a associação entre as atividades dos discentes e as normas escolares e culturais na dada época.

A conclusão aponta o repertório de saberes curriculares que mobilizou o conhecimento escolar no referido período e se constituiu no arcabouço do nosso sistema educacional e pedagógico contemporâneo. A relevância desse estudo incide em contribuir para a construção da memória das práticas e dos saberes escolares, em especial, daquelas que dizem respeito às escolas cearenses.

As pesquisas escolares como práticas culturais dos estudantes

Para entender a concepção de Anne-Marie Chartier acerca das práticas escolares de leitura e escrita, é imperioso penetrar, previamente, no pensamento de Michel de Certeau (1998) quanto às práticas culturais, pois ele teve influência decisiva nos estudos da pesquisadora.

Dentre sua vasta contribuição intelectual, notadamente marcada pela interdisciplinaridade, Certeau tratou de temas concernentes à epistemologia da história, dando ênfase às expressões culturais na vida comum, sobretudo, dos sujeitos que vivem à margem das culturas instituídas por estruturas estabelecidas política e socialmente. Para o autor, a cultura dos homens, longe de ser passiva e condicionada exclusivamente pelos discursos institucionais, é ativa, diversificada, atrelada aos aspectos próprios do cenário histórico na qual foi produzida, sendo, portanto, uma cultura plural, caracterizada pelas táticas de apropriação dos setores marginalizados ante as estratégias de poder produzidas pelas instituições de cultura formal.

Certeau dedicou-se, pois, a compreender os sujeitos como produtores culturais, o que significa dizer que, todo ser humano, a partir das diferentes apropriações culturais, produz cultura. Segue abaixo uma de suas célebres afirmações no que diz respeito à sua concepção:

A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem economicamente dominante (Certeau, 1998, p. 39, grifo nosso).

Com base nesse raciocínio, há uma produção cultural que é o resultado da elaboração de produtos próprios (como no caso dos escritores, atores, intelectuais, entre outros), mas há também uma produção cultural oriunda dos diferentes modos ou maneiras de se utilizar produtos alheios, ou seja, todos somos produtores culturais, mesmo quando estamos na condição de receptores. Nesse último caso, por vezes qualificado por Certeau como passivo, os sujeitos possuem um papel dinâmico, criativo, expressos nos usos inesperados e nas apropriações que fazem das normas de regulação social e dos produtos culturais, como, por exemplo, as diferentes maneiras de ler um livro, de interpretar um texto, de utilizar um jornal ou de interagir com um determinado espaço ou serviço cultural. Tais apropriações diversas dos indivíduos geram novas representações que produzem sentido para o sujeito que as emprega. A essa capacidade do ser humano de ressignificar a vida, Certeau denominou de “a invenção do cotidiano”. 

Logo, a questão-chave perseguida por Certeau em suas pesquisas sobre cultura era

compreender as diferenças, o pensamento e as práticas de vida do ‘outro’, sobretudo os marginalizados pelos discursos e instituições oficiais. [...] ele tentou entender a intimidade e as práticas sociais daqueles que transgrediam anonimamente os controles sociais” (Moraes; Gambeta, 2011, p. 166).

Para isso, ele costumava comparar os discursos e as práticas, ou seja, costumava comparar os saberes instituídos de uma determinada época e sua relação com as práticas sociais dos sujeitos anônimos. No que tange ao âmbito escolar, esse entendimento de Certeau não varia.

Diferentemente das interpretações que predominavam no período de seus estudos, como as posições marxistas, ou aquelas adotadas por Foucault e Bourdieu, Certeau acreditava que a escola não é caracterizada apenas por ser um aparelho ideológico de reprodução do modelo capitalista, pois, tal qual a sociedade, ela não é constituída de uma cultura única. Ao contrário, é composta pela diversificação, pela multiplicidade de sujeitos e culturas, em outras palavras, por uma cultura plural. Ao mesmo tempo que funciona como um aparato difusor da cultura padronizada, a escola também apresenta espaços para a ação criadora dos sujeitos educativos que, capazes de inovar e atuar furtivamente em meio às regras estabelecidas, apropriam-se dos espaços e saberes instituídos, contextualizando-os à sua maneira, atribuindo-lhe outros sentidos.

É neste ponto da acepção da cultura plural que os estudos de Michel de Certeau e Anne-Marie Chartier convergem, desaguando em contribuições ao universo do ensino, dando um novo sentido para a relação saber/fazer.

Anne-Marie escreveu inúmeros textos, produziu significativamente sobre processos de escolarização, bem como sobre as práticas de formação docente e do exercício profissional de professores. Contudo, o que aqui nos interessa é a concepção da autora acerca das práticas escolares de leitura e escrita.

A autora argumenta contra a ideia de que o ato de ler segue um modelo estático, desvinculado de sua realidade histórica. De acordo com suas pesquisas (Chartier, 2016), os diferentes modelos de leitura que surgiram ao longo do tempo se devem às práticas sociais dos sujeitos, ocasionando transformações nos métodos de ensino escolar. Partindo dessa perspectiva, Anne-Marie analisa tais práticas

particularizando-as como práticas historicamente situadas. A descrição de sua materialidade como práticas de sala de aula põe em evidência os materiais de que fazem uso; o repertório de saberes que mobilizam; os métodos de que se apropriam, referindo-as, sempre, às regras culturais que, fora da escola, regem os usos sociais da leitura e da escrita em um determinado momento histórico (Chagas; Hansen, 2011, p. 71).

Desse modo, Anne-Marie põe em foco as práticas escolares de leitura e escrita, trazendo à tona modos de ler, escrever e aprender, evidenciando representações intrínsecas, privilegiando a materialidade empírica dos fazeres, ou seja, daquilo que escapa ao discurso.

Assim, importa ao estudo a concepção da autora de que as práticas escolares dos sujeitos educativos são “práticas culturais datadas, situadas em espaços geográficos, e culturais, determinados e que não podem ser dissociadas dos modos materiais e particulares de sua invenção e das finalidades que lhes foram socialmente atribuídas” (Chagas; Hansen, 2011, p. 71).

Em seu artigo sobre a cultura escrita pretendida pela escola republicana francesa entre 1880-1970, Anne-Marie (2007) investigou os exercícios de caligrafia, cópia, ditado e redação dos estudantes, a partir da análise de seus cadernos escolares. Nesse trabalho, a autora assinalou que,

para uma perspectiva histórica, o importante é relacionar os cadernos às normas de seu tempo, tanto as escolares como as sociais e culturais. Daí surge a questão fundamental [...]: de que maneira os cadernos escolares manifestam a cultura escrita de seu tempo? (Chartier, 2007, p. 18).

Anne-Marie respondeu a essa indagação quando evidenciou os discursos e representações de uma época ecoada nas atividades dos discentes que, em sintonia com projetos políticos e de ensino, partilham de contextos e demandas específicas. Em sua análise, viram-se mobilizados saberes que deram movimento ao processo de ensino-aprendizagem, como se observa no enunciado a seguir.

Não é fácil apreender essa evolução nos textos nem nos programas oficiais, mas ela é visível nos cadernos dos alunos. Algumas matérias estão presentes nesses materiais dos anos 1900: a moral, a história, a geografia, as ciências. Aparecem em textos copiados, ditados ou redigidos. Depois da primeira Guerra Mundial, com o surgimento de uma aprendizagem focada na língua francesa, os exercícios de gramática e de conjugação ocuparam um lugar cada vez maior nas práticas escolares (Chartier, 2007, p. 31).

As atividades escolares dos estudantes não são meros acontecimentos isolados, mas práticas culturais situadas em seus respectivos contextos, partes de uma multifacetada rede de relações, regulada e normatizada por estabelecimentos educacionais submetidos às leis, às concepções e às articulações políticas e culturais, evidenciando, assim, uma teia de significados devidamente delimitados por um momento histórico.

Nessa direção, especificamente, a concepção de Anne-Marie se tornou basilar para a investigação, lançando luz à análise das pesquisas escolares dos estudantes cearenses, dentro da realidade educacional de 1980, conferindo-lhes uma dimensão que possibilita o entendimento de uma época permeada de questões políticas, sociais e pedagógicas, comuns ao período do governo militar, posterior ao Golpe de 1964.

Sobre a Biblioteca Pública Capistrano de Abreu

A Biblioteca Pública Capistrano de Abreu (BPCA), localizada no município de Maranguape, que atualmente se configura como região metropolitana de Fortaleza, a 27km da capital, ao norte do estado do Ceará, foi criada em 1959 pelo prefeito Antonio Botelho Câmara, com a assinatura do Decreto de Lei nº 257/59. Tal iniciativa expressou sintonia com o contexto sociopolítico nacional-desenvolvimentista, proposto pelo governo de Juscelino Kubistchek (1956-1961), em uma época em que se preconizava a democratização da escola e a modernização do ensino, com um caráter eminentemente científico e técnico, a fim de vincular a escola ao meio social produtivo.

Contudo, o discurso de “promoção da cultura letrada em âmbito local”, que fertilizou a elaboração da lei de criação dessa biblioteca, se dissipou no momento da sua execução, pois embora tenha sido proposta mediante lei municipal, a BPCA não saiu do papel por quatorze anos, passando a existir, em sua concretude, somente quando se deu a sua efetiva implantação, em 28 de agosto de 1973, instalando-se num modesto prédio no centro da cidade.

Foi na década de 1970 que diversas iniciativas culturais surgiram por meio das ações do Instituto Nacional do Livro (INL), órgão do então Ministério da Educação e Cultura, criado pelo Decreto-Lei nº 93, de 21 de dezembro de 1937. Tais iniciativas propugnavam o aumento do número de bibliotecas públicas e espaços de leitura em todo território nacional. Para isso, foram desenvolvidos programas de auxílio na organização e na manutenção de bibliotecas públicas recém-criadas. Dentre eles, se destaca o Programa Nacional do Livro, para a manutenção de bibliotecas públicas e espaços de leitura, por meio do qual o governo federal firmou convênio com as prefeituras no intuito de promover a cultura e a educação em diferentes regiões do país.

Mediante tal acordo, o INL daria substancial auxílio, fornecendo assistência técnica para assuntos referentes à catalogação dos livros, organização e gestão dos espaços de leituras, além de fazer a doação anual de 450 volumes para a composição de seus acervos bibliográficos, ajudando, assim, as bibliotecas incipientes a atenderem a comunidade local, suprindo a demanda do público escolar.

Desse modo, em consonância com o panorama cultural que se desenrolava no período, em 15 de agosto de 1974, um ano após a instalação da BPCA, o governo municipal de Maranguape firmou convênio com o INL, recebendo a doação de 1.800 livros. Tais volumes compuseram o acervo bibliográfico da BPCA, dando subsídio às atividades dos estudantes da comunidade escolar maranguapense no ano 1980, entre elas, as pesquisas escolares realizadas diariamente e que são o foco do presente estudo.

Sobre as atividades de pesquisas escolares

A partir da análise do relatório anual da rotina administrativa do funcionário responsável pela gestão da BPCA, em 1980, as pesquisas escolares foram realizadas por estudantes do 1º e 2º graus, incluindo os alunos que cursaram turmas técnicas como o Pedagógico, a Contabilidade e turmas de Enfermagem no Colégio Estadual Anchieta. Outras instituições que se fizeram presente nessas atividades estudantis foram: Curso Particular São José, Escola de 1º grau Rio Grande do Norte, Escola de 1º grau Manoel Severo Barbosa, Escola de 1º grau Luiz Girão, Centro de Educação Manoel Rodrigues e Escola de 1º grau Capistrano de Abreu.

No que concerne às metodologias utilizadas no ato da pesquisa, o relatório aponta para questionários, elaboração de resumos, localização de assuntos em livros e/ou jornais e revistas, pesquisas em mapas e dicionários. À guisa de exemplo, há o registro de uma pesquisa realizada no dia 15 de junho de 1980, por alunos de 1º grau do Curso Particular São José, que consistia na atividade de retirar várias palavras desconhecidas de um poema de Carlos Drummond de Andrade e, em seguida, com o uso de dicionários, fornecer os significados dessas palavras.

Ainda de acordo com o relatório, no intuito de facilitar as pesquisas dos estudantes, eram organizadas exposições de assuntos na parede da biblioteca, como também elaborados: apostilas temáticas, desenhos, mapas e cópias dos assuntos mais solicitados. Na ausência de fonte de pesquisa, buscava-se material emprestado em outras instituições. Conforme observamos nos trechos a seguir, extraídos do relatório:

05/setembro: organização da pasta nº09/80: apostilas para a pesquisa; elaborei a biografia de Santos Dumont e relato sobre a imprensa.

22/setembro: elaborei os seguintes desenhos: simbologia de Maranguape: brasão, bandeira, mapas e cópias do hino; fontes de pesquisas.

04/outubro: organização de uma apostila sobre os grandes males da sociedade.

05/outubro: elaborei apostila: imperadores e presidentes do Brasil até o momento, para pesquisas.

07/outubro: elaborei apostila sobre prostituição.

08/outubro: elaborei apostila sobre trote, e desenvolvimento mental da criança.

10/outubro: elaborei apostila de técnicas de vendas.

15/outubro: elaborei apostila sobre o ciclo do café.

23/outubro: fiz exposição de dados biográficos do pai da aviação: Alberto Santos Dumont, inventor.

27/outubro: elaborei alguns modelos de documentos comerciais para alunos da 8ª série do Colégio Particular São José.

11/novembro: arranjei um livro emprestado para pesquisa: o Almanaque Abril, de 1980.

Outro dado relevante diz respeito ao incentivo dado às pesquisas escolares na biblioteca. O funcionário da instituição elaborava comunicados e ofícios destinados aos professores das escolas da comunidade, no sentido de ampliar a utilização da biblioteca, por parte do público estudantil. Como expresso nos excertos abaixo:

19/setembro: Elaborei ofício circular aos professores, visando ampliação ao incentivo à pesquisa.

13/outubro: elaborei no stencil ofício circulares aos professores para incentivo dos alunos às pesquisas e empréstimos.

Trabalho, saúde e cidadania: o repertório dos saberes escolares

Ao longo da história do Brasil, não foram poucas as políticas públicas estabelecidas no intuito de regulamentar os conteúdos curriculares da escola básica. A Reforma Educacional estabelecida pela Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, fixou diretrizes para o ensino de 1º e 2º Graus, atribuindo-lhes as seguintes finalidades:

Art. 1º O ensino de 1º e 2º Graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de autorrealização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania (Brasil, 1971, p. 1).

De acordo com Romanelli (1986), essa nova abordagem dada à educação desse período qualificava-se pelo caráter profissionalizante da formação dos estudantes, por meio de cursos técnicos que visavam à promoção de conhecimentos e aptidões no âmbito da iniciação para o trabalho. Contudo, buscava-se também construir um sistema educacional capaz de contribuir eficazmente para modelar uma sociedade, cultivando, nos alunos, uma consciência nacional, cidadã e cívica, o que influenciou expressivamente as experiências escolares vivenciadas por estudantes brasileiros. Haja vista que o programa de ensino, por meio dos saberes curriculares adotados, buscava implementar na consciência da jovem geração, um certo número de ideias, crenças, sentimentos e práticas, no intuito de constituir o ser social com um novo modelo de educação.

Tais finalidades de ensino repousavam em concepções pedagógicas importadas da Europa, mais precisamente do sociólogo francês Émile Durkheim (2001, p. 52), que tratavam da educação como 

a acção exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Tem por objeto suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos e intelectuais e morais que lhe exigem a sociedade política no seu conjunto e o meio especial ao qual está particularmente destinada.

Essa formação do homem, de um ponto de vista intelectual, físico e moral estava circunscrita na referida Reforma Educacional estabelecida pela Lei nº 5.692/71, que trazia como tema central a relação entre o indivíduo e a sociedade e questões como o direito e o dever, o progresso, o trabalho, a ciência, o exercício consciente da cidadania, compondo o programa de ensino que pretendia formar o espírito nacional.

Essa reformulação do modelo de educação primária e média trouxe um novo enfoque para a escola, modificando consequentemente sua grade curricular, a fim de atender às necessidades do mercado, fornecendo também capacitação da força de trabalho. Assim, pela referida Lei, fixou-se a obrigatoriedade de quatro novas disciplinas nos currículos das escolas de 1º e 2º Graus: Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde. Já o Ensino Religioso foi incluído como disciplina optativa. O fato é que essa reforma influenciou a vida dos estudantes nos anos posteriores da sua elaboração, projetando, nas atividades escolares, concepções políticas e modelos culturais para a nova sociedade que se almejava.

Com efeito, percebemos nas pesquisas escolares dos estudantes cearenses de 1980 tais concepções expressas nos saberes requeridos pelas escolas do período. Em sua maioria, as pesquisas consistem em investigar os saberes históricos, os saberes compreendidos no Programa de Saúde e os saberes de cunho moral e cívico. De modo que, das 333 pesquisas escolares registradas no relatório anual da BPCA, quase 50% foram dedicadas à formação de uma consciência nacional, com responsabilidade social e cidadã, como o Gráfico 1 apresenta.

Gráfico 1: Pesquisas dos estudantes cearenses em 1980

Na área de conhecimentos históricos, por exemplo, 40% das pesquisas buscavam requisitar dos alunos dados concernentes à pré-história dos povos pertencentes ao berço da civilização antiga (egípcios, romanos, gregos), a origem, a riqueza e o desenvolvimento de países como China, Japão, Itália, Paraguai, entre outros, enquanto 42% dessas pesquisas requeriam a descrição de fatos dos diferentes períodos da História nacional (Colônia, Império e República), bem como biografias de personalidades políticas, como a do Duque de Caxias, da Princesa Isabel e do Marechal Deodoro da Fonseca. Finalizando o eixo de pesquisas históricas, 18% tratavam de trabalhar com os alunos o conhecimento dos símbolos oficiais da história da comunidade maranguapense (hino oficial do município, bandeira e aspectos gerais da história local).

Gráfico 2: Saberes históricos pesquisados

Já no que diz respeito às pesquisas inseridas na disciplina do Programa de Saúde, das 52 realizadas, 44 delas correspondiam aos saberes voltados para as causas de contágio e o combate de diversas doenças, como: verminose, febre tifoide, sarampo, meningite, caxumba, difteria, febre amarela, hanseníase, tétano e coqueluche.

Gráfico 3: Saberes referentes às questões de saúde

Contudo, havia uma parcela dessas pesquisas do Programa de Saúde que tratavam de temas voltados para a saúde psicológica e social do homem. De modo que foram realizadas 8 pesquisas com alunos do 1º e 4º período do Curso Pedagógico do Colégio Estadual Anchieta, intituladas como “estudos acerca dos males da sociedade”, que investigavam questões de delinquência, prostituição, marginalismo, violência urbana, vícios, tabagismo, intoxicações crônicas e alcoolismo. Nesse caso, vale ressaltar a forma como eram compreendidos os temas acerca da mudança de comportamento sexual, como o lesbianismo e/ou homossexualidade. De acordo com o relatório analisado, tais comportamentos, inseridos na psicologia da adolescência, eram tidos como aberração e/ou anomalia.

Outro conjunto de saberes que se destacou nas pesquisas dos estudantes do ano 1980, foram aqueles concernentes aos valores e ideais que sustentam e animam uma nação. Das 39 pesquisas realizadas na área de Educação Moral e Cívica, 10 apresentaram saberes voltados para a formação do caráter e da personalidade dos estudantes, bem como sobre a vida do homem em família e sociedade. As 29 pesquisas restantes se referiram ao desenvolvimento de uma consciência cidadã e cívica, por meio da investigação de temas voltados para os direitos e os deveres do cidadão, o engrandecimento da pátria, o conhecimento das leis e das normas jurídicas da constituição brasileira, a criação e a composição dos diferentes ministérios, assim como também foram investigados os emblemas e símbolos nacionais, a vida política do Brasil e as diversas biografias de personalidades ilustres da vida política, como dos autores da Independência, a vida do presidente Figueiredo e de outros ministros do período.

Gráfico 4: Saberes referentes à questão moral e à pátria

As 31 pesquisas do campo da literatura investigavam menos escolas, eventos e obras literárias e mais biografias de poetas e escritores: Catulo da Paixão Cearense, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Érico Verissimo, Raquel de Queiroz, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Mário Quintana, Miguel Torga, dentre outros.

Em se tratando das pesquisas na área da Matemática, das 26 realizadas, apenas 3 foram voltadas para as equações do 2º grau, biquadradas e irracionais, enquanto as 23 restantes foram realizadas por estudantes do 2º grau, de turmas do curso de Contabilidade do Colégio Estadual Anchieta, sendo dedicadas aos saberes do campo econômico, como os bens de produção (capitalismo, socialismo, escravismo, comunismo e coletivismo), sistemas de contas (ativo, passivo, déficit, superávit), contabilidade agrícola e industrial, técnicas comerciais, valor, preço, demanda, gráficos empresariais, quantidades e preços, propaganda, publicidade e marketing, capital, juros, documentos comerciais, técnicas de vendas, escrituração e economia de mercado.

Na área de Educação Artística, foram registradas dezessete pesquisas, que tratavam, sobretudo, de datas comemorativas, principalmente do Dia do Folclore. De modo que foram investigados, pelos alunos de 1º grau, saberes voltados para a cultura popular nordestina (os vaqueiros, jangadeiros, as rendeiras e as artes da xilogravura). Já no campo da Educação Física, durante o ano, apenas três pesquisas foram realizadas, cujos temas foram: basquetebol, as Olímpiadas e conceitos da parte teórica da área de estudo.

Os saberes religiosos investigados nas nove pesquisas realizadas nessa área de estudo, tida como disciplina optativa, tratavam de São Judas Tadeu, São Francisco das Chagas, também do evento da Semana Santa e saberes extraídos de ensinamentos da Bíblia, como a biografia de Jesus Cristo e de seus apóstolos, a partir da pesquisa nos Evangelhos. Tais pesquisas foram realizadas por alunos do 1º grau, do Curso Particular São José.

Ao longo do ano 1980, apenas uma pesquisa de inglês foi registrada no relatório. Consistia na tradução de palavras para o português. As demais pesquisas versavam sobre saberes de conhecimentos gerais. Foram, portanto, 24 pesquisas sobre assuntos diversos: o computador e seus métodos, o evento do carnaval, a cana-de-açúcar, a castanha, o cacau e o chocolate, receitas famosas, modelos de cartas (comercias, sociais, familiares e particulares), redes de televisão existentes no país, telégrafo, locomotivas, imprensa, origem e desenvolvimento da imprensa, selo do correios, computador, eletricidade, energia, artesanato e artesãos, tipos de indústrias, comunicação (rádio), tecnologia, produtos derivados do petróleo, combustíveis, formação de frases para o evento do natal, tipos de máquinas a vapor, a vida de Santos Dummont e suas invenções, os Estados Unidos e sua industrialização, o racismo, métodos científicos e noções fundamentais de Justiça.

Considerações finais

Ao fim desse breve percurso pelas pesquisas escolares dos estudantes cearenses durante o ano 1980, inferimos que os saberes pertencentes ao programa curricular do período, mobilizou o processo de escolarização desses estudantes, pois estavam em consonância com as concepções pedagógicas e culturais que vigoram por meio da Reforma Educacional realizada pela Lei nº 5.692/71.

Em outras palavras, em uma época em que o país se preparava para uma abertura republicana, a escola voltava-se para o mundo do trabalho e para a formação de uma consciência cívica e cidadã, comprometida com os valores éticos e morais necessários para a construção da nova sociedade.

As atividades dos estudantes expressavam o repertório de saberes partilhados pela escola, traduzindo as experiências escolares vivenciadas pelos estudantes, as ideias, as crenças, os sentimentos e as práticas que eram propagados pelo programa de ensino, no intuito de constituir o ser social naquele modelo de educação.

Desses saberes, destacam-se os conhecimentos históricos e os da área da saúde, compreendidos no seu âmbito físico, psicológico e social. A esses saberes unem-se aqueles de cunho civilizatório, que tratam da formação do caráter, da consciência nacional e do amor à pátria, constituindo, assim, o arcabouço do nosso sistema educacional e pedagógico contemporâneo, uma proposta de educação sustentada na promoção do trabalho, e da cidadania.

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ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil: 1930/1973. Petrópolis: Vozes, 1986.

Publicado em 20 de fevereiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

ANDRADE, Francisco Ari de; PAIXÃO, Erinelda da Costa. Trabalho, saúde e cidadania: um estudo das pesquisas escolares realizadas por estudantes cearenses na Biblioteca Pública de Maranguape. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 5, 20 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/5/trabalho-saude-e-cidadania-um-estudo-das-pesquisas-escolares-realizadas-por-estudantes-cearenses-na-biblioteca-publica-de-maranguape

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