Debatendo a cultura alimentar na escola

Antonio Carlos Barbosa da Silva

Professor na Unesp – Câmpus Assis

Marina Coimbra Casadei Barbosa da Silva

Professora na Unimar

No Brasil, as políticas nacionais de alimentação e nutrição (PNAN) existem há 88 anos e foram se transformando ao longo desse período. No início eram voltadas para equacionar as dificuldades na distribuição de alimentos no país, porém tornaram-se, nas últimas três décadas, políticas que buscam o respeito, a proteção, a promoção e o provimento dos direitos humanos à saúde e à alimentação adequada e à cultural junto à população.

A PNAN de 2013 apontava que o aumento das doenças crônicas degenerativas estava relacionado aos novos hábitos alimentares adquiridos pela população, principalmente os relacionados ao consumo excessivo de alimentos industrializados. Essa política reafirmava, como propósito, a melhoria das condições de alimentação, nutrição e saúde da população brasileira.

Para que essas práticas fossem desenvolvidas, a Educação Alimentar e Nutricional (EAN) foi uma estratégia defendida e postulada junto a estudantes de escolas públicas. A EAN incentivou a criação de ambientes institucionais promotores de alimentação adequada e saudável que fizessem parte da cultura alimentar brasileira, incidindo sobre a oferta de alimentos saudáveis nas escolas e nos ambientes domésticos (Alves; Jaime, 2014).

A PNAN de 2013, ao apontar a EAN como estratégia para favorecer a consciência sobre a cultura alimentar e, consequentemente, melhorar a saúde nutricional dos brasileiros, também atribuiu aos educadores de diversos setores a responsabilidade em orientar as crianças de forma crítica sobre o ato de alimentar-se a partir dos diversos sistemas culturais: local, regional e nacional.

A EAN foi um dos caminhos existentes que se mostrou eficaz para a promoção da saúde, pois encaminhou a população a refletir sobre o seu comportamento alimentar, a partir da conscientização sobre a importância da alimentação para a saúde, permitindo a transformação e o resgate dos hábitos alimentares tradicionais, como aqueles que foram apreendidos pela história familiar, comunitária ou conforme os costumes regionais.

De certa forma, quem trabalha a EAN, além de associá-la a uma educação para a saúde, deve focar em suas questões educativas de forma transformadora. Para Boog (1997), um trabalho viável e crítico na promoção da EAN valoriza e resgata elementos da cultura alimentar, respeitando e modificando crenças e atitudes em relação à alimentação.

Outros componentes pertencentes ao contexto cultural, social, econômico e ecológico que envolvam a alimentação também são analisados, fazendo com que crenças e valores da população em relação à nutrição sejam aprofundados.

A Psicologia Histórico-Cultural, como área que analisa aspectos sociais, culturais e plurais, se mostra uma teoria que contribui para desvendar os processos e as artimanhas que compõem o cenário da alimentação brasileira. Com o aporte nos estudos de Vygotsky, a partir do materialismo histórico-dialético, ela atua no sentido de apreender a essência dos múltiplos fenômenos que constituem a realidade social, buscando compreender como se estrutura a relação do homem com a realidade, não só como meio social imediato, mas processo cultural, historicamente produzido pelas mediações culturais, presentes na sociedade.

A Psicologia Histórico-Cultural propõe ações que procuram transformar o imediato em mediato, negando as aparências ideológicas que estão nas atitudes da sociedade, no sentido de desvelar sua razão histórico-ideológica para, de algum modo, ir além desse conhecimento, procurando superá-lo, transformando-o por meio da ação-reflexão. A Psicologia Histórico-Cultural, portanto, busca um constante esclarecimento da realidade, resultando na inserção reflexiva na realidade dos sujeitos e na negação do homem abstrato, isolado, desligado do mundo real.

De um modo geral, ações em EAN contam com os princípios de uma Psicologia Histórico-Cultural que possibilitam ao sujeito encontrar condições para descobrir-se e conquistar-se em seu próprio tempo histórico, tornando o sujeito capaz de compreender seus problemas e transformá-los. Vale a pena, então, pensar a condição atual do sistema alimentar operante, debatê-lo, redefini-lo, a fim de desenvolver novas formas de estabelecer uma alimentação saudável, histórica, cultural, crítica e, de certa forma, desalienante.

Por essa razão, é relevante analisar o desempenho das práticas alimentares em uma sociedade, pois elas são construídas e transmitidas de geração em geração, carregando consigo signos que representam costumes, gostos e estilos de vida.

Procedimentos metodológicos

O estudo apresentado é um módulo de uma pesquisa maior efetuada no ano de 2018 e realizada em estreita associação com uma ação que visava colocar o coletivo dos alunos de uma escola pública, em contato com sua realidade alimentar e com os elementos históricos e culturais que construíram a prática alimentar brasileira. Para tanto, desenvolveram-se ações críticas (oficinas de reflexões) junto ao grupo de alunos. Essas oficinas aguçaram neles indagações e reformulações a respeito dos processos que levavam os sujeitos a consumir, sem crítica, alimentos industrializados, que, além de atentarem contra a saúde, os afastavam da cultura alimentar de seu país. Nesses espaços, a técnica das rodas de conversa foi utilizada.

Nesses tipos de ações participativas foram priorizadas discussões em torno da alimentação. No processo dialógico dos sujeitos, eles apresentam suas elaborações a respeito dela. Mesmo quando contraditórias, cada pessoa instigava a outra a falar, sendo possível se posicionar e ouvir o posicionamento do outro. O diálogo compartilhado permitiu que as histórias dos sujeitos em relação a determinada experiência alimentar fossem ressignificadas (Campos, 2000).

As oficinas foram desenvolvidas com três grupos abertos que contavam com cerca de dez a vinte alunos. A idade das pessoas do grupo variava entre nove e treze anos. Todos pertenciam a uma escola pública de uma cidade do interior paulista. As intervenções ocorriam a cada quinze dias. Foram desenvolvidas cerca de dez intervenções. As oficinas foram divididas e se diversificavam sobre as práticas alimentares contemporâneas, sobre a cultura alimentar tradicional brasileira e sobre as práticas reflexivas a respeito do preparo de comidas brasileiras típicas. Como eram grupos abertos, um mesmo estudante participava de mais de uma oficina. A oficina de culinária, entretanto, contava com cerca de 20 participantes, pois tinha como atrativo a degustação das comidas que eram preparadas. A equipe que desenvolveu as atividades (rodas de conversas e culinária) contou com o coordenador do projeto (professor de Psicologia Social), uma pesquisadora em Educação (doutora em Filosofia da Educação), quatro alunos de Psicologia e um estagiário de Nutrição.

O trabalho foi estruturado metodologicamente de forma a construir espaços dialógicos de reflexão na escola, nos quais foram desenvolvidas as ações em EAN. Para auxiliá-las nesse processo, as chamadas intervenções grupais em Psicologia foram utilizadas de forma que as discussões coordenadas pela equipe, com o devido respaldo teórico, eram dinamizadas e colocavam os participantes para refletir sobre as demandas alimentares brasileiras.

Resultados e discussões

As oficinas tiveram a intenção de estabelecer uma EAN, por meio do debate, a fim de que informasse e conscientizasse os sujeitos a respeito dos elementos históricos, nutritivos, ideológicos, econômicos, políticos e ideológicos que poderiam estar por trás das práticas alimentares da cultura brasileira.

Práticas alimentares contemporâneas

Nessa oficina, as discussões se centraram na análise dos alimentos industrializados e em como eles fazem parte do cotidiano alimentar da população. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2014, o consumo de alimentos industrializados representou cerca de 85% do consumo brasileiro, contra apenas 15% dos produtos in natura. Poder-se-ia afirmar que a indústria alimentar tem um papel relevante sobre a prática alimentar atual do brasileiro.

O grupo estudou e debateu a composição de alguns alimentos industrializados (biscoitos, doces achocolatados, salgadinhos em pacote à base de milho e farinha de trigo e batatas fritas empacotadas), com enfoque na quantidade de açúcares, gorduras, sais e aditivos químicos desses alimentos. 

Esses debates reforçaram o diálogo em torno dos ingredientes que são mascarados em diversos alimentos industrializados. Sob nomes científicos, de difícil compreensão para a maioria da população, esses ingredientes escondem a quantidade de açucares que há nos alimentos industrializados. Sob o nome de maltodextrina, frutose, dextrose, xilose, néctar, maltose ou xarope de milho, tentam escondem sua real descrição: o açúcar glicose. A quantidade de sal também é mascarada a partir da nomenclatura cloreto de sódio e conservantes. As gorduras trans são mascaradas pelas nomenclaturas “gorduras vegetais hidrogenadas” e “gordura de palma”.

Para incrementar o debate, utilizaram-se recursos diversos e recortes de documentários que debatem tais questões, como Muito além do peso, Comida S.A., FedUp, SuperSize Me e outros. Esse tipo de ação é importante, pois há poucas campanhas educativas governamentais, principalmente após o golpe de 2016, informando corretamente os ingredientes que há nos alimentos ultraprocessados.

Outro debate proveniente desse tipo de atividade analisou se a composição dos sucos em embalagens de longa duração é saudável. Constatou-se que a maioria não apresenta nenhum ingrediente in natura, apesar da descrição em sua embalagem mascarar seus reais ingredientes, dando a impressão de que há um suco natural nesse produto. Os sucos utilizam nomenclaturas que têm representatividade social aceitável, como: contém néctar, frutose e x porcentagem de suco (geralmente suco de maçã), entre outras, dando a sensação de ser saudável.

Outro assunto abordado foi como o organismo reage diante do consumo excessivo de produtos ultraprocessados à base de açúcar. Os debates que se seguiram com essa atividade destacaram o descontrole que envolve o consumo excessivo de alguns ingredientes energéticos e como esses são ocultados e mascarados nos rótulos dos alimentos industrializados. Como dito anteriormente, a indústria alimentícia tem como estratégia dificultar a compreensão do consumidor a respeito dos verdadeiros ingredientes dos produtos, o que leva o sujeito a sentir-se um ignorante diante de tantos termos científicos, provindos da indústria alimentícia e química.

Aqui vale a pena lembrar, para reflexão, que vivemos em uma sociedade célere e tecnológica, na qual o tempo para se alimentar é o mínimo possível. Poucos têm disposição para ler e pesquisar o que está nos rótulos dos alimentos. Dentre os alimentos de um supermercado, 90% contêm algum aditivo químico e a maioria é feito à base de farináceos refinados, à base de soja, trigo e milho (Carreiro, 2007).

Cultura alimentar tradicional: o início da culinária brasileira

Desenvolveu-se um debate em relação a influência da culinária lusitana, indígena e africana em nossa cultura, com destaque para a doçaria brasileira. Os doces de frutas diversas, que durante muito tempo foram preparados de forma artesanal em tachos sobre o fogão à lenha para servir de sobremesa, hoje, são produzidos pela indústria alimentícia e consumidos a qualquer hora do dia. Aqui, ocorre o que Poulain (2013) chamou de dessocialização da comida na era contemporânea. A comida industrializada não tem alma, história, nem constrói identidades. Essa comida não vem com regras implícitas e nem com códigos sociais. O doce feito na cozinha artesanal tem todo um significado simbólico que representa um estilo de vida e a cultura aprendida de um povo.

Para resgatar esse aspecto histórico do doce, foi mostrado aos estudantes que a comida só era feita em ocasiões especiais, principalmente por causa do valor econômico do açúcar e pelo dispêndio destinado ao seu processamento. Há evidências de que, no século XV, já havia produção de açúcar e que se pagava imposto à alfândega de Portugal. Os doces, portanto, eram feitos só para as famílias mais abastadas (Freyre, 2004).

De modo geral, o doce no Brasil sempre teve papel social relevante. Além de ser um alimento socialmente altivo, em outros momentos foi essencial para prover de calorias às classes sociais mais baixas. A rapadura, por exemplo, foi um doce criado a partir da raspagem das camadas de açúcar que ficavam presas às paredes dos tachos, utilizados para a sua fabricação, aquecidos e colocados em formas semelhantes às de tijolos. Também uma solução prática de transporte de alimento em pequena quantidade para uso individual que resistia durante meses às mudanças atmosféricas. A rapadura é fonte de energia, carboidrato, minerais como ferro, cálcio, potássio, fósforo e magnésio e vitaminas do complexo B, como tiamina, riboflavina e niacina. Esse alimento, desde 1532, serviu como ração para os escravizados. A rapadura ainda hoje é consumida como alimento base em diversas regiões periféricas do país, onde a industrialização ainda não controlou totalmente as práticas alimentares, principalmente no Norte e Nordeste.

Foi interessante verificar que poucos estudantes conheciam o doce de rapadura, que de certa forma carrega junto a ele a história de uma parte da cultura brasileira.

Outro alimento que tem papel importante na culinária brasileira é a farinha de milho, mais especificamente o fubá. O fubá é uma palavra herdada do código africano para nomear a farinha de milho. No período da colonização, os portugueses foram os maiores responsáveis por uma intensa produção de farinha de milho. Essa farinha serviu para preparar a papa típica da alimentação dos escravizados. Os negros resistiam e criavam receitas a partir da insossa papa. Associavam a farinha de milho ao açúcar, a ovos e leite de coco que, em algumas datas específicas (comemorações dos brancos europeus), eram doadas a eles. Com esses ingredientes, faziam da dura e amarga papa diária uma comida saborosa e sedutora, que dava esperança de que em breve surgiriam dias mais doces. Tal bolo, ainda hoje, é servido à tarde, junto com café, no Brasil. Nesse exemplo simplório, resgata-se o passado do Brasil, trazendo movimento e questionamento para a engrenagem histórica do brasileiro (Cascudo, 1983; Freyre, 2004).

O básico ato de preparar um bolo, muito comum nas festas juninas, mostra como o povo brasileiro incorporou a farinha às suas receitas e a utilizou para evocar elementos subjetivos. Tais receitas fazem florescer e vivenciar memórias coletivas, uma rede de teias simbólicas com significados que reativam a cultura popular. “A memória é a imaginação do povo, mantida e comunicável pela tradição, movimentando as culturas convergidas para o uso, através do tempo. Essas culturas constituem quase a civilização nos grupos humanos” (Cascudo, 1983, p. 9).

O doce de canjica, também presente nas festas juninas, por exemplo, é outra comida construída pelos escravizados negros e foi o alimento mais comum nos quilombos e nas senzalas para depois ser difundido por todo o país e adquirir formatações diferentes em cada região, passando a ser considerado ingrediente típico para diversos pratos brasileiros. Assim como a mandioca, um alimento domesticado pelos indígenas que, espalhado pelo Brasil, serve como fonte de energia e ingrediente para os mais diversos pratos.                        

Em suma, as discussões surgidas nas oficinas caminharam no sentido de apontar a importância de não deixar os alimentos, a cultura, as receitas antigas e suas histórias de origem desaparecerem. São as receitas dos nossos antepassados que servem como resistência, na contramão da indústria alimentícia e criam identidades, dando sentido ao povo.

Diversidade alimentar brasileira

Os debates caminharam no sentido de mostrar que o Brasil possui rica diversidade cultural no campo das práticas alimentares; entretanto, ao ceder aos apelos da universalização do mundo globalizado, ficou à mercê do poderio econômico e de suas aglomerações empresariais e industriais; estas últimas ditam o ritmo de alimentação contemporânea.

Segundo Carreiro (2007), as células do organismo humano necessitam de no mínimo 44 tipos de diferentes nutrientes para sobreviver. Somente uma alimentação diversificada, tal como era feita antigamente no Brasil (quando se consumiam legumes, arroz, feijão, saladas, castanhas, cereais integrais, frutas, tubérculos, farinha de milho, araruta e carnes diversas), faria o organismo funcionar de forma adequada. Esse tipo de alimentação não tem espaço na sociedade contemporânea, em que os aglomerados industriais internacionais ditam e mudam os hábitos alimentares dos brasileiros, oferecendo à população brasileira alimentos à base de trigo, leite, milho, açúcar e soja.

Como já foi apontado, o consumo de alimentos industrializados representa cerca de 85% do consumo brasileiro, contra apenas 15% dos produtos in natura. Portanto, resgatar a cultura alimentar é combater o domínio da indústria sobre as práticas alimentares da população, fortalecendo a alimentação regional e agindo em prol da saúde.

Comida que sustenta tem história e sabor

Em uma das oficinas, os debates se aprofundaram na reafirmação das culinárias tradicionais provenientes dos encontros étnicos que ocorreram no Brasil e ajudaram a fundar a identidade brasileira. Dessa forma, a cultura alimentar, proveniente da utilização e da junção de diferentes alimentos vindos de três continentes, a mandioca ou farinha nativa (tubérculo), das carnes e derivados da Europa, vegetais e frutos africanos (coco, dendê, quiabo), foi retratada como uma construção social de resistência e de reafirmação de características culturais étnicas do povo brasileiro que se formou pela junção de três grandes etnias.

Por meio da história, por trás da escolha, o preparo dos alimentos e a qualidade nutricional deles foram temas discutidos com os alunos da escola. No caso da comida dos tropeiros, as receitas feitas a partir de alimentos secos (feijão, carne, farinha de mandioca, cheiro verde) proporcionaram longas viagens aos condutores de gado e estimularam a construção de vilas e o desenvolvimento do comércio brasileiro.

A junção entre as práticas alimentares lusitanas (a produção de charque) e a indígenas (produção de farinha de mandioca) são evidentes na cultura dos tropeiros.

A comida baiana retrata uma resistência do povo africano, que conseguiu difundir sua cultura com a reconstrução de suas práticas alimentares ao juntar alimentos que havia no Brasil com aqueles trazidos da Europa.

A culinária mineira conseguiu misturar os ingredientes regionais com aqueles que forram trazidos pelos povos africanos e lusitanos e criaram receitas que misturam culturas, como o frango com quiabo, a galinha ao molho pardo, o pão de queijo, o doce de leite e o arroz com taioba. Essas cozinhas, quando estudadas, potencializam a cultura brasileira e ampliam a possibilidade de ampliarmos as funções psicológicas superiores. 

A experiência compartilhada

Uma ideia surgida nas rodas de conversas merece ser tratada aqui. Foi da intenção de compartilhar a experiência que surgiram nas oficinas com a comunidade escolar. Os alunos participantes das rodas construíram um espaço de EAN dentro do pátio da escola cuja finalidade era oferecer à população da instituição a possibilidade de conhecer a cultura alimentar brasileira. Para isso os alunos fizeram a montagem de um estande temático no pátio da escola: cavalete de tela, mesa com condimentos tipicamente brasileiros e materiais ilustrativos que retratavam a cultura alimentar brasileira. Foram oferecidos, aos visitantes do espaço, materiais produzidos pelo grupo (fôlderes, cartazes, fotos e textos informativos a respeito da cultura alimentar brasileira).

Alguns beliscos da cultura alimentar brasileira produzidos na oficina de culinária (biscoitos de polvilho, pães de queijo e doces típicos caseiros da culinária nacional, como doce de batata, pé-de-moleque, paçoca, manjar e broa de milho), foram oferecidos à comunidade escolar e evocaram a cultura e a identidade alimentar brasileiras. A intenção foi atiçar a memória histórica da culinária brasileira e, ao mesmo tempo, mostrar que o Brasil tem uma rica história na produção de cultura e sabor.

Debates e práticas reflexivas: o preparo de comidas brasileiras típicas

A oficina de culinária pode ser considerada uma roda de conversas, pois dela suscitaram debates. Teve, ainda, a intenção de mostrar aos participantes que cozinhar é um ato que reafirma a cultura: é simples, prazeroso e representa a inteligência de um povo, além de ser um aprendizado que instiga a produção de funções cognitivas e psicológicas superiores. Em todas as atividades feitas na oficina de culinária, os participantes foram convidados a cozinhar conjuntamente com os membros da equipe do projeto. Apesar de a maioria não participar diretamente do preparo dos pratos, observaram atentamente todo o processo que envolve o preparo de uma comida.

Assim, utilizou-se a oficina de culinária no preparo de doces de frutas in natura (lavagem, cortes específicos, limpeza – retirada de cascas e sementes) para indicar que eles podem ser feitos em casa e, apesar de boa parte desses doces ter frutose e outros açúcares em sua composição, eles são muito menos prejudiciais do que os doces industrializados.

Cabe ressaltar que nunca houve, nas oficinas, tentativa de conduzir para uma alimentação disciplinar conservadora. Isso poderia naturalizar ou cristalizar a feitura da comida. Em uma perspectiva histórico-cultural, devemos ver o mundo em movimento, em um processo dialético. Sempre foi informado aos participantes que, mesmo os alimentos minimamente processados, como sucos naturais e os doces de compotas, perdem propriedades nutritivas e que podem ser muito calóricos. A vantagem, em relação ao preparo dessas comidas, é o fortalecimento da cultura alimentar com suas especificidades (comunhão na cozinha – o fazer junto, a valorização do saber familiar, a transformação em casa do alimento) e a utilização mínima de ingredientes artificiais e aditivos químicos durante a sua feitura. Pode-se afirmar que essa atividade desenvolveu nos grupos um saber culinário e, ao mesmo tempo, uma reflexão crítica que rompeu com a ideia de que, necessariamente, biscoitos e doces só são produzidos em fábricas.

Em outro debate, tomou-se o estudo a respeito das frutas, das verduras e dos legumes presentes na região. Receitas que tinham frutas como ingredientes também foram resgatadas. Assim, o bolo de banana, a torta de abacaxi e o manjar de coco foram exemplos de receitas preparadas durante a oficina. Com o diálogo, os estudantes aprenderam que a maior parte das frutas que se consomem atualmente tem limites quanto à variedade e provêm originalmente de outros países. Tal fenômeno ocorre, principalmente, pelo fortalecimento do agronegócio, a partir da década de 1990, e pela opção dos empresários agrícolas em cultivar frutas que ofereçam melhor custo-benefício e que podem ser exportadas. O Brasil, com essa postura, tornou-se um dos maiores exportadores de frutas do mundo. Vale a pena registrar que o mundo globalizado, com seus aglomerados industriais e empresariais, influi na produção de alimentos e, de certa forma, inibe a produção de alimentos que teriam um apelo apenas regional.

Conhecer novos sabores e texturas de novos alimentos possibilitou aos estudantes uma sensação prazerosa, instigando-os a buscar novas experimentações de alimentos.

Convém ressaltar que nessa oficina reforçamos com os estudantes a importância de um alimento tipicamente brasileiro, de importância cultural, que contribui como fonte calórica e nutritiva para que o povo brasileiro povoasse as mais longínquas regiões brasileiras. Trata-se da raiz de mandioca.  Uma planta originalmente brasileira, que possibilita a produção de diversos produtos (bolos, tapiocas, beijus, biscoitos, doces, bebidas, caldos, pães, farinhas). Infelizmente, a desinformação e a produção agrícola, pressionada pela universalização da alimentação à base de farináceos de trigo, soja e amido de milho, deixam a produção de mandioca para os pequenos agricultores e, a cada dia, a mesa do brasileiro perde um alimento nacional.

Recentemente, a polêmica em torno dos malefícios do glúten tem reabilitado a mandioca, pois é um alimento que não contém esse elemento e pode substituir de forma palatável os pães e doces feitos a partir de farinhas de trigo (Carreiro, 2007). Em suma, produzimos, junto aos alunos, várias comidas feitas com base na raiz da mandioca (carne com mandioca cozida, mandioca assada, bolinhos de mandioca) e de suas farinhas (farofa salgada, paçoca de carne e pão de polvilho com queijo).

Os alunos tiveram o prazer, a reflexão e a informação compartilhados a respeito da relevância que a mandioca tem para a cultura brasileira. Consumi-la, no lugar de outras fontes de carboidratos, mantém a história e cultura brasileira viva e atuante.

Considerações finais

No decorrer dos encontros semanais com os jovens, pode-se perceber que há um distanciamento destes em relação ao conhecimento da culinária típica brasileira. Nas discussões ocorridas durante as oficinas, chegou-se à conclusão de que tal distanciamento ocorre porque a indústria alimentícia, por meio da mídia, investe no marketing, na praticidade e no barateamento dos alimentos ultraprocessados, contribuindo para a alienação da população em relação à sua cultura alimentar. Devido ao contexto social, há a busca por alimentos de fácil consumo e com grande densidade calórica, sem compromisso com aspectos históricos e culturais, que se encaixam perfeitamente no estilo de vida apressada, em que o ato de cozinhar, o desenvolvimento da cultura e as elaborações históricas são vistas como perdas de tempo.

Os estudos de Polain (2013), Moss (2015) e Fischler (1998) mostram que a sociedade contemporânea dessocializou o alimento, tornando-o sem alma. Em contrapartida, criou elaborações químicas para a produção de alimentos extremamente palatáveis, com excesso de gorduras, sais e açúcares, prontos para serem consumidos, sem a necessidade de passar pelo processo de manipulação, cozimento e transformação na cozinha.

Verificar que os estudantes desconhecem a culinária brasileira é, de certo modo, reconhecer que empobrecemos em termos culturais e históricos; logo, em termos cognitivos. Montanari (2013) afirma que comida é cultura. A prática alimentar é um elemento histórico-cultural que ultrapassa o sentido de nutrir-se para sobreviver. Na prática alimentar, os aspectos culturais de determinada sociedade, comunidade e religião se encontram e se socializam no sujeito (Silva, 2016).

Em suma, as discussões surgidas nas oficinas caminharam no sentido de pensar sobre a importância dos alimentos nacionais, das receitas antigas e de suas histórias de origem a fim de não desaparecerem. Elas são a manutenção dos alimentos nacionais e das receitas dos nossos antepassados juntos à memória alimentar que serve de resistência à indústria alimentícia.

A presente proposta contribuiu para a efetivação de uma ação de Educação Alimentar e Nutricional que retomou e aprofundou elementos históricos, culturais e sociais que permeiam a nutrição e a alimentação do brasileiro. Os espaços reflexivos aguçaram nos alunos indagações e reformulações a respeito dos processos que os levavam a consumir sem crítica alimentos industrializados que, além de atentar contra a saúde, os afastaram da cultura alimentar de seu país. Além disso, o processo dialógico incentivou os sujeitos a apresentar suas elaborações a respeito da alimentação do dia a dia e a solicitar o posicionamento do outro frente a essa ação a fim de obter argumentos, sugestões e reflexões para ressignificar as práticas alimentares contemporâneas.

Foi possível mostrar aos alunos as possibilidades de reinventar outros sabores, pratos e ingredientes da culinária brasileira até então desconhecidos por muitos deles. Isso possibilitou o resgate da história da origem dos ingredientes e dos pratos típicos brasileiros, pois cada alimento traz, na sua história, suas lutas e tensões entre dominantes e dominados que perduraram séculos.

Por fim, afirmamos que a adoção de ações em políticas públicas alimentares gabaritadas pela educação nutricional, mesmo aquelas sucintas que agem junto a pequenos grupos, é medida de enfrentamento às determinações controladoras e operantes das grandes corporações alimentares. Percebe-se que um trabalho em EAN é factível de construir um terreno propício para que os sujeitos reivindiquem para si um projeto próprio, um projeto de alimentação mais saudável, além da possibilidade de rompimento com a padronização cultural controladora que assola os processos alimentares brasileiros na contemporaneidade.

Referências

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SILVA, A. C. B. da (org.). Culturas e práticas alimentares em questão: Psicologia e Educação. Marília: Poiesis, 2016.

Publicado em 27 de fevereiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

SILVA, Antonio Carlos Barbosa da; SILVA, Marina Coimbra Casadei Barbosa da. Debatendo a cultura alimentar na escola. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 6, 27 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/6/debatendo-a-cultura-alimentar-na-escola

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