Ensino de Ciências e sexualidade: razões para a exclusão de termos acerca da sexualidade na BNCC

Guilherme Dalla Mutta Resende

Graduado em Biologia, mestre em Ensino de Ciências e doutorando em Educação (UFU - Câmpus Santa Mônica)

Contexto do relato

A sexualidade pode ser compreendida como um processo de construção do sujeito com influências culturais e sociais. Inicialmente, esse processo acontece informalmente, sendo a família a principal referência, mas tanto a parte formal como a parte pedagógica são realizadas nas escolas (Furlanetto et al., 2018).

A Educação Sexual tem sido uma prática nas escolas desde os primórdios do século XX, haja visto o grande avanço das doenças sexualmente transmissíveis. Tratada de forma repressiva e meramente biológica, hoje vemos um avanço nas discussões acerca do tema. Nesse processo, o movimento feminista teve grande participação e a temática passou a ser tratada de forma social, aliada à saúde física e mental (Taquette, 2013).

Em 1996, aprovou-se a mais recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Na escola, a criança não desenvolve apenas as habilidades cognitivas, mas aprende valores e maneiras de comportamentos.

Segundo a Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996,

a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil, 1996, art. 2º).

Depois, surgiram os PCN, considerados um marco nos estudos de gênero e sexualidade. Os parâmetros trazem os chamados temas transversais, cujo princípio de trabalho são os eixos: ética, saúde, pluralidade cultural, trabalho e consumo, orientação sexual e meio ambiente.

Busca-se considerar a sexualidade como algo inerente à vida e à saúde, que se expressa no ser humano, do nascimento até a morte. Relaciona-se com o direito ao prazer e ao exercício da sexualidade com responsabilidade. Engloba as relações de gênero, o respeito a si mesmo e ao outro e à diversidade de crenças, valores e expressões culturais existentes numa sociedade democrática e pluralista. Inclui a importância da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis/Aids e da gravidez indesejada na adolescência, entre outras questões polêmicas. Pretende contribuir para a superação de tabus e preconceitos ainda arraigados no contexto sociocultural brasileiro (Brasil, 1998, p. 287).

Com isso, a partir da década de 90, começam a surgir atividades práticas, deixando um pouco de lado o método mais tradicional. A nova abordagem passou a ser utilizada de forma mais corriqueira nos projetos curriculares de todas as disciplinas, incluindo as  Ciências, dando ênfase na vivência do método científico e proporcionando aos alunos, por meio de investigações, a criação de hipóteses e a chegada de conclusões (Desidério, 2020).

Assim, a escola é um lugar onde também se aprende a respeitar os outros, a diminuir as desigualdades, a quebrar o patriarcado e a vivenciar a não violência. A escola acaba também se tornando um ambiente onde se aprende que homens e mulheres têm suas diferenças, incluindo no quesito sexo e isso não quer dizer que existam comportamentos definidores da masculinidade e da feminilidade fora dos padrões culturais de cada época e lugar (Silva, 2020).

Nesse contexto se dá o debate acerca do gênero e da orientação sexual. Grupos defendem a ideia de que tais assuntos devem ser afastados do currículo escolar, com a prerrogativa da imposição de gênero. Disputas e resistências são obtidas por parte de diferentes partidos da sociedade. Isso se traduz totalmente contrário à real intenção de orientar os alunos, sob a prerrogativa de diminuir as desigualdades e os altos índices de violência, especificamente contra a mulher – além dos abusos e da exploração sexual de crianças e adolescentes (Silva, 2020).

O presente texto busca averiguar os motivos pelos quais as discussões acerca da sexualidade foram suprimidas da versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), bem como os motivos dos termos gênero e orientação sexual terem sido excluídos da Base.

Detalhamento das atividades

O presente estudo é uma revisão sistemática da literatura, cuja finalidade é apresentar os conceitos e as justificativas acerca do tema abordado, utilizando-se de fontes de pesquisa primária, como artigos, dissertações e outros documentos. Para obter os resultados e as respostas acerca da problematização apresentada neste trabalho, será feita uma análise documental, intermediada por documentos do Ministério da Educação (MEC): os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Para tanto, a revisão norteou-se pela busca de respostas para as seguintes questões: “Qual a importância do ensino de sexualidade no Ensino Básico?”, “Qual é a necessidade de temas como orientação sexual e gênero estarem presentes em políticas educacionais?”, “Por que um assunto importante, que já fazia parte dos PCN, foi excluído da versão final da BNCC?”.

O levantamento dos dados se deu durante o mês de novembro de 2021 para a realização de um seminário apresentado na disciplina de Ensino de Biologia e Sexualidade do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). As bases de dados pesquisadas foram: Google Acadêmico, SciELO e o site do Ministério da Educação. Foram utilizados descritores como “ensino e sexualidade”, “sexualidade e BNCC”, “exclusão da temática sexualidade”, “gênero” e “orientação sexual”. Assim, os resultados da pesquisa serão qualitativos, utilizando a análise desses conceitos, suas ideias e documentos.

Análise e discussão do relato

Currículo, do latim curriculus, nada mais é do que o trajeto para se chegar a algum lugar. Contudo, pensando no âmbito escolar, chegar à formação do sujeito. Pelo currículo define-se o que o estudante deve aprender e qual será o seu papel na sociedade (Carvalho, 2020).

O Art. 26 da Lei nº 9.394/96 (LDBEN) estabelece que

os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos (Brasil, 1996).

Desde 1997, os PCN regem as políticas públicas curriculares nas escolas, com a função de orientar investimentos e socializar discussões, configurando-se como uma proposta flexível, como um modelo heterogêneo à competência de estados e municípios.

Em contrapartida, em 16 de setembro de 2015, surgiu a primeira versão da BNCC. Esse documento é rascunhado, contendo “apenas” 302 páginas e formatado com ideias para orientar o currículo escolar nacional. Essa primeira versão foi discutida em audiências públicas e em comitês de educação para ser analisada e redirecionada a ajustes. Assim, surgiu a segunda versão. Datada de 3 de maio de 2016, ela continha 652 páginas bem elaboradas. Essa versão também passou por debates, sendo realizados seminários em cada um dos estados brasileiros.

Após avaliações, com aplicações de questionários sobre sua estrutura, escrita e contextualização, surgiu a terceira versão, composta por um documento de 600 páginas, já com melhores atribuições de conteúdos e habilidades distribuídas de formas distintas para cada idade.

Como diz Desidério (2020), “o retrocesso referente às temáticas da sexualidade são evidentes em todas as versões propostas, seja para o Ensino de Ciências e/ou quaisquer áreas do conhecimento”. Isso refere-se à abordagem dos temas contemporâneos, o que na primeira e na segunda versão ainda eram chamados de temas integradores.

Assim, em abril de 2017, é entregue a terceira e aparentemente última versão do documento. Versão essa que, entre erros e acertos, traz evidenciada a temática da sexualidade. No entanto, tão logo foi apresentada à bancada religiosa do Congresso Nacional, sofreu a retirada de termos e questões voltadas a gênero e orientação sexual para a homologação de 20 de dezembro de 2017, fato que causou estranhamento e contradição, nas palavras do então Ministro da Educação, Mendonça Filho:

expressa o compromisso do Estado brasileiro com a promoção de uma educação integral voltada ao acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno de todos os estudantes, com respeito às diferenças e enfrentamento à discriminação e ao preconceito. Assim, para cada uma das redes de ensino e das instituições escolares, este será um documento valioso tanto para adequar ou construir seus currículos como para reafirmar o compromisso de todos com a redução das desigualdades educacionais no Brasil e a promoção da equidade e da qualidade das aprendizagens dos estudantes brasileiros (Brasil, 2018, p. 5).

A retirada da temática sexualidade e a exclusão de termos como gênero e orientação sexual, não vão de forma alguma, ao encontro das palavras de Mendonça Filho. O enfrentamento à discriminação e ao preconceito, feito na fala do ministro, não corrobora o suprimento de tais temáticas, ao ponto de cultivar o respeito e as diversidades, pois, não sendo questões tratadas, poderão causar agravamento nas gerações futuras.

Quadro 1: Exclusão das temáticas gênero e orientação sexual nas três versões da BNCC

Parte do documento onde os temas aparecem

Ciências da Natureza

1ª versão

(CNBI3MOA010) Analisar as implicações culturais e sociais da teoria darwinista nos contextos das explicações para as diferenças de gênero, comportamento sexual e nos debates sobre distinção de grupos humanos, com base no conceito de raça, e o perigo que podem representar para processos de segregação, discriminação e privação de benefícios a grupos humanos (Brasil, 2015, p. 202).

2ª versão

(EM35CN03) Analisar as implicações culturais e sociais da teoria darwinista nos contextos das explicações para as diferenças de gênero, comportamento sexual e nos debates sobre distinção de grupos humanos com base no conceito de raça, e o perigo que podem representar para processos de segregação, discriminação e privação de benefícios a grupos humanos (Brasil, 2016, p. 625).

3ª versão

(EF09CI10) Comparar as ideias evolucionistas de Lamarck e Darwin apresentadas em textos científicos e históricos, identificando semelhanças e diferenças entre essas ideias e sua importância para explicar a diversidade biológica (Brasil, 2018, p. 351).

O não uso dessas informações e o suprimento de tais temáticas poderão causar agravamento nas relações humanas das gerações futuras. A não discussão pode agravar o problema, tanto no aspecto educacional quanto no aspecto social ou individual. Trata-se de temas que não devem ser discutidos apenas no âmbito familiar (Silva, 2020).

Considerações finais

Como visto e discutido, o ensino da sexualidade e a discussão de termos como gênero e orientação sexual foram suprimidos da última versão da BNCC.

Sob a prerrogativa de não gerar discussões acirradas ou atritos políticos, desde a sua construção, a BNCC teve uma terceira versão aprovada, por pressões de bases conservadoras sem as temáticas de gênero e orientação sexual serem abordadas de forma usual e explícita no documento.

Com isso, minimizando qualquer tipo de atrito, a base conservadora mascarou o tratamento da temática, excluindo de forma integral os termos. Entendemos que esse foi um grande erro, pois são temas de extrema importância, já que permitem compreender o corpo humano em um âmbito mais profundo e não apenas em termos reprodutivos ou de cuidados acerca das IST, a fim de ajudar a sociedade a conviver melhor com as diferenças.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base. Brasília: MEC, 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Terceira versão revista. Brasília: MEC, 2017.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Segunda versão revista. Brasília: MEC, 2016.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Apresentação. Brasília: MEC, 2015.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998.

BRASIL. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Senado Federal, 1996.

CARVALHO, M. T. A Base Nacional Comum Curricular e a sexualidade: crítica e resistência. Pesquisar, Florianópolis, v. 7, n° 13, Ed. Especial: SELIGeo, p. 89-100, jun. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/pesquisar/article/download/74858/43659/263910. Acesso em: 14 nov. 2021.

DESIDÉRIO, R. A exclusão da temática sexualidade nos anos iniciais do Ensino Fundamental na BNCC e seus reflexos para o ensino de ciências. Horizontes – Revista de Educação, Dourados, v. 8, n° 15, p. 98-112, jan./jun. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/342861862_A_exclusao_da_tematica_sexualidade_nos_anos_iniciais_do_ensino_fundamental_na_BNCC_e_seus_reflexos_para_o_ensino_de_ci encias/link/5f092de945851550509c6da5/download. Acesso em: 14 nov. 2021.

FURLANETTO, M. F.; LAUERMANN, F.; COSTA, C. B. D.; MARIN, A. M. Educação Sexual em escolas brasileiras: revisão sistemática da literatura. Cadernos de Pesquisa, São Leopoldo, v. 48, n° 168, p. 550-571, abr./jun. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/FnJLpCKWxMc4CMr8mHyShLs/abstract/?lang=pt. Acesso em: 14 nov. 2021.

SILVA, D. M. Gênero e orientação sexual na Base Nacional Comum Curricular. Anais da Educon, São Cristovão, v. 14, n° 5, p. 1-17, set. 2020. Disponível em: https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/13781/4/3. Acesso em: 10 nov. 2021.

TAQUETTE, S. R. Direitos sexuais e reprodutivos na adolescência. Adolescência e Saúde, Rio de Janeiro, v. 10, n° 1, p. 72-77, 2013. Disponível em: https://cdn.publisher.gn1.link/adolescenciaesaude.com/pdf/v10s1a09.pdf. Acesso em: 3 dez. 2021.

Publicado em 27 de fevereiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

RESENDE, Guilherme Dalla Mutta. Ensino de Ciências e sexualidade: razões para a exclusão de termos acerca da sexualidade na BNCC. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 6, 27 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/6/ensino-de-ciencias-e-sexualidade-razoes-para-a-exclusao-de-termos-acerca-da-sexualidade-na-bncc

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