Etnobotânica: resgatando memórias e fortalecendo a identidade da juventude rural por meio do uso de plantas medicinais e religiosas

Keiliane Almeida de Oliveira

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Territorial

José Hermógenes Moura da Costa

Antropólogo, licenciado e mestre em Ciências Sociais (UFBA), doutor em Sociologia (UFPE), professor Adjunto IV da Univasf

Lúcia Marisy Souza Ribeiro de Oliveira

Doutora em Desenvolvimento Socioambiental (UFPA), professora titular da Univasf

Jackson Rubem Rosendo Silva

Graduado em Agronomia (UEBA), mestre em Ciência Animal (Univasf), doutor em Educação em Ciências - Química da Vida e Saúde (UFSM/FURG/UFRGS), professor assistente na Univasf

Nesta pesquisa pretende-se discutir as práticas etnobotânicas e sua religiosidade nas comunidades rurais. A temática do “resgate das memórias etnobotânicas e seu uso religioso: fortalecendo a identidade da juventude rural” está inserida numa discussão que abrange modos de vida e práticas de um viver rural em meio à religiosidade, numa diversidade própria. Levando em conta o fato do homem ser o único animal a possuir capacidade de transformar suas relações com o meio ambiente, entendemos que ele não perdeu sua estreita relação com os vegetais, observando os fenômenos da natureza e utilizando-os para o seu próprio interesse.

O uso dos recursos naturais é uma prática milenar. Nessa prática, o protagonista é o homem. A prática ultrapassa todos os obstáculos do processo evolutivo e chega até os dias atuais, sendo aplicada a toda população mundial. A utilização de plantas medicinais por populações rurais é orientada por uma série de conhecimentos acumulados numa relação direta dos seus membros com o meio ambiente para a difusão de informações, tendo como influência o uso tradicional desses elementos, transmitido oralmente entre diferentes gerações. A transmissão desse conhecimento, bem como de pesquisas acerca dos usos terapêuticos de vegetais, vem como reforço contra a ameaça de extinção de inúmeras espécies ainda desconhecidas da Ciência. Isso ocorre independentemente de o conhecimento popular estar ou não estar baseado em dados empíricos que se contrapõem ao conhecimento científico, fundamentado em teorias, com métodos em acordo com a classe científica (Amorozo, 2002).

Nesse contexto, esta pesquisa resgata as memórias da abordagem etnobotânica acerca do uso de plantas medicinais e de seu uso religioso, a fim de compreender como essas práticas contribuem na construção da identidade da juventude rural. A temática está inserida numa discussão que abrange modos de vida e religiosidades, numa diversidade própria. A pesquisa foi realizada para conhecer e se apropriar da diversidade local acerca da Etnobotânica das plantas medicinais, de seus princípios ativos e de sua representatividade religiosa por meio do contato com pessoas mais velhas da comunidade. A relevância sociocultural deste estudo destaca-se por estabelecer um elo entre o conhecimento popular e o científico, possibilitando uma maior aproximação das pessoas da comunidade com o contexto sociocultural das pessoas cuidadas com as plantas medicinais.

Comunidade rural, seus saberes e plantas medicinais

As comunidades rurais são entidades sociais e geográficas complexas que desempenham um papel crucial na estrutura socioeconômica de diversas regiões ao redor do mundo. Uma comunidade rural não é apenas um conjunto de habitantes que compartilham um espaço geográfico, mas um entrelaçamento de relações sociais, culturais e econômicas profundamente enraizado em seu ambiente. Diversos estudiosos contribuíram para a compreensão desse fenômeno, fornecendo perspectivas multifacetadas sobre o que realmente constitui uma comunidade rural.

A Etnobotânica busca entender a relação entre as comunidades humanas e as plantas, incorporando saberes populares e religiosos relacionados aos medicinais, à Etnobotânica, explorando as relações entre as comunidades rurais e as plantas e desvendando um universo de saberes populares e religiosos. Esses conhecimentos, transmitidos de geração em geração, desempenham um papel vital nas comunidades rurais, moldando suas práticas cotidianas. A preservação desses saberes e o resgate das memórias das pessoas mais velhas são elementos cruciais nessa construção da identidade da juventude rural.

A medicina tradicional em comunidades rurais muitas vezes se baseia em saberes populares e religiosos. O resgate das memórias de pessoas mais velhas é fundamental para a construção da identidade da juventude rural, pois a memória é um fenômeno social, moldando a identidade coletiva das comunidades (Halbwachs, 1990).

O uso da oralidade como processo de transmissão de saberes, associado às práticas sociais, aos banhos de folhas, às rezas, dentre outros, sofre com tentativas de ocultação devido ao que Santos (2005) denomina de produção do “epistemicídio”, entendido como o extermínio das identidades. O epistemicídio nega os conhecimentos produzidos fora da academia. Essa tentativa de tornar invisível toda a contribuição promovida por comunidades rurais constitui um “desperdício da experiência social” (Santos, 2005, p. 37).

Assim, não há como negar que uma prática gera outra e que os conhecimentos acumulados por comunidades rurais servem como mecanismos para a apropriação e a ressignificação da sua cultura como fonte de poder para as gerações futuras. Para Santos (2005), não há epistemologias neutras. Toda e qualquer reflexão epistemológica deve acontecer não nos conhecimentos abstratos, mas nas práticas de conhecimento, assim como seus impactos devem se dar noutras práticas sociais. Portanto, as práticas de comunidades rurais que se constituem na oralidade são formas de transmissão de conhecimentos como também formas de construir e gerar novas epistemologias sociais, a partir das trocas entre os pares.

A busca desses saberes nas comunidades rurais de Filadélfia/BA é de grande importância, pois os saberes acerca das plantas medicinais são fundamentais ao fortalecimento da identidade da juventude rural.

Metodologia

          A presente pesquisa foi realizada nas comunidades rurais de Filadélfia/BA em agosto de 2022. O trabalho foi realizado em três fases, qualitativamente distintas. Essa é uma pesquisa descritiva e qualiquantitativa, na qual utilizamos: o levantamento bibliográfico e documental, que disponibilizou conhecimentos e dados da temática abordada; o trabalho diretamente com a comunidade, quando utilizamos questionários semiestruturados para obtenção das informações a respeito das plantas medicinais utilizadas pelos moradores e a análise das entrevistas para a construção de uma pequena cartilha das informações coletadas.

Resultados e discussão

Foram entrevistados 30 moradores. Dentre esses, 75% fazem uso das plantas medicinais e conhecem algum tipo de chá (curandeiros). No registro etnobotânico foram catalogadas 23 espécies. Dentre as plantas pesquisadas e catalogadas estão: o boldo, a babosa, a erva-cidreira e outras. As plantas são cultivadas ou nascem espontaneamente em diversos ambientes, porém se sobressai o hábitat. A folha é a parte da planta mais utilizada na medicina caseira local, mas há o uso de outras partes, como: ramos, planta inteira, caule, flor, fruto, raiz, casca, látex e suco. O acentuado uso das folhas apresenta um caráter de conservação dos recursos vegetais, pois não impede o desenvolvimento e a reprodução das plantas, quando a retirada não é excessiva (Pilla; Amorozo; Furlan, 2006).

Notou-se que o aprendizado foi transmitido oralmente de pessoa a pessoa, indo ao encontro dos estudos que mencionam as primeiras manifestações desse conhecimento sendo iniciadas ainda na infância e passando de geração a geração. Essa informação reforça o modo de transmissão do conhecimento das plantas medicinais, sustentado na relação de afeto entre a mulher-mãe e seus filhos, na tentativa de passar o seu saber às próximas gerações. Quase a totalidade dos entrevistados mencionou ter aprendido a usar plantas medicinais com as mulheres. Oito deles citaram a figura da mãe, da avó e da irmã mais velha como as principais transmissoras desse conhecimento.

A transmissão intergeracional desses conhecimentos contribui para a educação da juventude rural. Toledo e Barrera-Bassols (2008) salientam que essa troca de saberes não apenas preserva tradições como também promove práticas agrícolas sustentáveis, integrando aspectos socioeconômicos e ambientais.

O modo de preparo mais citado foi em forma de chá, por decocção ou infusão. No entanto, outras formas de utilização foram citadas: a maceração, a garrafada, o banho, in natura, a massagem, o xarope e os lambedores. As indicações terapêuticas mais citadas foram as referentes a problemas do sistema respiratório, às dores, aos estômago, à insônia e à cicatrização. As principais plantas evidenciadas na pesquisa foram catalogadas, conforme a pesquisa de sua utilização, assim como seus princípios ativos.

Notou-se que a dimensão religiosa se entrelaça harmoniosamente com a medicina tradicional em muitas comunidades rurais. Autores como Pieroni e Vandebroek (2007) destacam que rituais e práticas espirituais conferem significado às plantas medicinais, promovendo uma abordagem holística à cura que transcende o físico. Durante as entrevistas e as observações de campo constatamos que tanto o gosto, quanto a vontade de cultivar ervas na própria residência são sentimentos comuns entre todos os participantes da pesquisa.

Observaram-se, também, outros locais de plantio, como o realizado em floreiras e vasos plásticos, sempre localizados ao redor das casas ou até dentro dos domicílios. Esse plantio é comum nas residências dos entrevistados que não possuem horta. Evidencia-se que a Etnobotânica destaca o papel crucial das comunidades rurais na preservação da biodiversidade. Davis (2005) argumenta que o conhecimento tradicional das plantas medicinais incentiva práticas de conservação, já que a manutenção dessas espécies é essencial para a continuidade das práticas medicinais e, consequentemente, da cultura local.

 Notou-se a necessidade de aproximação entre o saber da família - o saber popular - e o saber científico, valorizando as experiências/vivências prévias da comunidade, intimamente imbricadas ao seu contexto cultural. Evidencia-se, com isso, a necessidade de compartilhamento de saberes e prática do cuidar.

Diante disso, este estudo enfatiza a importância da aliança dos saberes populares e acadêmicos (Iserhard et al., 2009). A diversidade cultural está intrinsecamente ligada à Etnobotânica. Maffi (2005) ressalta que a preservação desses saberes contribui para a promoção da diversidade cultural, evidenciando a riqueza dos conhecimentos locais que moldam a identidade da juventude rural.

O resgate dos saberes populares e religiosos desempenha um papel significativo na resiliência cultural das comunidades rurais. Halbwachs (1990) sugere que a memória coletiva, expressa por meio desses conhecimentos, é crucial na construção e na preservação da identidade, tornando-se um fator de resistência às mudanças externas.

Considerações finais

Durante o período de pesquisa, observou-se que a comunidade guarda e sabe a função das plantas medicinais. Isso possibilitou um maior conhecimento acerca da origem dos saberes e das práticas dessas memórias etnobotânicas por moradores das comunidades rurais de Filadélfia/BA. Pode-se constatar que o uso de plantas medicinais originárias do contexto familiar e seu poder curativo, assumem grande valor na vida dos entrevistados, sendo um conhecimento transmitido de geração a geração.

A juventude rural corresponde a uma parcela significativa da população brasileira, enfrentando desafios diversos, como a falta de acesso à educação, à saúde, às oportunidades de trabalho e emprego. Decorrente desse desafios enfrentados por aqueles que permanecem no campo, a crescente migração de jovens das áreas rurais para as grandes cidades pode gerar a perda da identidade da juventude rural. O resgate das memórias etnobotânicas acerca do uso de plantas medicinais e de seus usos religiosos é fundamental para fortalecer essa identidade. A prática promove a preservação da cultura local, a conexão com a natureza, a identificação pessoal e a participação ativa na comunidade.

Em conclusão, a Etnobotânica, aliada aos saberes populares e religiosos, desempenha papel central na construção da identidade da juventude rural. A preservação desses conhecimentos resgata as memórias das pessoas mais velhas, mantendo-as vivas na tradição cultural, contribuindo para o desenvolvimento sustentável, para a conservação ambiental e para a resiliência das comunidades. O entendimento desses aspectos é essencial para promover uma abordagem holística na construção da identidade da juventude rural.

Referências

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BARROS, A. A. M. O estudo de plantas medicinais como recurso didático no ensino de Ciências. In: I ENCONTRO REGIONAL DE ENSINO DE BIOLOGIA (Novo milênio, novas práticas educacionais?). Anais... Niterói: UFF/SBEnBIO, 2001.

FABIANI, Jean-Noël. A fabulosa história do hospital: da Idade Média aos dias de hoje. Porto Alegre: L&PM, 2020.

ISERHARD, Ana Rosa Müller et al. Práticas culturais de cuidados de mulheres mães de recém-nascidos de risco do sul do Brasil. Escola Anna Nery, v. 13, p. 116-122, 2009.

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PIERONI, Andrea; VANDEBROEK, Ina. Culturas e plantas viajantes: a Etnobiologia e a etnofarmácia das migrações humanas. Berghahn, 2007.

PILLA, M. A. C.; AMOROZO, M. C. M.; FURLAN, A. Obtenção e uso das plantas medicinais no distrito de Martim Francisco, Município de Mogi-Mirim/SP, Brasil. Acta Botanica Brasilica, 2006.

PINTO, E. P. P.; AMOROZO, M. C. M.; FURLAN, A. Conhecimento popular sobre plantas medicinais em comunidades rurais de Mata Atlântica. Itacaré/BA/Brasil. Acta Botânica Brasilica, 2006.

PORTO GONÇALVES, C. W. Apresentação. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Buenos Aires: Clacso, 2005. (Colección Sur Sur).

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Publicado em 09 de abril de 2025

Como citar este artigo (ABNT)

OLIVEIRA, Keiliane Almeida de; COSTA, José Hermógenes Moura da; OLIVEIRA, Lúcia Marisy Souza Ribeiro de; SILVA, Jackson Rubem Rosendo. Etnobotânica: resgatando memórias e fortalecendo a identidade da juventude rural por meio do uso de plantas medicinais e religiosas. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 13, 9 de abril de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/13/etnobotanica-resgatando-memorias-e-fortalecendo-a-identidade-da-juventude-rural-por-meio-do-uso-de-plantas-medicinais-e-religiosas

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