Vulnerabilidade social e os efeitos da desigualdade: relato e análise dos dados obtidos pela oficina Habilidades Sociais e o Cuidado de Si

Lohayne Braga Moreira

Mestre e licenciada em Ciências Biológicas (UNIRIO), bacharelanda em Biomedicina, especialista em Análises Clínicas, Ciências da Natureza e em Educação Especial e Inclusiva

O Projeto Interinstitucional Multi-foco foi gerado em consonância com o Plano Estratégico Institucional (2020-2023) do Ministério da Educação (MEC), visando à inclusão e à elevação da competitividade do setor produtivo brasileiro. Fruto de uma parceria entre a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) junto à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROExC) e a organização da sociedade civil (OSC), Contato, o projeto ocorre no Estado do Rio de Janeiro em 62 polos. O Multi-foco oferece qualificação e produtividade aos trabalhadores, a fim de aumentar os rendimentos dos trabalhadores no mercado de trabalho. Além disso, a implementação do projeto promove a criação de um banco de dados para avaliação do seu impacto, reforçando a atuação da Unirio como órgão fomentador de políticas públicas para o MEC, voltadas à capacitação em serviço, e integrando a sociedade civil e os serviços do poder público com conhecimentos técnicos e com a capacidade de inovação. Trata-se, portanto, de um instrumento propagador das prioridades do governo federal por intermédio do MEC.

Nos polos, o projeto ocorre por meio de ações de qualificação social e profissional (QSP), promovendo aos beneficiários a colocação ou a recolocação no mercado de trabalho com o conhecimento para iniciarem ações de empreendedorismo e geração de renda em consonância com a realidade local, por meio da oferta de cursos livres, com carga horária de até 100 horas, e programas que fomentam o desenvolvimento de competências relacionadas ao aprimoramento pessoal, cultural, social, teórico e prático para o desenvolvimento de técnicas de trabalho compatíveis com as ações empreendedoras. Assim, os contemplados podem desenvolver competências instrumentais requeridas para o exercício profissional, suprir carências advindas da Educação Básica e estimular o hábito da leitura entre os educandos, devido a presença de minibibliotecas em cada núcleo.

Dentre as atividades promovidas pela UNIRIO, no Projeto Multi-foco, em agosto de 2022, aconteceu uma oficina presencial que abarcava um curso de habilidades sociais e o cuidado de si. A oficina foi construída por duas professoras coordenadoras que uniram seus projetos acerca da resiliência e do cuidado de si, com o auxílio de quatro bolsistas de graduação e uma bolsista da pós-graduação matriculados em cursos membros da Unirio, selecionados para participar do Projeto Multi-foco.

Os participantes da oficina residiam majoritariamente em Magé e Duque de Caxias, pois havia a identificação de territórios na análise. A oficina promoveu aprofundamento teórico e prático de autoconhecimento, pelas competências interpessoais para a vida e para o trabalho. Os conteúdos teóricos foram abarcados em duas palestras, com exemplos de situações comuns do cotidiano que dividiram o conteúdo em dois módulos (I e II). No módulo I, na parte da manhã, foram descritas e aprofundadas as habilidades sociais pertinentes, iniciando com o aprofundamento teórico da potência da flexibilidade, da inteligência emocional, dos benefícios de “ter a mente aberta”, de se comunicar de forma não violenta, de aprender a administrar os conflitos e de usar da resiliência para progredir e alcançar objetivos pessoais e profissionais.

Após a atividade do módulo I, os participantes e a equipe almoçaram e posteriormente participaram do momento integrador: a conexão com a natureza na Praia Vermelha. Essa etapa se mostrou importante, visto que os alunos do projeto relataram não frequentar a Zona Sul da cidade, pontuando que seria interessante conhecer os aspectos histórico-arquitetônicos do bairro da Urca, na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo. Portanto, nessa etapa, coube aos bolsistas levarem os alunos até a praia, conforme os objetivos do projeto.

Após o momento integrador, conduzimos os alunos de volta à UNIRIO e iniciou-se o módulo II do curso acerca do cuidado de si para com a vida e o trabalho. A resiliência foi apresentada como uma ferramenta para o desenvolvimento do próprio projeto de vida, visando o empoderamento pessoal e abarcando o autocontrole das emoções, assim como a análise do ambiente/contexto, a autoconfiança, as estratégias para conquistar e manter pessoas, o otimismo, a empatia, a importância da leitura corporal e de pensar e repensar o sentido existencial individual. Encerrando o segundo módulo, foi apresentada a temática do cuidado de si e a sua associação com as habilidades sociais e a resiliência na promoção do autoconhecimento e do sucesso.

No decorrer da oficina, utilizamos como instrumento um formulário para coleta de dados sociodemográficos, objetivando identificarmos nosso público-alvo e a implementação de outro formulário para mensurar a escala de resiliência dos participantes após abordar a temática. O formulário foi construído embasado na adaptação da Escala de Resiliência de Connor-Davidson (CD-RISC-10) para brasileiros (Lopes et al., 2011). As coletas, tanto do perfil dos participantes como do grau de resiliência deles, originaram parte do banco de dados estipulado como um dos objetivos do projeto. A análise dos dados sociodemográficos foi realizada em três eixos de vulnerabilidades: 1. Mulheres em relação ao mercado de trabalho e busca por capacitação, 2. Maternagem, desemprego e formação acadêmica e 3. Questões históricas da autodeclaração de raças no Brasil.

Desenvolvimento

Eixo 1: Mulheres, trabalho e a busca por capacitação

Historicamente, a inserção da mulher no mercado de trabalho decorreu da necessidade de aumento de ganho financeiro para sua família (Baylão; Schettino, 2014). De acordo com as transformações e as mudanças de contexto histórico, as mulheres passaram de seres não inseridos no mercado de trabalho destinados ao papel de mãe e dona de casa, ao papel de profissionais que desejam conquistar a sua independência financeira paulatinamente (Lima, 2022). Entretanto, algumas marcas estruturais colocam às mulheres em situação de vulnerabilidade no mercado de trabalho, como o assédio sexual no trajeto e no ambiente profissional, a tripla jornada de trabalho, a desigualdade de cargos, salários e o tratamento no âmbito trabalhista (Lima, 2022).

A pandemia da covid-19 acentuou ainda mais essa vulnerabilidade, pois, com o aumento do desemprego e, por conseguinte, a crise econômica e social, às mulheres foram atribuídas mais horas na jornada de trabalho doméstico, perdendo o espaço conquistado no mercado de trabalho (Lima, 2022). Foi documentado que principalmente as mulheres pretas e pardas, se dedicam aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos em quase o dobro de tempo do que os homens, 21,4 horas contra 11 horas (IBGE, 2021). Dos 129 participantes da oficina, 124 eram mulheres (96,1%) e cinco homens (3,9%). Nesse sentido, 96,1% dos inscritos nos cursos atrelados aos cuidados, como o cuidador de idosos, “designer” de sobrancelhas, manicure/pedicure, maquiadora, eram mulheres. Vale ressaltar que cinco participantes identificaram o cargo atual como doméstica ou dona de casa.

Outro fator que facilitou a inserção das mulheres no mercado de trabalho foi o acesso aos métodos contraceptivos. As mulheres, além de mães e donas de casa, se tornaram proletárias (Baylão; Schettino, 2014), aumentando a jornada de trabalho feminina que começou a se desdobrar em cuidar dos filhos, do trabalho e, muitas vezes, de parentes idosos (Baylão; Schettino, 2014). Nesse caso, na oficina, identificamos que 52,7% dos participantes têm filhos. Dentre esses, 52,3% vivem com uma criança e 27,6% vivem com duas crianças. A maioria não convive com idosos (82%), enquanto 36,8% moram com dois idosos e 31,6% vivem com um idoso, reforçando a divisão sexual de trabalho apropriada pelo capital que evidencia a manutenção dessa discriminação estrutural em atividades mais vulneráveis, com menores salários e maiores chances de desemprego (Baylão; Schettino, 2014) ou de trabalho informal.

Outro fator importante identificado na oficina é que 50,4% dos cursistas afirmam que buscam adquirir conhecimentos para empreender, refletindo a falta de perspectiva na inserção no mercado e a busca por autonomia no exercício da profissão. Vale ressaltar que esse dado mostra que o Brasil é o sétimo país com o maior número de mulheres empreendedoras que totalizam mais de 24 milhões de brasileiras, gerando empregos (Sebrae, 2019). Além disso, as brasileiras empreendedoras estudam cerca de 16% a mais do que os homens, investindo 9,9 anos de suas vidas voltados à capacitação (Sebrae, 2019). Infelizmente, o rendimento médio mensal das empresárias é 22% menor do que o dos empresários (Sebrae, 2019). Em contrapartida, para além do empreendedorismo, 33,3% dos participantes argumentaram querer conquistar a primeira oportunidade no mercado de trabalho formal e 13,2% alcançar a recolocação no mercado de trabalho. Na participação da oficina, percebemos nos alunos a vontade de se capacitar profissionalmente.

Mesmo diante dos obstáculos enfrentados pela situação de vulnerabilidade, cabe destacar que a múltipla jornada de trabalho acarreta a busca por capacitação e empreendedorismo. É fundamental que elas continuem a consolidar seu espaço no mercado de trabalho e tenham a equiparidade salarial com os homens, já reconhecida em lei, assim como outras estratégias de equiparação de gênero, alcançando um dos desafios da agenda do desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza (ONU Mulheres Brasil, 2022).

Eixo 2: Maternagem, desemprego e formação acadêmica

A maioria dos cursistas pertencia à faixa etária de 18 a 30 anos (46,5%). Desses, 78 participantes eram solteiros (60,5%), enquanto 32,6% estavam casados ou em união estável. Dentre eles, 68 participantes têm filhos (52,7%), sendo que a maioria (39,4%) têm 2 filhos e 38% têm apenas um filho. Visto que a maioria dos participantes jovens (61,9%) com mais de 1 filho. Na residência, 70,6% dos participantes vivem com mais de duas pessoas, 52,3% vivem com uma criança, 27,6% vivem com duas crianças e 82% não vivem com idosos, enquanto 36,8% vivem com dois idosos e 31,6% vivem com um idoso.

Apesar de não termos levantado a idade dos filhos dos participantes, a presença de crianças com até 3 anos de idade vivendo com os cuidadores – na faixa etária entre 25 e 49 anos – é um fator importante relacionado ao grau de ocupação das mulheres no mercado de trabalho (IBGE, 2019). As mulheres de 25 a 49 anos, com filhos de até 3 anos, participam do mercado de trabalho em 54,6% (IBGE, 2019). Enquanto isso, as mulheres da mesma faixa etária que não possuem filhos de até 3 anos participam em 67,2% (IBGE - Educação, 2019). Nesse recorte, as mulheres pretas e pardas tiveram índice de ocupação inferior a 50% e, em relação às mulheres brancas, o percentual é de 62,6% (IBGE, 2019), o que mostra uma diferença significativa.

Posto isso, acima da dificuldade de inserção no mercado de trabalho, do cuidado com filho(s), idoso(s) e dos afazeres domésticos, a pesquisa concilia essas múltiplas jornadas de trabalho e as mulheres buscam trabalhar em período parcial, correspondendo a cerca de 30 horas semanais (IBGE, 2019). Isso contribui para a vulnerabilidade financeira, sendo que os homens empregados com essa mesma carga horária eram apenas 15,6% (IBGE, 2019), demonstrando mais uma vez a vulnerabilidade de gênero em relação às mulheres no mercado de trabalho.

O nível de escolaridade dos participantes demonstra que 46,5% tinham Ensino Médio completo e apenas dois participantes (1,6%) possuíam o Ensino Superior Completo. Para o IBGE (2019), o motivo do grupo de 15 a 29 anos para parar de estudar foi relacionado à necessidade de trabalhar, à falta de dinheiro para as despesas, aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas (IBGE, 2019), apontamentos que reforçam a vulnerabilidade financeira dos participantes.

Outro dado importante dos participantes é que 37,2% deles recebem menos de um salário mínimo. Mesmo assim, 55,8% não recebem auxílio governamental. Em contrapartida, 41,1% dos participantes recebiam salário mínimo e o restante não respondeu, demarcando assim o baixo rendimento e o não recebimento de auxílio governamental para esse percentual.

O programa do governo Bolsa Família foi apontado como fundamental para garantir a proteção social aos brasileiros, transferindo 70% da renda para os 20% mais pobres (IBGE, 2019). O seu substituto, o Auxílio Brasil, foi apontado como propiciador de uma queda de 24% da extrema pobreza, segundo a Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2022). Assim, o auxílio emergencial foi estrategicamente importante para a transferência de renda durante a covid-19 (IBGE, 2019). Infelizmente, conforme foi amplamente noticiado pela mídia, nem todas as famílias que precisavam receber o Auxílio Brasil conseguiram realizar ou atualizar o cadastro do CADúnico.

É fundamental ressaltar que apenas a instrução e a qualificação dos jovens são efetivas na reversão da expressiva desigualdade educacional presente no país (IBGE, 2019) principalmente em contextos em que elevar a qualificação for desfavorável e for precária a inserção no mercado de trabalho, incluindo empregos de baixa qualidade e alta rotatividade (IBGE, 2019). O curso de habilidades sociais e o cuidado de si contribuem imensamente para o combate à vulnerabilidade, já que as habilidades sociais se encarregam de estratégias e comportamentos que promovem interações humanas satisfatórias, proteção para saúde mental e bem-estar (Oliveira; Batista, 2020). Segundo as autoras, esse conhecimento de comportamentos são necessários e consideráveis ao mercado de trabalho, gerando autonomia aos sujeitos em relação ao poder de mudar seu contexto.

A oficina ofertada, Habilidades Sociais ao Cuidado de Si, pautada pela ética da existência proposta por Foucault, requer cuidar de si para poder cuidar do outro, demandando postura ética do indivíduo consigo mesmo, com o outro e o mundo (Galvão, 2014), modificando as atitudes e a subjetividade em direção à compreensão de si (Galvão, 2014), a fim de alcançar um patamar existencial mais confortável e zeloso em resistência aos ataques do sistema neoliberal opressor contra o proletariado.

Eixo 3: Questões históricas da autodeclaração de raças no Brasil

Nesse eixo, apresentaremos uma breve introdução histórica essencial para ajudar na tentativa de compreensão dos dados obtidos na oficina do Projeto Interinstitucional Multi-Foco. O Brasil é um país estruturado pelo racismo, e 85,3% dos participantes não declararam a sua raça, enquanto 7% se autodeclararam pretos, 6,2% se autodeclaram pardos e 1,6% brancos. Perceptivelmente, observamos que a maioria dos participantes era de negros e pardos. Florestan Fernandes, em seu clássico A integração do negro na sociedade de classes (de 1964), mostra como os mais diversos processos históricos foram essenciais e fundantes na estrutura social brasileira fortemente segregada e dividida pela cor. Segundo o autor, alguns processos históricos foram essenciais para a fundação no modo de produção capitalista periférico e dependente no Brasil (Fernandes, 1964).

O primeiro deles seria a Lei de Terras de 1850 (Fernandes, 1964). Essa legislação em especial é considerada extremamente estruturante e fundante de nosso tecido social até hoje (Fernandes, 1964). Na prática, em um período histórico ainda marcado pela escravidão, ela só seria institucionalmente abolida em 1888. A Lei de Terras institucionalizou a propriedade privada das terras no Brasil, regulando sua compra e venda (Fernandes, 1964). O fato de essa lei ter vindo antes do fim oficial da escravidão não é aleatório; trata-se de um artifício prévio, criado pelas classes dominantes, para sua proteção e consolidação de suas posses e domínios (Fernandes, 1964), pois já naquela época, o Brasil vivia um período de transição e construção das estruturas para o surgimento de uma “nova” sociedade de produção capitalista, movida pelo trabalho livre e assalariado e pautada por uma ordem social competitiva (Fernandes, 1964).

Conforme Florestan explica (1964), nossa abolição também não foi marcada por um processo histórico de emancipação da população negra. Consoante a ele, a Abolição da Escravidão no Brasil foi “conservadora”. Após o fim do trabalho escravo, a população negra foi institucionalmente segregada e excluída da nova sociedade “livre” e da mão de obra assalariada no modo de produção capitalista (Fernandes, 1964). Dessa forma, houve no Brasil –do final do século XIX ao início do século XX – a formação de uma classe trabalhadora “dividida” (Fernandes, 1964), em uma época marcada pelo racismo científico, as teorias eugênicas e as teses do branqueamento, adaptadas do exterior para o contexto local. O Estado brasileiro (e suas classes dominantes), de forma clara e proposital, decidiu optar pela inclusão de imigrantes, que recebiam fortes incentivos e compensações para se fixar em determinadas partes do país no novo modo de produção capitalista brasileiro, e pela exclusão proposital da população negra recém-“libertada” do antigo modelo escravista (Florestan, 1964).

Assim, se estruturou o que podemos chamar de uma classe trabalhadora branca inserida de fato no modo de produção capitalista brasileiro (embora também possamos discutir as contradições dessa “inclusão” no capitalismo). Essa classe trabalhadora branca, composta principalmente pelos imigrantes e seus descendentes, se inseriu no mercado formal e nos posteriores direitos trabalhistas e nos sindicatos. Suas futuras gerações prosperaram no país, enquanto à classe trabalhadora negra foi reservada a informalidade, a precariedade, a falta de perspectiva, a ausência de qualquer estrutura de seguridade social, a marginalização social e condições de vida degradantes (Florestan, 1964). A população negra e seus descendentes no contexto da pós-abolição sequer foram integradas à sociedade de classes (Florestan, 1964). Ou seja, a “integração” do negro à sociedade de classes foi uma não integração (Florestan, 1964).

Ramatis Jacino (2012), em sua tese O negro no mercado de trabalho em São Paulo pós-abolição (1912/1930) analisou, desde a metade do século XIX, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, contando com ações governamentais e de grandes empresários para favorecer a imigração e as preferências étnicas dos empregadores (Jacino, 2012). A servidão foi substituída por exclusão em uma tentativa de embranquecimento da nação e os negros foram marginalizados, obrigados a se afugentarem em zonas periféricas afastadas das cidades, uma situação que se desdobra até os dias atuais, podendo ser percebida nos dados obtidos pelo questionário do Projeto Multi-Foco. Nele, percebemos uma nítida conexão entre o quesito “raça” e territorialidade entre os participantes da pesquisa, marcados por uma forte questão racial, conectada a uma exclusão das regiões centrais do Estado do Rio de Janeiro.

Partindo dessa perspectiva, conforme analisado na tese citada, a exclusão das terras e a dificuldade no acesso à educação levou a população negra a uma profunda e estrutural marginalização social e política, ao longo do século XX e XXI. Essas questões favoreceram a construção ideológica que justifica o racismo e o embranquecimento da nação (Jacino, 2012), facilitando a imigração de europeus, dando subsídios via terras e trabalhos mais bem remunerados, ao mesmo tempo em que condenava os negros ao subemprego e à criminalização da pobreza, via forte opressão e vigilância do estado. Além disso, a condição marginal a que foram relegados, imprimia legitimidade à argumentação ideológica que creditava a eles a responsabilidade por sua exclusão e, por conseguinte, reforçava a marginalização a que foram submetidos (Jacino, 2012).

Corroborando as afirmações feitas pelo professor Ramatis Jacino junto aos relatos dos participantes de nossa oficina, muitos demonstraram profundo desconhecimento dos mecanismos de entrada ou sequer de seus direitos de ocupar o espaço da universidade. Para eles, o lugar não os pertencia, sendo um privilégio apenas estarem ali assistindo e participando da oficina. Ou seja, a ideologia da marginalização não só exclui os negros para as margens da sociedade, mas os fazem acreditar que lá não é o seu lugar.

Em seguida, precisamos mencionar o artigo de Luciana Rodrigues, Negro de pele clara: embranquecimento e afirmação da negritude no Brasil (de 2022), para entendimento do motivo da baixa autodeclaração dos pretos e pardos a partir de mecanismos utilizados para impedir a afirmação da negritude no Brasil. Em primeiro lugar, ela vai argumentar a falácia do “somos todos iguais”. Após a abolição, garantir a hierarquia racial andava junto com a eliminação da dita ameaça negra. Estupro e imigração foram recursos utilizados para a produção de um processo de miscigenação que visava eliminar a população negra, tarefa essa que exigia a produção de produtos de sangue misto: o mulato, o pardo, o moreno, o pardavasco, o homem-de-cor, o fusco e assim por diante”. Seguindo as palavras de Luciana Rodrigues (2022, p. 6):

Portanto, o terrível legado da escravidão no Brasil não cessou seus efeitos após a abolição da escravatura, em 1888. Jogada à própria sorte, a população negra enfrentaria o peso de um projeto político para sua eliminação. Como mostra Gonzalez (1988), o racismo latino-americano soube ser suficientemente sofisticado para manter subordinados negras/os e indígenas a partir da produção do desejo de embranquecimento. O mesmo opera com força total na internalização da superioridade do colonizador pelo colonizado, pois aqui, por nossas terras, o racismo tem assentamento na sutileza, no disfarce e escamoteamento através das teorias de miscigenação, assimilação e democracia racial. Para Lélia Gonzalez (1988), somos um exemplo evidente de racismo por denegação – que constitui a forma mais eficaz de alienação das/os discriminadas/os.

A “confusão racial" impede a negritude de se perceber como negritude. A fabricação do branqueamento, ao promover a mestiçagem, produziu a confusão racial da qual nos fala Carneiro (2011), pois é a partir dela que diferenciações como as categorias do IBGE de pretos e pardos, dentro da raça negra, têm funcionado. Podemos analisar tal fenômeno por meio dos dados gerados na oficina, visto que 85,3% dos participantes não declararam sua raça. O fenômeno não acontece por acaso, mas é fruto de movimentos e de processos históricos que, desde o fim do século XIX, buscam despolitizar, desmobilizar e alienar a população negra das estruturas e das forças sócio-históricas, reforçando os meios necessários para que essa população entenda de forma crítica os lugares nos quais estão inseridos, os motivos de sua marginalização e a capacidade política e social de transformarem os seus destinos.

Conclusão

Com os dados coletados via questionário na oficina do Projeto Multi-Foco, identificamos diversas vulnerabilidades às quais os participantes estavam submetidos em suas vidas. Essas vulnerabilidades foram identificadas e divididas em três eixos de trabalho que levantaram reflexões e contextualizações históricas tratadas durante o artigo.

Evidencia-se a urgência do combate às vulnerabilidades, pois elas impedem a consolidação das mulheres no mercado de trabalho e a sua garantia de oportunidades de formação em busca da equiparação de gênero e desenvolvimento sustentável, assim como a possibilidade de desenvolverem-se por meio de combates às desigualdades históricas e estruturais. O curso Habilidades Sociais e o Cuidado de Si contribui imensamente para o combate a essas vulnerabilidades. Ele se encarrega de apresentar estratégias e comportamentos que promovem interações humanas satisfatórias, além de proteção para a saúde mental e o bem-estar. O cuidado de si, pautado pela ética da existência, demanda postura ética do indivíduo consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Os aprendizados de tais comportamentos são bem quistos para o mercado de trabalho, gerando autonomia aos sujeitos em relação ao poder de mudar seu contexto, o que, por si só, já é uma forma de resistência aos ataques do sistema neoliberal predatório contra o proletariado.

Referências

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Publicado em 30 de abril de 2025

Como citar este artigo (ABNT)

MOREIRA, Lohayne Braga. Vulnerabilidade social e os efeitos da desigualdade: relato e análise dos dados obtidos pela oficina Habilidades Sociais e o Cuidado de Si. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 15, 30 de abril de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/15/vulnerabilidade-social-e-os-efeitos-da-desigualdade-relato-e-analise-dos-dados-obtidos-pela-oficina-habilidades-sociais-e-o-cuidado-de-si

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