Figuras de mistério
Jean Felipe de Assis
Doutor em Filosofia (UERJ), professor adjunto da UERJ
Certa vez, acordei subitamente em meio a um banquete infindo. Olhava para todos os lados e a alegria não possuía fim. Em tamanha perplexidade, buscava reconhecer onde estava, tentando recordar como dormira e em que espécie de sonho eu poderia estar. Se sonhava ou se sonhava um sonho, não sei dizer. Busquei apegar-me a qualquer resquício de real que eu pudesse encontrar. Comi e bebi delícias inigualáveis, das quais nada sei descrever. Todavia, senti que estava vivo, mas duvidei de todas as coisas, dos sentidos, do pensamento e até mesmo de mim. Entretanto, não pude negar que algo em mim duvidava enquanto eu vivia. Ao deixar de lado todo dogmatismo e qualquer ceticismo, também os dogmas céticos e o ceticismo dos dogmas, estava resoluto em aventurar-me no que se apresentava diante de mim.
Ecoava em minha memória cantos arcaicos, hinos antigos, épicas modernas e versos contemporâneos. Contudo nenhum desses abarcava a experiência vivida. Estas maltratadas linhas tampouco podem tangenciar o que se quer. A linguagem é uma tentativa assíntota de abarcar a existência mediante a fala, mesmo quando a língua perpassa toda a realidade. Eu pensava estar em um plano paralelo ao que lia nos poetas. Estava em um paraíso terrestre: campos elíseos rodeados de belas paisagens, uma arcádia a harmonizar espaço, tempo, humano e natureza, um jardim das delícias, repleto de prazeres infindáveis numa atualização fáustica da realidade.
Tudo via, tudo experimentava, embora nada entendesse. Diante de mim, uma belíssima jovem cantava em diferentes tons, repetindo sempre sílabas, nunca palavras inteiras. Não sabia falar, não conseguia calar e ecoava a todo tempo uma música sublime. Atônito, buscava entender o que se passava diante de mim. A ninfa voava e eu a perseguia sem saber como pudesse me aproximar. Em meio à multidão de bacantes, o esplendor da vida estava disposto em danças que associei à calícore, em flores que ornavam as cabeças e os umbrais que cheiravam a eupétale nas notas de uma harpa tão bela quanto as cordas de Ione. Já não via mais a jovem que voara entre as festividades e o júbilo. Era Eco! As reminiscências de sua voz restituíram a inquietante pergunta: buscarás ainda Narciso?
O delírio era intenso, as taças de ouro continham um vinho puro de Acrete, os caminhos eram pavimentados por rosas de todas as cores com variadas tonalidade. Silene sorria, refletida pela lua, enquanto Métis inebriava a todos ao dançar com Estesícore. Eu, filho de uma luz que já não brilha, envolto no hedonismo dos mortais e dos deuses, buscava uma orientação. Já a lembrança desvanecia quando o reconhecimento de uma cena me assombrou. Pairavam, pari passu, um chapéu conhecido e uma famosa coroa de louros que se misturavam ao tabaco e às mais perfumadas flores. Não errara: o bigode, a vestimenta, o cigarro. Fernando lá estava! Com ele, tantas encarnações de si mesmo em colóquio com outro poeta de minha mocidade, digníssimo Horácio: tão pleno, tão inquieto, tão belo! Se um dava a voz a Alberto Caeiro, o outro pontuava Virgílio. Se aquele dispunha das falas de Álvaro de Campos, esse versava acerca da métrica de Lucrécio. O português sonhava com um quisto império em pleno mar, o latino, entre mágoas das guerras civis, vertia em tinta.
Sem notar, eu entendia um diálogo único. O tempo e o espaço eram difusos. Eu vagava entre o deleite do esquecimento e o prazer da lembrança. Tão compenetrado fiquei! A ponto de recusar o límpido vinho de Falerno e o robusto aquentejano proposto por Ricardo Reis. Todavia, enquanto Calímaco zombava dos hexâmetros datílicos de um trecho da Eneida, as risadas de Catulo mudaram minha direção. Um poeta cego, entre semideias, ninfas e deusas, cantava a ira de Aquiles e as muitas desventuras do virtuoso Odisseu. Ao seu lado, outro
versador que, no momento, via tanto quanto o anterior. Aproximei-me desse afeito ao sotaque e às instruções argentinas. Finalmente, reconheci-o! Recitava com tanta elegância, maestro saudoso, mesmo sem a reflexão do sol em suas retinas, o raiar de sua enunciação iluminava os circunvizinhos. O antigo poeta, elevado pelas ninfas, ria com os rapsodos, mas nunca os corrigia. Uma cantiga narrava a morte de um herói. Homero anunciava, por métrica Alcaica, técnica recentemente adquirida por ele, que desconhecia tais eventos. Borges, mesmo sem levantar os olhos, sentenciava: "tu sabes, pois escreveste; talvez, não tenhas lido!". Um dos convivas riu dessa condição e inquiria como ele poderia afirmar o dito. Sempre calmo, o gaúcho asseverou: "porque eu sou Homero". O riso de todos era tão contagiante que mesmo sem entender motivo eu sorria, entre os risos da minha ignorância.
Acanhado, afastei-me. Olhei e vi outro colóquio deveras instigante. As defesas linguísticas sobre o vulgar falado na Florença renascentista apresentava-se nas tessituras aveludadas de um Chianti e nas encorpadas presenças dos tintos giovanni rossi. Novamente, minhas imagens mentais, gradativamente, reverberaram as falas conhecidas e as identidades desses dois interlocutores que se desvelaram. Amado Dante, a procurar a beata partícula de sua alma e o querido Maquiavel, a constatar as coisas como elas de fato se apresentam: ambos a recorrer aos argumentos linguísticos, pretéritos e futuros, louvavam a língua falada. E eu? Até aqui, surdo às mais elegantes formas de minha própria ignorância, cego, sem possibilidade de uma contemplação ínfima que fosse, insensível, sem nenhum gosto de saber à boca, anosmático, impossibilitado de distinguir entre aromas e pestilências e mudo, incapaz de me expressar nas mínimas bases de minha própria existência.
A embriaguez desses encontros, entre entusiasmos e maravilhamentos, tornava-me perplexo. O torpor mental assomava-me, perpassava todo o corpo. Entontecido, vagava procurando um suporte para firmar-me em pé. Não me continha em mim, não me bastava. O peso do mundo me atordoava. Os encontros com tantas musas que sequer posso nomeá-las, por ser fastio e enganoso. O ouvir de palavras tão profundas, proferidas por pessoas tão ilustres, não ouso mais esboçá-las. Assim, cambaleando entre maravilhamento e perplexidade, busquei forças físicas quando nada mais mental restava em mim, apenas a vontade de me encontrar, de resgatar a sanidade e de estar bem comigo mesmo. Ao primeiro grupo de seres vivos que vi, ajuntei-me. Minha destra, no primeiro ombro amigo encontrado, sustentava-me aos poucos. Desconheço quem possuía omoplatas tão largas e rígidas para sustentar toda a carga que trazia comigo.
Respirava com dificuldade, difícil saber o quanto desse relato é diretamente afetado pelo ocorrido. Uma figura exuberante, com um arco às costas, dedilhava a divina cítara. Impossível saber se era o ombro amigo ou a música que me restituía os sentidos. Após um instante de duração variável - a depender da memória - uma voz feminina acompanhava as notas tensionadas por Apolo. Métricas e ritmos inigualáveis, inimitáveis. Os arpejos ferem mais a alma do que as flechas da temível aljava, quando a poesia move mais intensamente do que qualquer motor cósmico. A música entoava o amor que atinge o necessário, o impulso a versar o Belo, o Vero e o Bom. Reconheci a divina voz de Diotima, fornecendo o entusiasmo ao narrar acerca do surgimento do oráculo de Delfos. Em notas paralelas, Urânia exaltava a ordem do cosmo e Polimínia, em suas múltiplas vozes e manifestações, prenunciava o sentido do mundo.
A celestial musa suspendeu minha imobilidade. Deu-me um compasso antigo, apontando os astros e guiando minha mão a desenhar o solo. A ferramenta do geômetra desenhava imagens que sustentavam meus pés. Não sabia mais se a convicção recém adquirida estava naquilo que eu observava, nos rascunhos que eu criava ou na inspiração da musa. Sem eu perceber, Urânia afastava-se de mim. Ao rabiscar o barro, ela cria um universo inteiro em um pequeno pedaço de terra que clamava ser minha propriedade. Mais do que o movimento dos astros, via a mim mesmo nos traços criados, nas circunferências utilizadas para as construções geométricas. Ecoava em mim o suspiro da Pítia, mas, dos vultos, pouco de mim se via.
Evidência: as imagens criadas em nada eram semelhantes ao que se passava no mundo. Depois de sacralizar meus maltrapilhos rabiscos, o mover das estrelas encantava-me – não apenas por seus brilhos, tampouco pelo seu mover, mas pela causa eficiente que transformava todas as coisas no meu sentir. Tão vastas quanto as estrelas são as manifestações e as materializações do sagrado; tão distantes estão as estrelas de nós, tão afastado eu estava de mim mesmo. Apaguei toda a geometria manifesta no solo e carreguei comigo seus formalismos que me ajudavam a compreender o lógico. Sem saber o que fazer com a erosão do intelecto e com a terra arrasada defronte, ouvia aos diversos hinos de Polimínia: as ninfas gregas, Ísis e Osíris, o inominável tufão criador hebraico, a busca pelo libertador nirvana, as manifestações de Brahma e a encarnação de Cristo frutificaram um pequeno jardim.
O dom da fala que eu ainda não possuía conjugava o sensível e o inteligível com o movimento dos astros e as transformações físicas à minha frente. Tão logo eu balbuciava um vocábulo sem sentido, as crenças do compasso e os dogmas da jardinagem minavam minhas experiências. Percebi que o diálogo humano infinito é composto de palimpsestos sem fim. Entre sorrisos e lágrimas, acerquei-me do amistoso grupo que me socorrera. Estava ciente, pelas sagradas escrituras de que sou nutrido, que não adianta montar tendas e templos para conter a epifania, pois em breve eu estaria ausente do symposium único. Sentia-me vocacionado pelas imagens vistas no jardim cristão que cultivei como um modo de me reconectar com esse paraíso, não apenas para regressar continuamente a esses encontros, mas anunciar as boas-novas humanas àqueles que as ouvissem e cuidassem delas a fim de as experimentarem como eu as experimentei.
Comecei a aprender como ouvir e como escutar, assim, menos ignorante eu era. Pequenas frestas de luz eu vi, permanecia na douta ignorância, mas
provara o alimento dos humanos e dos deuses, minha boca começava a reconhecer os sabores da vida. Cheirei as letras que exalavam perfume, passando a distinguir flores e dissabores. Olhei a Diotima nos olhos e prostei-me frente a Apolo. Fui abraçado por Urânia e Políssima, mas gaguejava… Eco... Eco... Onde estás? Em torno de mim, surgiu a desejada ninfa. Tartamudeando, suspirei: "heu frustra dilecte puer!". Ela sorriu, beijou-me os lábios e bradou: "vale!". Saiu da caverna abscôndita e fez-me teu Narciso. Senti-me fortalecido, reconheci os largos ombros que me ampararam. Eu cantei:
Gramática, a espelhar nosso convívio,
Desvela mais do que falar pode a linguagem,
Verbos, sujeitos e objetos formam imagem
De encontros por desejos sem alívio.
Voz áspera e doce é pura sinestesia,
Ignorada àqueles amantes atrasados
Que desconhecem assonância e maresia
A misturar os sentidos dos corpos cantados.
Sua repetição tônica, desapercebida,
Aos que não te desnudam em plena malícia,
É um anacoluto de sintática proibida:
Musa, ao chegar, encho-te de carícias.
Já inebriado, entrego-me totalmente,
Leonino, em reversa prosopopeia,
Devoro tudo que a ti é inerente,
Ah! Aai! Hmm! Estado puro de onomatopeia.
Confundem-se dito e quista realidade,
Eis um todo sem nenhuma de suas partes;
Movimento e intento por similaridade
É a pura fala sem retórica e suas artes.
Sob o olhar da sibila, silencio,
Constato, por fim, a obscura luz da verdade:
Tudo é metáfora, analogia que tangencio
Na contingência erma da causalidade.
Somente a voz a unir ideia e matéria
Torna o similar palpável e afeito;
Somente a nós, em humana miséria,
Há de haver metonímia sem efeito.
Abscôndita mão que as estrelas ordena,
Desvela geometria sonora e audível,
Pleonasmo que a natureza não condena
Por entrelaçar cosmo, querer e o possível.
Contiguo contigo, universo, contemplo,
Sem mediação, o movimento cósmico,
Do qual cartografia astral é um exemplo,
Imperfeito e pueril, que me dedico.
Desfaz-se o contraste entre crido e dito,
Corpo desnudado de Isis em catacrese
Perpassa o quiasmo do visto e do escrito,
Catarse sem força natural que a represe.
Tal qual Édipo a viver na ignorância,
Eufemismo para a tragédia do pensar,
Estamos na comédia da circunstância;
Sem qualquer exagero, enigmas até cansar.
Hipérboles trazem comparações às claras,
Embora cômica possa ser humana sina
Ao descrever o fascínio às ideias caras,
Sem saber as voltas que a Fortuna máquina.
Os calos da fala em véu e tessitura
Transformam em texto desconhecida omissão
A velar falácia enquanto chama dura,
Visto que o saber é somente rememoração.
Santo fazer têxtil do texto em contexto
Entre mentes e encontros entrecortados:
Literatura, anáfora por pretexto;
Letra, aliteração do que estaria calado.
Celeste força que a natureza moveis
Revelai a ordem deste mental hipérbato,
No qual confissão e consolação são afáveis
E eu, rabiscador de rascunhos, acato.
Em ti, Beleza vista no espelho dos versos,
Balbuciar de polissíndetos desconexos,
Tão ininteligíveis que desconverso,
Titubear da fala não passa de reflexo.
Inocente e puro, sou apenas menino
Na imensa virtude da divina Bondade.
Filósofos, teólogos e poetas latinos
São antonomásias de análoga idade.
Inegável, o verbo de mim se ausenta,
Embora concorde com o dito no poema,
A Verdade se esconde por elipses, atormenta.
Devoro o dito, termina-se o dilema.
Entusiasmado, pela fala movido,
Omito conectivos e predicados.
Zeugmas e assíndetos, certezas do ido,
Fantasias de um monismo inventado.
O ser é o que é e não poderá não ser.
Imbuída e transformada por este ânimo,
A escrita faz este hiato transparecer
Ao passo que torna o distinto em sinônimo.
Eu, que sou o que não sou, pago para ver
Paradoxos de límpida ontologia.
Ser e não ser, eterna ironia de viver,
Incurável chaga, dor e patologia.
Estrelas, geometrias, corpos e linguagem
Revelam, em particularidades e modos,
Gradação e artefatos de humana miragem
Sem os quais não se esclarecem estes nodos.
Claro e escuro, céu e terra, vida e morte,
Silepses do imovível que a todos move;
Envolvem e devolvem o ser a sua sorte
Até que, por fim, do mistério comprove.
Publicado em 07 de maio de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
ASSIS, Jean Felipe de. Figuras de mistério. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 16, 7 de maio de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/16/figuras-de-misterio
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