Um estudo descritivo acerca dos conectivos de oposição mais recorrentes em redações nota 1.000 do ENEM

Naiara Morante

Doutoranda em Estudos Linguísticos (Unesp)

Celso Fernando Rocha

Doutor, professor assistente na Unesp

Talita Serpa

Professora colaboradora da Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Unesp

Adriane Orenha

Doutora, professora assistente na Unesp

A produção escrita hoje figura como uma das mais importantes formas de avaliação em vestibulares no Brasil. O texto de caráter dissertativo-argumentativo está entre os mais solicitados, exigindo do candidato a defesa de um posicionamento frente a determinado tema. Nesse contexto avaliativo, encontra-se o Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM, cuja aplicação ocorre desde 1998, já contando com uma proposta de redação.

Levando em consideração a importância da escrita de redações no cenário atual, faz-se necessária, mais do que nunca, uma reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem da produção escrita. É nesse cenário que se insere este artigo, cujo trabalho figura como recorte de uma pesquisa mais ampla, a qual tem como objetivo final a elaboração de um curso de escrita para alunos do 3º ano do Ensino Médio especificamente voltado à produção textual solicitada pelo ENEM. Dado o escopo do presente texto, apresentaremos dados preliminares sobre 80 redações nota 1.000 produzidas nas edições de 2014 a 2021, estritamente no que concerne ao emprego dos operadores argumentativos que estabelecem relação de oposição.

Percurso teórico e conceitos operacionais

Nesta seção, abordamos os conceitos fundamentais para o entendimento do texto dissertativo-argumentativo exigido na prova de redação do ENEM, bem como o arcabouço teórico e metodológico da Linguística de Corpus que embasa este estudo.

A Base Nacional Comum Curricular e a argumentação

Documento normativo que determina, em território nacional, as competências e habilidades necessárias para a formação dos estudantes ao longo de sua escolarização, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tenciona assegurar uma aprendizagem que prepare o aluno para sua vida social, apto a exercer sua cidadania, a partir das práticas desenvolvidas no espaço escolar.

Quanto à produção escrita do texto argumentativo, a BNCC concebe-o como lugar de interação do indivíduo. Nesse espaço, ele constrói seu dizer, que deve ser orientado segundo critérios específicos a fim de atender a seu propósito. O documento apresenta a habilidade EF69LP18, que deve ser trabalhada a partir do 6º ano do Ensino Fundamental a fim de garantir ao aluno um bom desenvolvimento do texto argumentativo.

Utilizar, na escrita/reescrita de textos argumentativos, recursos linguísticos que marquem as relações de sentido entre parágrafos e enunciados do texto e operadores de conexão adequados aos tipos de argumento e à forma de composição de textos argumentativos, de maneira a garantir a coesão, a coerência e a progressão temática nesses textos (“primeiramente, mas, no entanto, em primeiro/segundo/terceiro lugar, finalmente, em conclusão” etc.) (Brasil, 2018, p. 145).

Verifica-se a preocupação em desenvolver a argumentação tanto em relação à capacidade de expressar e defender um ponto de vista – considerando sempre o respeito humano – quanto ao modo como textualmente essa relação será construída. Assim, espera-se que os alunos se valham dos diversos recursos linguísticos disponíveis para construir seus textos argumentativos de modo coeso e coerente.

O texto dissertativo-argumentativo no ENEM

A produção escrita que se espera no ENEM é a de um texto dissertativo-argumentativo. Na Figura 1, é possível constatar o modo como a proposta de redação é apresentada ao participante.

Figura 1: Proposta de redação do ENEM 2021

Fonte: Exame Nacional do Ensino Médio (prova azul, 2021).

Depois de propor os textos motivadores aos participantes, expõe-se a proposta de redação. O participante, então, é introduzido no tema, bem como no que se espera que ele desenvolva segundo a temática.

Na cartilha do participante de 2020, o INEP conceituou, a fim de oferecer mais subsídios aos candidatos, diversos aspectos considerados na correção da redação, como o que se entende por: modalidade escrita formal da língua portuguesa, fuga ao tema, tangenciamento ao tema e texto dissertativo-argumentativo. Interessa a esta pesquisa especialmente o conceito de texto dissertativo-argumentativo que embasa a prova de redação. Segundo o documento,

o texto do tipo dissertativo-argumentativo é aquele que se organiza na defesa de um ponto de vista sobre determinado assunto. É fundamentado com argumentos, a fim de influenciar a opinião do leitor, tentando convencê-lo de que a ideia defendida está correta. É preciso, portanto, expor e explicar ideias. Daí a dupla natureza desse tipo textual: é argumentativo porque defende uma tese, uma opinião, e é dissertativo porque utiliza explicações para justificá-la (Brasil, 2020, p. 19).

Espera-se, então, que o candidato desenvolva de maneira argumentativa seu ponto de vista em relação ao tema proposto, a fim de levar o leitor a considerar como plausível sua tese. Para isso, deve recorrer a explicações e exemplificações extratextuais, escrevendo um texto organizado que conduza o raciocínio do corretor. Assim, são importantes tanto os argumentos que o participante seleciona na defesa de suas ideias como a forma de construção textual.

A cartilha disponibiliza também os critérios de correção da prova de redação. São cinco competências segundo as quais os participantes serão avaliados. Cada uma delas vale de 0 a 200. Dessa forma, o candidato pode receber uma nota desde 0 até 1.000, caso seu texto responda com exatidão a todos os critérios estabelecidos.

A Figura 2 apresenta as competências avaliadas no momento da correção da redação.

Figura 2: Critérios de correção da prova de redação do ENEM

Fonte: A redação no Enem 2020: cartilha do participante.

Elaboradas de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as cinco competências que norteiam o processo de avaliação da redação do ENEM exigem do redator tanto aspectos formais da língua como extralinguísticos, que dizem respeito à sua formação enquanto cidadão.

Dado o escopo deste trabalho, vamos nos ater à Competência 4, a fim de entender melhor o que se espera de um texto dissertativo-argumentativo que atenda de maneira completa a esse critério, alcançando a nota máxima, 200.

A Competência 4 na grade de avaliação do ENEM: demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários à construção da argumentação

A Competência 4 na grade de correção da produção textual do ENEM avalia o modo como se organizou o texto por meio de elementos de coesão. A Cartilha do Participante apresenta aos candidatos as expectativas a serem cumpridas nos textos produzidos.

Os aspectos a serem avaliados nesta Competência dizem respeito à estruturação lógica e formal entre as partes da redação. A organização textual exige que as frases e os parágrafos estabeleçam entre si uma relação que garanta a sequenciação coerente do texto e a interdependência entre as ideias. Essa articulação é feita mobilizando-se recursos coesivos, em especial operadores argumentativos, que são os principais termos responsáveis pelas relações semânticas construídas ao longo do texto dissertativo-argumentativo, por exemplo, relações de igualdade, de adversidade, de causa-consequência, de conclusão etc. (Brasil, 2020, p. 23).

Espera-se que o candidato utilize os mecanismos linguísticos de forma expressiva e adequada em seu texto a fim de estruturar de maneira lógica suas ideias, valendo-se dos diversos recursos disponibilizados na língua portuguesa. Também fica claro que a redação precisa estar organizada em frases, as quais estruturam parágrafos, que, por sua vez, formam o todo textual.

Nesse todo, entende-se que a argumentação da tese defendida ao longo do texto pelo participante irá mobilizar informações de ordem contrastiva, comparativa, causal, conclusiva, por exemplo. Essas relações se tornam evidentes a partir do uso dos elementos coesivos.

Na Figura 3 apresentamos a grade de correção dessa competência, cuja pontuação final se dará de acordo com o que o candidato atingir.

Figura 3: Grade de correção da Competência 4

Fonte: Redações Enem 2019 – Material de Leitura (2019).

O critério para alcançar a pontuação máxima nessa competência é realizar a articulação do texto de forma adequada por meio dos recursos coesivos. Espera-se que o candidato mobilize um repertório diversificado de operadores argumentativos a fim de articular de modo coeso suas ideias dentro dos parágrafos e entre eles, apresentando variação lexical e ausência de repetições.

Ao observarmos o critério que leva à pontuação 200, notamos que não basta ao participante articular as ideias do texto por meio dos elementos de coesão – é preciso fazê-lo bem. Do contrário, ainda que empregue os conectivos, se não forem cabíveis no contexto, sua pontuação será baixa. Caso apresente inadequações, mesmo com variação no repertório, o texto já não alcançará o nível mais alto, recebendo 160 pontos. Recebem nota 0 os textos em que não é possível reconhecer articulação.

Operadores argumentativos no ENEM

Em 2020, o INEP disponibilizou, de modo inédito, o material de correção de redação do ENEM de 2019, documento de formação dos cursistas – corretores de redação –, de conteúdo sigiloso até então. Seu conteúdo é bastante significativo para os candidatos que fazem a prova, os quais têm a oportunidade de conhecer de maneira bastante clara os critérios de correção da redação.

O acesso ao material também é de extrema importância para a realização desta pesquisa, por explicitar as premissas teóricas que fundamentam as cinco competências de avaliação das redações. Torna-se possível, então, estudá-las e analisá-las de forma detalhada. Nos postulados do documento, apresentam-se as teorias que embasam todas as competências, mas aqui tratamos especificamente da Competência 4: “Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação”.

O Material de Leitura trata dos conceitos de coesão e de operadores argumentativos (Koch, 1988; 1999) e apresenta um quadro com os principais operadores argumentativos relacionados às ideias que podem se estabelecer no texto. A coesão pode ser observada por meio do modo como se organizam as frases, os parágrafos e o texto como um todo. Ocorre de maneira explícita, pelo uso de materiais linguísticos específicos.

De acordo com Koch (1988, p. 75), existem dois tipos de coesão: a referencial e a sequencial. Por meio da coesão referencial, recupera-se um referente já apresentado no texto. Por meio da coesão sequencial, acrescentam-se informações a respeito desse referente já dado. Garante-se, assim, que o texto apresente algo novo, ao mesmo tempo que mantém seu leitor situado quanto ao que já foi dito.

Além do uso de mecanismos de referenciação e de sequenciação, espera-se que o candidato articule seu texto valendo-se de operadores argumentativos. A respeito dessa categoria, o material traz concepções advindas dos estudos de Koch e Elias (2016):

De acordo com Koch e Elias (2016, p. 76), os operadores argumentativos são elementos que fazem parte do repertório linguístico e “são responsáveis pelo encadeamento dos enunciados, estruturando o texto e determinando a orientação argumentativa”. Isso nos permite concluir que esses elementos linguísticos devem estar entre os principais componentes da articulação do texto dissertativo-argumentativo, o que justifica o fato de as notas mais altas exigirem operadores argumentativos, como se verá na Grade Específica (Brasil, 2019, p. 13).

O ENEM considera, portanto, indispensável a presença de operadores argumentativos na superfície textual para que a escrita do candidato esteja organizada. As redações de nota 1.000 enquadram-se justamente naquelas em que o participante fez o uso dos mecanismos de coesão adequados e variados para construir seu texto.

O documento traz uma lista bastante variada de operadores argumentativos de oposição: mas, porém, contudo, todavia, no entanto, entretanto, embora, ainda que, posto que e apesar de. Ressalta, entretanto, que a lista não é exaustiva.

Conceitos da Linguística de Corpus

Desde sua concepção, a Linguística de Corpus esteve relacionada ao âmbito tecnológico e às diversas ferramentas computacionais para análise linguística. Podemos dizer que houve um amadurecimento da disciplina em razão do advento do computador. Com o uso dos PC e o desenvolvimento de programas específicos para o armazenamento e a extração de dados de corpora, vários estudos puderam ser efetuados em grandes quantidades de textos. Além disso, as ferramentas eletrônicas foram importantes para conferir maior confiabilidade às pesquisas, antes vistas como altamente suscetíveis a erros.

Como mencionado anteriormente, com o instrumental disponibilizado pela Linguística de Corpus, os dados linguísticos passaram a ser observados por meio de diferentes vieses. Berber Sardinha (2000), então, define a Linguística de Corpus unindo a finalidade da disciplina de estudar a linguagem por um método empírico ao fato de os corpora serem manipulados por ferramentas eletrônicas:

A Linguística de Corpus ocupa-se da coleta e da exploração de corpora, ou conjunto de dados linguísticos textuais coletados criteriosamente, com o propósito de servirem para a pesquisa de uma língua ou variedade linguística. Como tal, dedica-se à exploração da linguagem por meio de evidências empíricas, extraídas por meio de computador (Berber Sardinha, 2000, p. 3).

Atualmente, a partir das pesquisas com corpora, organizam-se materiais didáticos, dicionários e programas que empregam o reconhecimento de voz, por exemplo, já que os corpora são representativos da língua em uso e possibilitam trabalhar com instâncias reais de cada idioma.

Conceituação de corpus

Inicialmente, o conceito de corpus fazia referência a um conjunto de dados linguísticos escritos, coletados com a intenção de estudo da língua em uso, sendo utilizados também para o ensino de línguas maternas e, principalmente, estrangeiras. Atualmente, o conceito passou a incorporar novos aspectos, como o fato de os dados serem coletados de modo automático e analisados por meio de ferramentas eletrônicas, como o programa de computador WST (empregado nesta pesquisa), o que permite maior controle em relação ao armazenamento e posterior observação dos dados.

Uma definição de corpus considerada abrangente por Berber Sardinha é a de Sánchez (apud Berber Sardinha, 2004, p. 18):

Um conjunto de dados linguísticos (pertencentes ao uso oral ou escrito da língua ou a ambos), sistematizados segundo determinados critérios, suficientemente extensos em amplitude e profundidade, de maneira que sejam representativos da totalidade do uso linguístico ou de algum de seus âmbitos, dispostos de tal modo que possam ser processados por computador, com a finalidade de propiciar resultados vários e úteis para a descrição e análise (Sánchez, 1995, p. 8-9).

Segundo Berber Sardinha (2004), há seis características importantes para que um conjunto de dados linguísticos seja classificado como um corpus adequado para análise:

  • A origem: os dados devem ser autênticos;
  • O propósito: o corpus deve ter a finalidade de ser um objeto de estudo linguístico;
  • A composição: o conteúdo do corpus deve ser criteriosamente escolhido;
  • A formatação: os dados do corpus devem ser legíveis por computador;
  • A representatividade: o corpus deve ser representativo de uma língua ou variedade;
  • A extensão: o corpus deve ser vasto para ser representativo.

Uma vez que corresponda a essas características, portanto, o corpus mostra-se um importante meio de estudo da língua. Especialmente em relação ao ensino de língua, a Linguística de Corpus mostra-se facilitadora, oferecendo diversas possibilidades para estudar as construções linguísticas em contextos de uso reais, como é o caso do presente estudo.

Nesse contexto – o uso de dados linguísticos computadorizados – o corpus torna-se fundamental a fim de promover um uso produtivo do léxico recorrente em textos argumentativos. Uma vez coletados os dados, é possível estudá-los de forma crítica, utilizando-os para a produção coerente de um texto dissertativo-argumentativo, o qual envolve a exposição de uma tese e a apresentação de argumentos para defendê-la.

Entende-se, assim, a possibilidade de usar os dados oferecidos pelo corpuscomo uma ferramenta de aprendizagem do texto argumentativo, no sentido de poder aplicá-los em favor das ideias que o aluno desenvolve em sala – e não como uma estrutura engessada que ele decora para utilizar no dia da prova, sem refletir sobre ela.

Material e método

O primeiro passo para a realização deste estudo consistiu na seleção do material para análise: redações produzidas por participantes do ENEM.

Selecionamos para análise as redações que obtiveram a pontuação máxima (1.000), uma vez que tencionamos correlacionar nota e emprego do léxico mais frequente com o intuito de descrever e analisar os elementos linguísticos prevalentes nesse tipo de texto. O período de seleção dos textos compreende os anos de 2014 a 2021, quando a divulgação das produções escritas se tornou frequente, ocorrendo anualmente logo após a liberação das notas pelo MEC. As redações encontram-se disponíveis em formato digital no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e nos portais G1 Educação e UOL, todos de acesso público.

Uma vez definidos os textos de estudo, organizamos o corpus RED-ENEM-1000, composto por 80 redações – 10 redações nota 1.000 por ano. Copiamos os textos e os colamos em um arquivo em formato .doc, excluindo os nomes dos participantes e os títulos das produções (que não são considerados no momento da correção) para que não interferissem nos dados que efetivamente foram avaliados na prova.

Depois, salvamos esse corpus em formato .txt, necessário para poder ser lido no software que usamos nesta pesquisa, o WordSmith Tools (WST) versão 6.0.

Para desenvolver este estudo, recorremos a duas ferramentas do WST: a primeira, a WordList, gerou uma lista de palavras em ordem de frequência e alfabética para o RED-ENEM-1000, da qual selecionamos os conectivos mas e entretanto para análise – por serem os mais frequentes. A segunda, a Concord, gerou listas de concordância para os conectivos escolhidos, apresentando-os com seu cotexto (texto ao redor da palavra em análise).

Para proceder à análise, observamos os vocábulos nos parágrafos em que ocorrem no corpus, considerando a função que desempenham. Nessa etapa, o uso de dicionários e de gramáticas aliado às ferramentas computacionais foi imprescindível para podermos entender o processo de construção das redações nota 1.000.

Análise dos dados

Neste trabalho, como mencionamos, debruçamo-nos sobre a análise dos operadores argumentativos que, no texto, contrapõem ideias, acontecimentos ou fatos – os conectivos de oposição. No Quadro 1, podemos observar a variedade desse conjunto lexical empregado pelos participantes do ENEM seguido do número de ocorrência no corpus.

Quadro 1: Conectivos de oposição presentes no corpus

Conectivo

Nº de ocorrências

Mas

25

Entretanto

24

Contudo

14

No entanto

13

Apesar

12

Embora

11

Porém

10

Ainda que

5

Todavia

4

Não obstante

3

Por outro lado

3

Pelo contrário

2

Mesmo que

2

Ao contrário

1

Do contrário

1

Fonte: Dados extraídos no WST

Ou seja, as redações apresentam 15 conectivos diferentes para expressar contrariedade. Como mais frequente, aparece mas, com 25 ocorrências. Em seguida, também bastante frequente no corpus, entretanto, com 24 ocorrências. O terceiro conectivo mais frequente nas redações, mas já com uma diferença expressiva em relação aos dois anteriores, é contudo, utilizado 14 vezes. Como menos recorrentes, ao contrário e do contrário, com frequência 1.

Portanto, os dados mostram a preferência pelo uso de mas e de entretanto, ainda que haja variação nos operadores encontrados nas redações. Nos próximos tópicos, expomos alguns trechos em que essas duas conjunções foram utilizadas, observando a construção textual feita por meio delas.

O conectivo mas

O conectivo mas aparece no quadro como o mais frequente no corpus em relação aos operadores argumentativos que estabelecem relações de oposição nos textos: 25 vezes.

Na Figura 4, apresentamos as linhas de concordância extraídas no WST que mostram o conectivo selecionado, mas, e seu cotexto:

Figura 4: Lista de concordância do conectivo mas

Fonte: Concord, WST.

Ao observarmos as linhas de concordância, podemos notar um fato curioso. O operador argumentativo mas é acompanhado, em 11 linhas das 25, do conectivo também. Esse é um dado interessante, pois mostra que esse conectivo foi utilizado pelos participantes em quase metade das ocorrências não para estabelecer oposição entre ideias, mas para adicionar alguma informação. Na Figura 4, percebemos que essa possibilidade se constrói linguisticamente em expressões como “não só... mas também”, “não apenas... mas”, “não somente... mas também”.

Em seguida, passamos aos trechos em que o conectivo mas é utilizado para adicionar uma ideia (primeiro caso das linhas de concordância) e em que funciona como articulador de fatos opostos (segundo caso das linhas de concordância).

A fim de localizar esses parágrafos, voltamos ao nosso corpus de estudo, fazendo uma busca a partir do cotexto dado nas linhas de concordância.

Segue o exemplo da primeira ocorrência de mas:

Outrossim, é válido salientar que a violência de gênero está presente em todas as camadas sociais, camuflada em pequenos hábitos cotidianos. Ela se revela não apenas na brutalidade dos assassinatos, mas também nos atos de misoginia e ridicularização da figura feminina em ditos populares, piadas ou músicas. Essa é a opressão simbólica da qual trata o sociólogo Pierre Bourdieu: a violação aos Direitos Humanos não consiste somente no embate físico, o desrespeito está – sobretudo – na perpetuação de preconceitos que atentam contra a dignidade da pessoa humana ou de um grupo social (RED-ENEM-1000, grifo nosso).

Pela leitura do parágrafo, observamos que o texto trata do tema da violência contra a mulher (“A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, prova do ano de 2015). O participante deixa claro, ao utilizar os operadores “não apenas... mas também”, um dos aspectos já conhecidos de forma de violência relacionadas à figura feminina, os assassinatos, a marca física mais visível desse problema social. Entretanto, além de retomar esse fator, que já é conhecido pela sociedade, o candidato quer realçar outro tipo de violência que as mulheres sofrem, mais velada, e que por isso mesmo precisa ser salientada: o preconceito, a desqualificação e a desvalorização.

Esse efeito é construído de maneira articulada no texto, evidenciando ao leitor os aspectos da violência que o redator gostaria de tratar mais especificamente, pois relacionam-se aos direitos e à dignidade humana e muitas vezes são negligenciados em sociedade e, portanto, devem ser discutidos.

No trecho a seguir, apresentamos o parágrafo referente à segunda linha de concordância de mas extraída do corpus:

Durante a primeira metade do século XX, as obras cinematográficas de Charlie Chaplin atuaram como fortes difusores de informações e de ideologias contra a exploração e o autoritarismo no continente americano. No contexto atual, o cinema permanece como um importante veículo de conhecimento, mas, no Brasil, não há o acesso democrático a essa mídia em decorrência das disparidades socioeconômicas nas cidades, as quais fomentam a elitização dos ambientes de entretenimento, e da falta de investimentos em exibições populares, as quais, muitas vezes, são realizadas em prédios precários e não são divulgadas (RED-ENEM-1000, grifo nosso).

O tema desenvolvido nessa redação trata do acesso ao cinema no Brasil (“Democratização do acesso ao cinema no Brasil”, prova do ano de 2019). O candidato explicita a importância do cinema como difusor de conhecimento, especialmente na América. Desde o século XX, as produções cinematográficas são amplamente reconhecidas e apreciadas, mas, como salienta o redator, no Brasil esse tipo de arte ainda é excluído da vida de muitos. No parágrafo, então, o mas contrapõe a ideia da relevância do cinema para a população à realidade: o brasileiro ainda não tem contato frequente com a “sétima arte”. Isso ocorre, conforme exposto no texto, devido a questões financeiras e ao modo de exibição e divulgação das produções.

O conectivo entretanto

Como podemos observar no Quadro 1, a conjunção entretanto foi utilizada 24 vezes nas redações do corpus. Aparece como o segundo conectivo preferencial para expressar relação de oposição entre os candidatos que escreveram os textos de nota máxima. Na Figura 5, observamos a lista de concordância gerada pelo WST para essa conjunção.

Figura 5: Lista de concordância do conectivo entretanto

Fonte: Concord, WST.

Podemos notar que, dentre as 24 ocorrências de entretanto, 20 trazem o conectivo no início de um novo período; nas outras quatro, ele está intercalado entre os componentes dos períodos. A seguir, apresentamos o exemplo da primeira linha de concordância mostrada na figura:

É relevante abordar que durante 1903 foi fundado o Hospital Colônia de Barbacena, onde eram isolados os doentes mentais, que foram submetidos ao frio, a fome e a doenças. Sendo submetidos a tortura, violência e posteriormente a morte. Sua última cela foi desativada em 1994, entretanto por infelicidade a exclusão de pacientes da psicopatia ocorre até os dias atuais. Esse panorama acontece porque a maioria dos governantes, grupos essenciais para a erradicação dos estigmas sociais referentes às doenças mentais, interessa-se, geralmente apenas pelo superficial, negligenciando a estipulação social em torno dos cidadãos (RED-ENEM-1000, grifo nosso).

Nesse parágrafo, que faz parte de uma redação sobre a saúde mental (“O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”, prova de 2020), o candidato apresenta os sofrimentos pelos quais passavam, desde o passado, os que eram considerados doentes mentais. No Hospital Colônia de Barbacena, esse grupo era torturado e até mesmo morto até a desativação total do espaço, em 1994.

O exemplo dado pelo participante serviria para corroborar a ideia de que a segregação e o preconceito enfrentados pelas pessoas que apresentam algum tipo de transtorno ou doença mental teriam acabado, como aconteceu com o hospital. Uma vez que isso não é o que ocorre na sociedade atual, o candidato utiliza o conectivo entretanto para expressar essa ideia de quebra de expectativa, de contrariedade ao que seria esperado hoje.

O próximo exemplo trata da segunda ocorrência de entretanto listada no corpus:

De acordo com Cláudio Mazzili, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vivemos em uma sociedade classista e hierarquizada em função do capital, na qual se instaura a lógica da discriminação e não a desejada inclusão social. Esse pensamento permite estabelecer um paralelo com a precária democratização do acesso ao cinema no Brasil, uma vez que essa importante fonte cultural está, majoritariamente, concentrada em zonas de alto poder aquisitivo. Entretanto, se usada de forma a auxiliar na democratização cultural — principalmente nas zonas periféricas —, o cinema pode ser uma importante ferramenta no avanço educacional do país (RED-ENEM-1000, grifo nosso).

Nesse parágrafo, que trata do acesso ao cinema no Brasil, o candidato defende que democratizar o acesso ao cinema em espaços marginalizados é uma forma de auxiliar o desenvolvimento educacional do país. Esse é um fato que não ocorre hoje, visto que, como expõe o redator, é nas áreas mais privilegiadas que os cinemas estão localizados. Ele sugere uma mudança de paradigma, então, marcada pelo uso da conjunção entretanto no início da formulação de sua tese. Ou seja, reconhece um desafio existente e apresenta algo contrastante que pode solucionar problemas relacionados ao tema.

Salientamos aqui um aspecto interessante que percebemos ao buscar as linhas de concordância no corpus da pesquisa em relação ao entretanto. Em 16 casos (dos 24) ele foi utilizado no parágrafo inicial da redação. Ou seja, na maioria dos empregos do conectivo articulou-se uma ideia de oposição importante para o desenvolvimento do texto como um todo, já que apareceu no parágrafo de introdução.

Além disso, percebemos que em cinco ocorrências desse conectivo no início do texto opôs-se um direito preestabelecido a uma realidade não existente no Brasil. Ou seja, demarca-se com o uso do entretanto uma quebra de expectativa: há um direito garantido em lei – esse direito não ocorre de forma prática. Nos trechos a seguir, apresentamos duas ocorrências que exemplificam essa nossa observação.

A Constituição Federal de 1998, norma de maior hierarquia do sistema jurídico brasileiro, assegura os direitos e o bem-estar da população. Entretanto, quando se observa a deficiência da visibilidade do registro civil como forma de garantir o acesso à cidadania no Brasil, verifica-se que esse preceito é constatado e não desejavelmente na prática (RED-ENEM-1000, grifo nosso).

Nesse parágrafo, o candidato cita a Constituição do Brasil a fim de retomar a ideia de que os cidadãos têm direitos assegurados pela lei. Essa menção é tão importante que ocupa o período inicial do primeiro parágrafo da redação. O fato é que esses direitos não se concretizam em sua totalidade, como os próprios temas abordados anualmente no ENEM o explicitam, exigindo do candidato um posicionamento frente a essa constatação.

Dessa forma, a fim de marcar o contraste expressivo entre aquilo que é defendido e garantido por lei, mas não acontece na prática, o redator utiliza o conectivo entretanto. No caso desse texto, a constatação mostra-se de extrema importância, afinal, o tema da redação aborda a questão de ser considerado cidadão no Brasil (“Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, prova de 2021), fator fundamental para se conseguir acessar os direitos assegurados pela Constituição.

A próxima ocorrência, de modo análogo à anterior, marca a não realização de um direito, mas agora pautando-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos – promulgada em 1948 pela ONU – assegura a todos os indivíduos o direito à educação e ao bem-estar social. Entretanto, o precário serviço de educação pública do Brasil e a exclusão social vivenciada pelos surdos impedem que essa parcela da população usufrua desse direito internacional na prática (RED-ENEM-1000, grifo nosso).

Nesse exemplo, o participante inicia seu texto citando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um texto que representa um marco para todo o mundo. Ela é a base textual para afirmar que todas as pessoas têm direito à educação e ao bem-estar, fator importante para que o participante mobilize o tema em questão: a educação e os surdos. Tratando-se de um documento tão relevante e divulgado, a expectativa seria que seu cumprimento ocorresse de fato, mas, ainda que parcela da sociedade tenha acesso à educação, existe um grupo marginalizado e impedido de acessar esse direito fundamental. Essa exclusão é marcada, textualmente, por meio do uso de entretanto.

Percebe-se, dessa forma, com base nos exemplos mostrados, a utilização da conjunção entretanto especialmente nos parágrafos iniciais dos textos a fim de apresentar a construção da ideia de que algo não se comporta da forma esperada devido ao contexto histórico e cultural ou que não está sendo garantido no contexto nacional.

Considerações finais

Neste trabalho, buscamos mostrar os conectivos de oposição mais recorrentes em textos dissertativos-argumentativos que alcançaram nota 1000 no ENEM entre os anos de 2014 a 2021 que compõem nosso corpus de estudo. O software WST mostrou-se essencial para o desenvolvimento da pesquisa, pois, com o uso de suas ferramentas, foi possível obter a quantificação das ocorrências dos conectivos, selecionando os mais frequentes para análise, bem como as listas de concordância dessas palavras.

Os dois conectivos mais frequentes, mas e entretanto, apontaram para a observação de contextos já esperados, o de expressar uma ideia de contraste entre fatos. No entanto, a partir da observação atenta das linhas de concordância de mas, notamos que grande parte de seu uso pelos candidatos ocorreu a fim de marcar a adição de ideias, não oposição (não só... mas também). Assim, o conectivo preferencial para estabelecer relação de contrariedade nas redações é entretanto, cujas ocorrências apontam sempre para quebra de expectativa em relação ao que era esperado ou ao que é de direito humano.

Referências

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BERBER SARDINHA, T. Linguística de Corpus. Barueri: Manole, 2004.

BERBER SARDINHA, T. Como encontrar as palavras-chave mais importantes de um corpus com Word Smith Tools. Revista D.E.L.T.A., São Paulo, v. 21, nº 2, p. 237-250, 2005.

BRASIL. Exame Nacional do Ensino Médio. (prova azul). Brasília: INEP, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enem/provas-e-gabaritos.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/.

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Agradecimento

Os autores agradecem o apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) (nº 307287/2021-1PQ2) e tecnológico da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (n° 008898340001-08).

Publicado em 21 de maio de 2025

Como citar este artigo (ABNT)

MORANTE, Naiara; ROCHA, Celso Fernando; SERPA, Talita; ORENHA, Adriane. Um estudo descritivo acerca dos conectivos de oposição mais recorrentes em redações nota 1.000 do ENEM. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 18, 21 de maio de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/18/um-estudo-descritivo-acerca-dos-conectivos-de-oposicao-mais-recorrentes-em-redacoes-nota-1000-do-enem

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