Pibid e processo iniciático: aproximações entre iniciação cultural e iniciação à docência

Cleibson Américo da Silva Costa

Professor de Filosofia na Seduc/AL, supervisor do Pibid, doutor e mestre em Filosofia (UFS)

O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) carrega em sua nomenclatura a expressão “iniciação”, termo usado nas ciências culturais, antropológicas e etnológicas para designar um processo cultural, por meio do qual o jovem ingressava na comunidade dos adultos, dando demonstrações de força e resistência. Para ser iniciado, ele precisava passar por tempos de formação e depois se submeter a provações e ritos de passagem, que tinham como objetivo forjar uma identidade nova e torná-lo adulto e responsável, tanto por si, quanto pela família que constituiria, e mais ainda, pela própria comunidade da qual agora se tornava um membro efetivo.

O objetivo deste artigo, por conseguinte, é verificar se há possíveis semelhanças entre os “processos iniciáticos”, tal como descrito por Arnold Van Gennep, em seu livro Os rituais de passagem, entre outros autores que serão mencionados ao longo do texto, e a própria concepção de “iniciação à docência”, conforme estabelecido pela Portaria nº 96, de julho de 2013, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Para tanto, será primeiramente apresentado o conceito de “iniciação”, a partir de uma concepção antropológico-cultural-religiosa, com o objetivo de extrair os elementos necessários que possibilitem reconhecer, na iniciação à docência — que constitui a segunda parte —, uma semântica de semelhança e de inspiração. Dessa maneira, ficará, ao final, eventualmente demonstrada a pertinência do uso do referido termo no programa voltado à formação de futuros professores, bem como como a prática pedagógica, em parceria com o Pibid, realizada na Escola Estadual Benedita de Castro Lima, em Maceió/AL, sob a supervisão do prof. Cleibson Américo, foi enriquecida por essas noções.

Iniciação cultural

A temática da iniciação cultural foi longamente desenvolvida pelo etnólogo, antropólogo e folclorista franco-holandês Arnould Van Gennep (1873-1957) e continuada, mutatis mutandis, pelo antropólogo britânico Victor Witter Turner (1920-1983), entre outros autores. Van Gennep, sobretudo em seu livro Os ritos de passagem (1909), expôs suas pesquisas sobre o tema, destacando a variabilidade que o processo iniciático adquiria nos diversos povos (Bandos, Wayao, Tusaian etc.), religiões (hinduísmo, bramanismo, budismo, cristianismo, judaísmo, islamismo etc.) e tribos (Apinayé, Salish, Pueblo etc.).

Falar em “iniciação” é empreender uma viagem geo-histórico-antropológica a fim de perceber que, não obstante a multiplicidade étnico-religiosa, algo perpassava e se mostrava como ponto comum: para fazer parte de uma determinada comunidade, seja uma etnia, uma religião, uma sociedade secreta, uma confraria filosófico-religiosa, etc., era imprescindível passar por um processo ritual de iniciação, por meio do qual o candidato precisava dar demonstrações de sua real disposição e interesse em integrar aquele determinado grupo.

Tal realização se dava por meio do que Van Gennep (2013, p. 29) chamou de “ritos de passagem”, que consistia basicamente em três momentos: “ritos de Separação, ritos de Margem e ritos de Agregação”, que também são respectivamente chamados de “ritos preliminares, liminares e pós-liminares” (Ibidem, p. 30). Esses ritos, segundo o autor, estão intrinsecamente presentes nas diversas formas de iniciação das diversas tradições étnico-religiosas.

A primeira classe de ritos consiste basicamente em separar o aspirante do seu convívio cotidiano, a fim de levar-lhe a compreender os valores, crenças e normas fundamentais para sua eventual permanência no grupo que deseja adentrar e pertencer. Os ritos de margem ou de transição, por sua vez, consistem em eventos formativos voltados ao aprendizado dos valores, crenças e normas referentes ao novo “modus” que o sujeito adquirirá ao ser iniciado, bem como às implicações decorrentes da aquisição de uma nova identidade. A terceira classe de ritos — de agregação ou incorporação — consiste praticamente nas ações de conclusão desse processo, seguido da aceitação e reconhecimento pela comunidade. Nessa última fase, o indivíduo iniciado adquire plenamente um novo “status”, uma nova “identidade”, por meio da qual pode se considerar um membro efetivo de determinada comunidade.

Esse processo era, em geral, antecedido ou sucedido “por uma temporada de reclusão (retiro), durante o qual os jovens vivem, longe dos outros, em companhia de um velho que lhes ensina os mistérios, ritos, doutrinas e tradições da tribo. Quem pretende ser iniciado, ser aceito na sociedade dos homens, tem que ter frequentado essa escola” (Iniciação, 1939, p. 126). Esse “introdutor” era também chamado de “mistagogo”, do grego μυσταγωγός — mistagogós — e significava o “sacerdote encarregado de iniciar fiéis nos mistérios” (Dezotti; Neves, 2022, p. 698); ele era uma espécie de “orientador”, “guia”, “instrutor”, que, por ser conhecedor das tradições, se tornava o responsável por ensinar e introduzir o noviço nos costumes, padrões, simbolismo, mistérios etc.

Em diversas tradições religiosas acontecia de modo semelhante: um sábio conduzia o fiel a conhecer o ethos, os ritos e os mistérios sagrados da comunidade religiosa, como fase predecessora aos ritos propriamente ditos, no intuito de que, o fiel, uma vez iniciado, soubesse honrar os deuses, forças ou entidades espirituais, a fim de que, procedendo de modo contrário, não atraísse o castigo sobre a comunidade.

No processo de iniciação, que poderia durar meses ou até anos, por meio dos “ritos de passagem”, os jovens aspirantes precisavam dar provas e demonstrações de sua real intenção de pertencimento ao grupo ou religião, e isso implicava, muitas vezes, sacrifícios e provações de resistências físicas, que não raramente deixavam marcas e cicatrizes, cuja função era relembrar ao iniciado seus laços de pertencimento.

Esse processo iniciático tinha como uma das finalidades específicas gestar no neófito uma nova “identidade”, “novas etapas de vida” (Peirano, 2003, p. 16) ou um “novo status” (Turner, 2013, p. 104) não mais natural, mas agora cultural, simbólico, espiritual, mediante o qual era garantida a preservação da identidade e da unidade cultural do povo. A palavra neófito, em sua etimologia grega, Νεόφυτος, é a junção de dois vocábulos: Νεό, que significa novo/a, e φυτος, planta. Literalmente significa “planta nova”, correspondendo ao que foi “recentemente plantado”, indicando, portanto, “iniciante em qualquer atividade”. Esse termo foi utilizado na Idade Média para designar os cristãos recém-convertidos e batizados, mas desde a modernidade seu uso foi alargado e usado também para designar os novos ingressantes em seitas e confrarias religiosas, sociedades secretas etc.

Há, dessa maneira, um processo de “identificação”, o qual se configura, conforme o comentário de Mário Ferreira dos Santos em seu Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais (1963, p. 766), pela “acção de identificar; ou seja, de verificar se há ou não identidade entre duas coisas”, nesse caso, entre as aspirações e propósitos do iniciado e os valores e costumes da comunidade, ou ainda, entre o novo membro e o grupo.

Essa mudança “ontológica” causava um rompimento no iniciado, e, por meio desses ritos de passagem, o aspirante como que morria para a antiga condição e renascia com uma nova identidade (Van Gennep, 2013, p. 31). Nesse sentido, Van Gennep (2013, p. 90), recordava que, para o historiador e biógrafo grego Plutarco (46-120 d.C.), “iniciar-se é morrer”. Além disso, por meio dos ritos de passagem, objetivava-se garantir e dar continuidade ao grupo, conservando os valores, normas, tradições e a cultura.

Processos iniciáticos também aconteciam nas tradições religiosas (hinduísmo, bramanismo, budismo, cristianismo, judaísmo, islamismo etc.), confrarias religiosas (budistas, mulçumanas etc.) correntes filosófico-religiosas (como o gnosticismo, esoterismos) etc., conforme apontou Van Gennep (2013). O elemento comum a todas elas e às etnias é precisamente o aspecto ritual-processual a que o/a jovem é submetido/a ao chegar, normalmente, à fase da puberdade, como pré-requisito à introdução na vida da comunidade. Van Gennep apresenta muitos exemplos de como aconteciam tais cerimônias e das provas de resistências impostas ao aspirante.

No rito catecumenal do cristianismo primitivo, por exemplo, conforme é testemunhado na Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, sobre a liturgia e catequese em Roma no século III (2004, p. 60-68), o catecúmeno passava por longas formações catequéticas, provações, jejuns, exorcismos etc., até que recebesse os três primeiros sacramentos, completando, dessa forma, a chamada “iniciação à vida cristã”. Catecúmeno — Κατέχουμενος — é uma expressão de origem grega, derivada do verbo Κατέχειν (instruir verbalmente, ensinar). Significa, por conseguinte, o processo de formação e instrução voltado para a recepção dos sacramentos da iniciação cristã, sobretudo na Antiguidade até o século V. Esse processo era longo e requeria bastante dedicação e sinceridade do iniciante, que, além de ser acompanhado por um introdutor, era visado por toda a comunidade, sendo obrigado, por isso, a dar testemunho de sua real intenção de pertencer à comunidade cristã.

Na vida religiosa monástica ou mendicante, por sua vez, o aspirante era submetido a um processo formativo inicial, seguido do “ano de provação e silêncio” — chamado de noviciado — e, em seguida, por meio de ritos de passagem, professava os votos solenes, mudando, em muitas ordens religiosas, o próprio nome de batismo, para significar o nascimento de uma nova pessoa, membro efetivo daquela comunidade específica. Todo esse processo acontecia sob a guia de membros considerados aptos e experimentados o suficiente para introduzir o iniciante a adquirir a identidade, valores, costumes, normas etc., dessa específica forma de vida. Chamam-se “ordens mendicantes” aos movimentos religiosos surgidos a partir século XIII, que tinham como objetivo a evangelização e o serviço aos mais pobres, vivenciando, inclusive, a condição de “mendigos” como voto de pobreza voluntária. São exemplos de fundadores desses movimentos São Francisco de Assis (fundador da ordem franciscana) e São Domingos de Gusmão (fundador da ordem dominicana).

No ritual iniciático de “feitura de santo”, no candomblé, por sua vez, o iniciante (abiã) se submete aos ritos de silêncio e reclusão, banhos de sangue de animais, faz oferendas, raspagem do cabelo, recebe marcas no corpo, usa as vestes brancas e colar (kelê), oferta a seu orixá, recebe o nome novo na comunidade etc. Concluídas todas as etapas, o abiã se torna yàwó, isto é, membro efetivo da comunidade, conforme testemunha Maria Manuela (2008). Essa forma ritual, em grande parte oriunda das tradições advindas do lado ocidental do continente africano, por ocasião do comércio transatlântico de escravos, sobretudo dos povos bantos e iorubás, se desenvolveu no Brasil a partir do século XIX, por meio de um processo de sincretismo. Reunidos em terreiros, os praticantes do candomblé, sob a guia dos babalorixás ou ialorixás, praticam seus rituais, tocando tambores, ofertando frutas e sacrifícios aos orixás, a fim de que o iniciado o incorpore.

Mutatis mutandis, em ambos os casos há ritos de passagem — separação, margem e agregação —, de que falava Van Gennep, por meio dos quais o neófito adquire uma nova identidade e um novo “status” dentro da comunidade dos iniciados.

Essa noção de “iniciação”, presente nas tradições culturais e religiosas, vai ser importada para diversas outras formas de organizações sociais e culturais, como a vida acadêmica, na qual também se fazem presentes diversas formas rituais de passagem e de iniciação.

Pibid enquanto processo iniciático

Para além da experiência cultural e religiosa, as instituições acadêmicas também incorporaram e criaram diversos tipos de “rituais de passagem”, por meio dos quais os graduandos vão passando de etapa em etapa até alcançarem a aprovação da comunidade acadêmica. Tanto na rede pública quanto privada de ensino, a educação acontece de maneira processual, mediante provas, demonstrações de aptidões e competências, orientação, introdução na comunidade etc. Não obstante as diferenças nas formas rituais, quando o assunto é “iniciação”, é possível enxergar inúmeras semelhanças entre o sentido do caráter processual-ritual nas culturas, religiões e academia, pois todas essas instâncias da atividade humana são ritmadas por momentos e cerimônias, por meio dos quais o indivíduo vai sendo introduzido em determinado grupo ou modo de vida.

Nesse sentido, quando o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) foi idealizado em 2007 por Jorge Almeida Guimarães, então presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e passou a vigorar a partir de 2010, por meio do Decreto nº 7.219/10 e posteriormente pela Portaria nº 96, de 18 de julho de 2013, ele recebeu, não sem motivos, em sua nomenclatura a palavra “iniciação”. Esse termo remetia à semântica cultural que a expressão carrega, já indicando, com isso, que “iniciação à docência” seria de certo modo uma forma “ritual” de introduzir jovens graduandos na comunidade docente.

O Artigo 2º, da seção I, do capítulo 1º dessa portaria define que o Pibid “tem por finalidade fomentar a iniciação à docência, contribuindo para o aperfeiçoamento da formação de docentes em nível superior e para a melhoria da qualidade da Educação Básica pública brasileira” (Brasil, 2013, p. 1). Esses três aspectos que aparecem nesse artigo, delimitando a finalidade do programa, já demonstram que o principal objetivo é introduzir, iniciar, na prática docente, o graduando, proporcionando-lhe as ferramentas necessárias tanto para sua formação quanto para sua atuação docente, sobretudo na educação básica, seja no nível infantil, fundamental ou médio.

Fomentar a docência, com efeito, consiste basicamente em incentivar sua prática, desde a graduação, tendo em vista contribuir para que o graduando, quando do término de sua formação, já traga consigo uma certa experiência, que certamente lhe tornará mais apto para lidar com os desafios inerentes à prática docente. Com isso, ao contribuir para o aperfeiçoamento da formação dos novos professores, objetiva colaborar para uma real melhoria da educação pública brasileira. O foco principal do programa, por conseguinte, não é, de modo algum, a concessão de bolsas, mas primordialmente a formação dos futuros professores, razão pela qual o graduando é, desde já, inserido nas práticas docentes, cuja finalidade é que ele adquira e se aproprie dos valores, normas, organização e funcionamento do dia a dia da educação.

Quando se fala em “formação”, é preciso ter presente a própria etimologia latina dessa palavra. Em sua raiz, “formatio” significa “forma, configuração” (Dicionário Porto, 2010, p. 194). Cunha (2010, p. 298), por sua vez, diz que “formação” é uma palavra usada desde o século XIV e que deriva de “forma”, cujo significado é “modo sob o qual uma coisa existe ou se manifesta, configuração, feitio, feição exterior”. Com isso, quando o decreto usa tal expressão, é possível entender que o Pibid atua na formação docente no sentido de proporcionar ao licenciando uma certa configuração à docência, um sentir e adentrar nos “moldes”, valores, costumes da vida docente. Todavia, não se quer indicar, de forma alguma, uma padronização de comportamentos e métodos, no sentido de que todos os docentes devem ser iguais e procederem de modo padrão, mas tão somente que a experiência vivenciada esteja dentro de uma prática já estabelecida, na qual o formando se insere e dela tira o proveito necessário para sua própria atuação.

Dessa forma, iniciação à vida docente pressupõe querer identificar-se com esse modo de vida prático-profissional, participando intensamente das atividades desenvolvidas, a fim de que, à medida que experimenta uma organização pedagógica já dada, o graduando vá adquirindo sua própria identidade docente. Tudo isso, evidentemente, postula a figura dos professores supervisores, os quais, conforme a portaria citada, capítulo I, seção I, Art. 4º, inciso V, atuam como “coformadores dos futuros docentes”.

Como no processo de iniciação cultural, mutatis mutandis também na iniciação à docência há esse personagem responsável por introduzir os aspirantes à prática pedagógico-profissional. Ele, uma vez designado — mediante processo seletivo — pela coordenação do programa, deve contribuir com sua prática pedagógica para que o formando tenha contato direto com a cultura escolar, de modo que o estudante adquira, dentro desse contexto, sua própria identidade pedagógica.

No Art. 4.º do referido capítulo, na 2ª seção, quando trata Dos objetivos do Pibid, a portaria enfatiza alguns aspectos imprescindivelmente inerentes à iniciação à docência, quando fala que o programa objetiva “incentivar a formação de docentes”, “contribuir para a valorização do magistério”, “elevar a qualidade da formação inicial dos professores”, “inserir os licenciandos no cotidiano da escola”, “mobilizar os professores como coformadores dos futuros docentes”, “contribuir para a articulação entre teoria e prática” e, por fim, “contribuir para que os estudantes de licenciatura se insiram na cultura escolar do magistério, por meio da apropriação e da reflexão sobre instrumentos, saberes e peculiaridades do trabalho docente”. Todos esses objetivos, com efeito, têm por finalidade tanto enriquecer a experiência do graduando, de modo a contribuir para sua formação docente, quanto enriquecer o próprio ambiente escolar.

Esses pressupostos, por conseguinte, remetem à própria etimologia da palavra “iniciação”, pois, na língua latina, “initiatio” é a junção de dois vocábulos: in, que significa “dentro”, e ire, que significa “ir”, ou seja, é ir para dentro de algo ou de um grupo. Nesse caso, é ir para dentro da cultura escolar e da prática docente, ou seja, conhecer de perto, de dentro, o que é a educação e como ela funciona. Com isso, essa expressão empregada à nomenclatura do Pibid se mostra bastante pertinente, tanto do ponto de vista do empréstimo da semântica cultural quanto da própria prática pedagógica, que não é senão adentrar nos valores e na cultura pedagógica.

O processo de iniciação à docência não se encerra, obviamente, no âmbito escolar, dado que o licenciando, após deixar o Pibid, continua sua formação. Contudo, é possível verificar que, ao longo de toda a sua trajetória acadêmica, ele passa por “ritos de passagem”, os quais lhe impõe, de alguma forma, provações e lhe exige resistência, perseverança, disciplina e demonstrações de sua aptidão e competência. Ao entrar no mundo acadêmico, ele já precisa se submeter a algum tipo de teste, seja o Enem ou algum outro tipo de vestibular. A cada disciplina cursada, o estudante deverá frequentar as aulas e, ao final, submeter-se a algum tipo de avaliação. No final da graduação, ele precisará, por meio de algum Trabalho de Conclusão de Curso, sob a orientação de um professor, dar demonstrações a uma banca de avaliadores de que está apto a receber o diploma de Formação Básica.

Caso o agora formado queira adentrar na comunidade dos “mestres” em determinada área, precisará novamente se submeter à aprovação da comunidade acadêmico-superior e, sob a orientação de um professor-especialista, pesquisar, estudar e construir sua dissertação, que será o instrumento por meio do qual se submeterá mais uma vez a análise da instância superior, e para a qual precisará dar demonstrações plausíveis de sua aptidão a receber o título de mestre e, assim, adentrar nessa comunidade. Isso se dá em dois momentos: na qualificação e na defesa final. Em seguida, desejando adentrar em um grupo ainda mais seleto, o dos doutores, precisará igualmente se submeter aos testes de entrada, a outro longo período de estudos, cumprimento de prazos, orientação de um especialista, banca de qualificação e defesa final, dando novamente e mais rigorosamente, demonstrações de sua capacidade de “ir para dentro” dessa seleta comunidade.

Todos esses momentos da vida acadêmica podem ser analogamente reconhecidos com “ritos de passagem”, por meio dos quais alguém adentra, por meio de evidentes esforços e comprovações, a grupos específicos da “cultura acadêmica”. Dessa forma, as aproximações se tornam plausíveis, de modo a permitir enxergar a semelhança na diferença.

O Pibid e a prática pedagógica na E. E. Benedita de Castro Lima

A prática pedagógica na Escola Estadual Benedita de Castro Lima junto ao Pibid em Filosofia da Universidade Federal de Alagoas demonstrou muitos benefícios e ganhos para a comunidade escolar. Tendo por pressuposto que o objetivo central do Pibid é que o professor-supervisor introduza os licenciandos sob sua responsabilidade na prática docente, a experiência realizada entre os anos de 2023 e 2024 foi enriquecedora tanto para eles quanto para os estudantes da escola.

Dentre as diversas atividades docentes de que os graduandos em Filosofia puderam participar, como microaulas supervisionadas e atividades em grupos com os estudantes, inserção de notas no sistema on-line (Sageal), correção de cadernos, cinema filosófico, café filosófico etc., destacaram-se os “grupos de estudos” de obras clássicas da Filosofia, que eram regidos pelo lema “dos clássicos ao cotidiano”, cujo objetivo central era trazer o que de bom e pertinente se poderia encontrar em tais textos, e como eles poderiam lançar luzes sobre o dia a dia do estudante.

Inicialmente, os oito graduandos em Filosofia da UFAL manifestaram suas preferências quanto aos temas e filósofos com que mais possuíam aptidão e afinidade. Foram elencados: mitologia, escolas helenísticas, Santo Agostinho, Platão, Descartes, Locke, Rousseau e Nietzsche. Em seguida, esses temas foram apresentados às cinco turmas do 3º ano do Ensino Médio. Os estudantes, por sua vez, também escolheram os grupos com que mais se identificaram. Desse modo, começaram os encontros semanais, que incluíam leitura, partilha, apresentação etc. do respectivo texto clássico, na preocupação não apenas de obter um saber teórico, mas também prático, voltado ao cotidiano.

A experiência demonstrou que o graduando que participa de um programa institucional como o Pibid, gozando de autonomia e confiança para, sob o olhar e apoio do supervisor, desenvolver microaulas e liderar grupos de estudos, consegue aprimorar com muita competência e segurança sua prática docente. Ao final do ciclo dos grupos de estudo, em concomitância com o ano letivo, a maioria dos graduandos expressou suas aspirações em seguir com a vida docente.

Pode-se tomar esse exemplo concreto para traçar um paralelo entre a iniciação cultural e a iniciação à docência, conforme citado. Na primeira, há um guia ou mestre iniciado no grupo e na prática que exerce suas funções como membro efetivo e representante de determinada categoria. Ele tem a função de introduzir os jovens aspirantes à vida adulta da comunidade mediante o ensino exortativo e prático. Na segunda forma de iniciação, por seu turno, também há uma espécie de “guia ou mestre”, que é o professor-supervisor, cuja função é introduzir o aspirante na prática e nos valores pertinentes à vida docente, fazendo com que ele perceba os desafios, dificuldades e alegrias da docência, de modo a suscitar no aspirante o desejo de adentrar essa comunidade/categoria específica. A experiência de sala de aula, pelos desafios enfrentados, tem o potencial de suscitar no estudante de licenciatura a disposição de enfrentá-los e, com isso, ir formando sua própria identidade docente. Nesse sentido, o papel do professor-supervisor é de introduzir o estudante na comunidade docente por meio da prática pedagógica.

Considerações finais

Do que foi exposto, fica clara a não ocasionalidade do termo “iniciação” no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), tendo em vista a influência recebida dessa terminologia utilizada nas tradições culturais e religiosas. Foi visto como os processos iniciáticos nas culturas e religiões, com suas fases e ritos sucessivos de separação, margem e agregação, objetivavam tornar o aspirante uma pessoa madura e responsável, capaz de absorver os valores e a identidade do grupo que deseja adentrar.

Em termos culturais, falar em iniciação é trazer à lembrança um processo por vezes longo de formação, disciplina e dedicação a que os jovens, sobretudo do sexo masculino, eram submetidos, a fim de prepara-los para a vida adulta. No caso das tradições religiosas, o processo iniciático era igualmente marcado por ritos de passagem a que os fiéis deveriam se submeter para que, dessa maneira, se tornassem membros pertencentes e identificados com a religião que adotaram.

A identificação, nesses casos, apresentava-se não somente como assimilação a aspectos específicos do grupo ou de lideranças; ao contrário, se caracterizava como um processo de assimilação total da identidade do grupo ou religião, adotando o compromisso de salvaguardar valores e tradições, pelos quais era, geralmente, marcado com cicatrizes que recordavam seu compromisso perene.

Esse termo foi venturosamente adotado na vida acadêmica, da qual programas como o Pibid são representativos. Iniciação à docência implica, outrossim, vivenciar os valores que são caros à educação e aos educadores que os licenciandos-aspirantes desejam adotar. Também nesse processo iniciático, os estudantes passam por “ritos e cerimônias” que tornam sua trajetória acadêmica ritmada e processual, com o objetivo de adentrar a comunidade docente e exercer o magistério com seus pares.

Diante do que foi apresentado, o objetivo desejado não era senão tornar claras as semelhanças e possíveis aproximações entre a iniciação cultural/religiosa e a iniciação à docência, tendo como fio condutor o processo de adentramento, de introdução no grupo ou comunidade.

A experiência de iniciação à docência realizada na E. E. Benedita de Castro Lima serve de exemplo de como o estudante de licenciatura também vive processos de passagem até adentrar inteiramente na comunidade acadêmico-docente. A experiência em sala de aula, à semelhança das provas realizadas pelos aspirantes dos ritos processuais nas culturas e religiões, leva o estudante a ir tomando consciência das implicações, dos valores e das dificuldades da docência.

Referências

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BRASIL. Decreto-lei n.º 7.219/2010, de 24 de junho de 2010. Dispõe sobre o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência. Brasília, 2010. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7219.htm. Acesso em: 3 abr. 2025.

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Publicado em 16 de julho de 2025

Como citar este artigo (ABNT)

COSTA, Cleibson Américo da Silva. Pibid e processo iniciático: aproximações entre iniciação cultural e iniciação à docência. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 26, 16 de julho de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/26/pibid-e-processo-iniciatico-aproximacoes-entre-iniciacao-cultural-e-iniciacao-a-docencia

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