A entalpia como um conceito científico: uma temática de ensino de Química inapropriada para o Ensino Médio
Fabricio Rodrigues Pereira
Doutorando em Química (UFES), mestre em Química (IFES), pós-graduado em Engenharia de Produção, bacharel em Química com Atribuições Tecnológicas, licenciado em Química e professor de Química da SEDU/ES
A abordagem do conceito de entalpia no Ensino Médio apresenta desafios significativos, especialmente quando se considera sua formulação científica na Termodinâmica. Embora presente nos conteúdos de Termoquímica, a entalpia exige conhecimentos prévios sobre energia interna, trabalho e funções de estado, que não são contemplados nos currículos da educação básica (Silva, 2005).
No contexto escolar, esse conceito é frequentemente reduzido a cálculos de variação de entalpia (∆H) e à classificação de reações como endotérmicas ou exotérmicas (Lopes; Rosso, 2020). Essa abordagem, limitada a esses aspectos operacionais, compromete a construção de um entendimento conceitual mais sólido e significativo.
Visão geral da entalpia
Na Termodinâmica, a entalpia é definida como uma função de estado que descreve a variação da energia interna de um sistema sob pressão constante. De acordo com Atkins e Paula (2018), essa variação está diretamente relacionada às trocas de calor entre o sistema e o meio externo, durante um processo ou reação química. Essas trocas de calor podem ocorrer sob forma de absorção ou liberação de energia, caracterizando os processos endotérmicos e exotérmicos, respectivamente (Mortimer et al., 2020). Segundo Lopes e Rosso (2020), tais transformações energéticas têm papel fundamental em diversas áreas das ciências naturais, como na síntese de materiais e no estudo de processos biológicos e ambientais.
Apesar de sua relevância científica, o ensino de entalpia no Ensino Médio apresenta desafios. Guckert (2022) ressalta que, nos livros didáticos, a abordagem costuma se limitar a cálculos simples de ∆H, sem explicações mais profundas sobre o conceito. Atkins e Paula (2018) também alertam para a complexidade da entalpia como grandeza física, cuja compreensão requer domínio prévio de conceitos avançados, como energia interna e trabalho. Para Silva (2005), essa limitação compromete o entendimento significativo do tema, já que o conceito é frequentemente reduzido à ideia de calor absorvido ou liberado, sem considerar sua natureza como função de estado.
Silva (2005) também argumenta que a presença da entalpia no currículo do Ensino Médio não garante uma abordagem adequada. O autor aponta que o conteúdo é muitas vezes apresentado de maneira fragmentada, focando apenas na soma de entalpias parciais para determinar a variação total, o que empobrece sua dimensão conceitual. Essa crítica é reforçada por Silva et al. (2024), que discutem os efeitos da transposição didática. Segundo os autores, a simplificação excessiva de conceitos científicos, como ocorre com a entalpia, pode comprometer a finalidade da alfabetização científica, reduzindo o potencial educativo da disciplina e dificultando a formação de uma visão integrada da ciência.
O conceito de entalpia para além da Educação Básica
Desde o século XVIII, a determinação do calor baseava-se em dispositivos como os calorímetros, desenvolvidos para medir calores específicos e latentes. As quantidades de calor sensível, por sua vez, eram calculadas por meio da equação Q = mc∆T, na qual Q representa o calor, m a massa, c o calor específico e ∆T a variação de temperatura (Brown, 1950).
Com o avanço da Termodinâmica, a partir do século XIX, a teoria do calórico, que entendia o calor como uma substância, passou a ser questionada quanto à sua precisão. Isso gerou novos debates sobre a forma de calcular o calor, levando à proposta de utilizá-lo como resultado de outras grandezas, como energia interna e entalpia (Haase, 1971; Silva, 2005). A definição moderna de entalpia foi formalizada por Gibbs, conforme a seguinte expressão:

Fonte: Baseado em Atkins e Paula (2018) e Silva (2005).
Com isso, é possível calcular o calor trocado durante um processo isobárico a partir da variação de entalpia. No entanto, é importante destacar que essa relação deriva de uma formulação mais ampla da entalpia como função de variáveis de estado, o que torna seu entendimento inacessível para estudantes da educação básica, pois:

Fonte: Baseado em Atkins e Paula (2018) e Silva (2005).
Dessa forma, com a pressão e a composição do sistema mantidas constantes, a entalpia passa a depender exclusivamente da temperatura. Após integrar essa função em um intervalo de temperatura, obtém-se ∆H = C∆T, sendo C a capacidade térmica do sistema, e, quando expressa como C = mc, tem-se novamente a equação Q = mc∆T.
Segundo Atkins e Paula (2018) e Silva (2005), essa dedução resolve parcialmente o problema de calcular o calor com base em propriedades mensuráveis, sem recorrer à teoria do calórico. Embora a equação resultante tenha a mesma forma da equação clássica, o significado físico de “calor específico” é diferente, alinhado agora à abordagem termodinâmica moderna.
Rocha (2019) destaca que os resultados de experimentos antigos, obtidos com base na equação Q = mc∆T, permaneceram válidos, mesmo após a mudança conceitual. Isso permitiu a preservação das tabelas de dados empíricos sem necessidade de retrabalho. Costa (2021) reforça que essa continuidade entre modelos teóricos e medições experimentais é uma das razões pelas quais a entalpia se consolidou como uma ferramenta útil na prática científica.
Sendo assim, compreende-se que a entalpia é uma função termodinâmica essencial para o cálculo do calor envolvido em transformações isobáricas. Contudo, seu uso exige domínio de conceitos matemáticos e físicos avançados, os quais não estão presentes no currículo do Ensino Médio (Silva, 2005; Rocha, 2019; Costa, 2021).
Considerações finais
Para que a compreensão significativa do conceito de entalpia, que é uma função de estado da Termodinâmica, ocorra plenamente, é necessário o domínio de conhecimentos mais avançados, como derivação e integração aplicadas à função da entalpia, conteúdos que não fazem parte do currículo do Ensino Médio. Além disso, exige-se familiaridade com conceitos físicos aprofundados, como trabalho, energia interna e condições isobáricas (pressão constante), o que torna sua abordagem conceitual inapropriada para a Educação Básica.
É importante destacar, no entanto, que os estudantes do Ensino Médio são perfeitamente capazes de compreender fenômenos como absorção e liberação de calor, caracterizados como processos endotérmicos e exotérmicos. Contudo, a formulação científica da entalpia como função de estado transcende essa abordagem fenomenológica, pois pressupõe articulações conceituais e matemáticas não previstas na formação básica. Assim, a inserção desse conteúdo nos currículos escolares requer uma reflexão crítica sobre os objetivos da alfabetização científica e os limites pedagógicos do ensino de Química nesse nível de escolarização.
Referências
ATKINS, P. W.; PAULA, J. Termodinâmica química: uma abordagem moderna para químicos e engenheiros. 10ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2018.
BROWN, S. C. The caloric theory of heat. American Journal of Physics, v. 18, p. 367-373, 1950.
COSTA, F. C. Parâmetros cinéticos e entalpia de reação para pirólise e oxidação de combustíveis florestais utilizando-se algoritmos genéticos. 2021. 66f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Mecânica) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
GUCKERT, F. E. Análise de atividades experimentais voltadas ao ensino de Termoquímica propostas pelos livros didáticos. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 43, 22 de novembro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/40/analise-de-atividades-experimentais-voltadas-ao-ensino-de-termoquimica-propostas-pelos-livros-didaticos. Acesso em: 15 abr. 2024.
HAASE, R. Survey of fundamental laws. In: JOST, W. (Ed.). Physical chemistry: An advanced treatise. Nova Iorque: Academic Press, 1971.
LOPES, S.; ROSSO, S. Ciências da Natureza: manual do professor. São Paulo: Moderna, 2020.
MORTIMER, E. et al. Matéria, energia e vida: uma abordagem interdisciplinar; o mundo atual: questões sociocientíficas. São Paulo: Scipione, 2020.
ROCHA, N. L. Cálculos teóricos de entalpia de formação através do método. 2019. 82f. Dissertação (Mestrado em Química) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.
SILVA, J. L. P. B. Por que não estudar entalpia no Ensino Médio. Química Nova na Escola, nº 22, p. 22-25, novembro de 2005. Disponível em: http://qnesc.sbq.org.br/online/qnesc22/a04.pdf. Acesso em: 15 abr. 2024.
SILVA, R. J. C. et al. Desmistificando as novas energias do século XXI: uma temática utilizando metodologia ativa no ensino de Química. Revista Ifes Ciências, v. 10, nº 2. p. 1-8, março de 2024. Disponível em: https://ojs.ifes.edu.br/index.php/ric/article/view/2468/1173. Acesso em: 16 abr. 2024.
Publicado em 23 de julho de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
PEREIRA, Fabrício Rodrigues. A entalpia como um conceito científico: uma temática de ensino de Química inapropriada para o Ensino Médio. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 27, 23 de julho de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/27/a-entalpia-como-um-conceito-cientifico-uma-tematica-de-ensino-de-quimica-inapropriada-para-o-ensino-medio
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