A literatura e a construção da identidade: das brenhas do regionalismo brasileiro à África portuguesa
Emerson Araujo Rodrigues
Mestrando em Educação (Ivy Enber Christian University), graduado em Letras (Unesa), especialista em Metodologia do Ensino de Língua Inglesa (Faculdade de Educação São Luís) e Literatura Contemporânea (Faculdade de Educação São Luís), professor de Língua Inglesa das redes municipais de Rio das Ostras/RJ e Cabo Frio/RJ
A literatura perpassa gerações, porém em sua época é capaz de retratá-la, denunciando a política, os estilos de vida, a sociedade, as relações humanas e as crenças, estabelecendo, assim, uma criação de identidades das personagens das obras por meio da identidade social de seu tempo. Embora toda realidade social encontrada em um texto ficcional seja uma realidade que não tem compromisso com a veracidade dos acontecimentos, por se tratar de verossimilhança, essa, por sua vez, nos leva ao encontro daquilo que seria possível na sociedade em que o autor se encontra inserido, atuante e imbuído dos pensamentos de sua época.
Para Sevcenko (1999), a produção da literatura não se desvincula do processo histórico e do contexto social, estabelecendo com ele uma relação de afirmação, negação e confrontação. Logo, o diálogo entre o momento histórico e social e a literatura se torna uma ferramenta de compreensão e crítica na formação e no estabelecimento da identidade de um determinado povo, por meio da linguagem e do imaginário, dentro de uma proposta lacaniana, em que no produto literário há “uma relação dual, um desdobramento em espelho, como uma posição imediata entre a consciência, na procura de si mesmo” (Lacan, 1985, p. 68), em que ocorre um processo de reconhecimento de si no outro fictício.
Compreendendo a produção literária como um produto social e de identidade de um determinado povo, bem como fonte histórica para compreensão deste, este artigo se estrutura pela revisão de estudos bibliográficos e de obras de alguns autores brasileiros e da África portuguesa contemporânea.
Das brenhas do regionalismo brasileiro
Ao falar do regionalismo brasileiro, faz-se necessário entender que ele representa as partes de um todo, dada a dimensão continental do Brasil. Nossa cultura é formada de vários blocos culturais que, na visão de Coutinho e Galante (2001), aos estudos literários não interessa a divisão regional geográfica:
O essencial nessa literatura regional é que não se põe em xeque a unidade do país [...]. O regionalismo é um conjunto de retalhos que arma o todo nacional. É a variedade que se entremostra na unidade, na identidade de espírito, de sentimentos, de língua, de costumes, de religião (Coutinho; Galante, 2001).
A produção literária regionalista no Brasil surge como tentativa de constituição de uma produção que tenta se desvincular dos moldes portugueses, na busca de uma identidade cultural própria e no reconhecimento do ser brasileiro. Em Candido (1967), vamos encontrar o seguinte esclarecimento: “o romance brasileiro nasceu regionalista e de costumes; ou melhor, pendeu desde cedo para a descrição dos tipos humanos e formas de vida social”, em uma produção que separa preocupação social e elaboração estética. Tal literatura regionalista se inicia e se consagra como uma literatura de crítica social e de denúncia do flagelo nordestino, com destaque para as secas que castigam aquela geografia.
Nas palavras de Chiappini (1995), a história do regionalismo brasileiro é uma “transição difícil nos reajustes sucessivos da nossa economia aos avanços do capitalismo mundial”, que se trama de forma específica e encontra na literatura um solo que tende a recontar esse processo ora como ascensão, ora como decadência, dependendo de que lado esteja: da modernização ou da ruína.
É de grande importância entender o regionalismo como movimento político e cultural, e que sua literatura se consolida como “um instrumento de afirmação nacional, crítica social e investigação da dimensão psicológica do habitante” (Santini, 2011). Como já dito, ao construir a história e a identidade social de seu povo, o autor também denuncia suas angústias e seus flagelos. Um outro exemplo a ser dado nesse âmbito do regionalismo brasileiro é Graciliano Ramos, que expressou uma realidade presente nos momentos mais turbulentos e trágicos do século XX: o período que compreende o Entreguerras e o imediato pós-Segunda Guerra Mundial. E podemos situar essa realidade geograficamente no Nordeste brasileiro.
Para dar conta de uma realidade social ressequida, marcada pela injustiça social, pela falta de realização individual e pela pobreza, Graciliano Ramos faz uso de uma linguagem de expressão seca, precisa e sem ornamentos. Para exemplificar tais marcas de expressão, citamos sua obra Vidas secas. A perspectiva do livro é toda dada a partir de uma família miserável de retirantes da seca que assolava Alagoas. Uma família cuja formação cultural e experiência brutalizada de vida mal lhe permitiam a expressão verbal. Por meio dessa gente quase sem voz e expressão brutalizada, em uma obra em que a personagem mais humanizada é a cadela Baleia, podemos afirmar que o centro da obra não é a seca. Apesar de ser com ela que o romance se inicia e se encerra, Graciliano fala “de uma outra força tão devastadora quanto a seca e seus desvalidos: o injusto sistema social brasileiro” (Siqueira, 2009).
A construção de sujeito na África de língua portuguesa
Segundo o linguista Todorov (2009), “o objeto da literatura é a própria condição humana; aquele que lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano”. E assim o é quando nos voltamos para a literatura africana de língua portuguesa: nos tornamos conhecedores do outro, de suas histórias, suas mazelas e suas lutas pela independência da metrópole e pela construção de uma identidade que rompa com as opressões e as descaracterizações causadas pelo colono português.
Como qualquer literatura, a literatura africana de língua portuguesa é um produto da vida social e surge em contextos específicos, sempre vinculados aos processos de modernização e de urbanização. Na África, como decorrência do processo de colonização, “a literatura parece ter assumido uma posição especial: ela teria ocupado o lugar da antropologia, produzindo etnografias sobre o que seria o continente e seus habitantes” (Soares, 2011). Trata-se de uma literatura problematizadora e produtora de identidade, que dialoga com a “tradição”, a “literatura colonial” e com o seu tempo, uma literatura de luta e de conflito.
Os processos de independência nos países africanos colonizados por Portugal iniciaram-se nos meios urbanos intelectualizados. A literatura teve importante papel, tendo sido a primeira arma de combate na luta anticolonial. E autores e poetas desse momento tomaram a literatura brasileira regionalista como exemplo a ser seguido.
As literaturas africanas de língua portuguesa contam com termos, expressões e provérbios oriundos das línguas dos grupos étnicos em Moçambique e Angola, e do uso da língua portuguesa e crioula na Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. Por meio dessas inserções, autores como Agostinho Neto, José Craveirinha, José Luandino Vieira e Mia Couto, entre outros, promovem uma renovação literária africana por meio da angolanidade, moçambicanidade, cabo-verdianidade e são-tomesidade. Esse movimento buscou, em geral, por meio da tradição da oralidade dos griôs e pela renovação da Língua Portuguesa com a inserção de características linguísticas africanas, construir uma identidade de seu povo através da literatura.
Conclusão
Tendo em vista os aspectos mencionados, podemos compreender que a literatura, como outras produções culturais, é um produto social a partir do qual podemos entender a identidade nacional dentro de determinado período. Concluímos também que uma análise das literaturas brasileira e africanas de língua portuguesa mostra o empenho de seus autores em construir uma identidade nacional que rompesse com os moldes portugueses, inserindo elementos da tradição, da língua, da regionalidade e da gente de sua nação.
Referências
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
CHIAPPINI, Lígia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1995. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1989/1128. Acesso em: 20 mar. 2020.
COUTINHO, Afrânio; GALANTE, José. Enciclopédia de Literatura Brasileira. São Paulo: Global; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2001.
SANT’ANNA, Afonso Romano de. O canibalismo amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SANTINI, Juliana. A formação da literatura brasileira e o regionalismo. O Eixo e a Roda, 2011. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/3364. Acesso em: 03 mar. 2020.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SIQUEIRA, José Carlos et al. Literatura brasileira contemporânea. Curitiba: Iesde Brasil, 2009.
SOARES, Eliane Veras. Literatura e estruturas de sentimentos: fluxos entre Brasil e África. Sociedade e Estado, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922011000200006&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 09 mar. 2020.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Moreira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
Publicado em 23 de julho de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
RODRIGUES, Emerson Araujo. A literatura e a construção da identidade: das brenhas do regionalismo brasileiro à África portuguesa. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 27, 23 de julho de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/27/a-literatura-e-a-construcao-da-identidade-das-brenhas-do-regionalismo-brasileiro-a-africa-portuguesa
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