Educação étnico-racial: análise dos livros didáticos adotados pelo Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana, de Mossoró/RN
Josias Alves de Góis
Mestrando em Ciências da Educação (World University Ecumenical), técnico de Nível Superior da UERN
Marília Gabriela Nascimento França
Mestranda em Ciências da Educação (World University Ecumenical), técnica de Nível Superior da UERN
Thaísa Cristiany de Carvalho Costa
Mestranda em Ciências da Educação (World University Ecumenical), técnica de Nível Superior da UERN
O cenário educacional brasileiro tem sido alvo de constantes transformações, refletindo os desafios e avanços socioculturais da sociedade. Uma dessas mudanças ocorreu há duas décadas, em janeiro de 2003, quando foi promulgada a Lei nº 10.639, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nas instituições de Ensino Fundamental e Médio do país. Ao completar vinte anos desde sua promulgação, essa lei representa não apenas um marco legislativo, mas também um convite para avaliar a efetividade de suas diretrizes e sua inserção prática no contexto escolar.
A obrigatoriedade da abordagem das relações étnico-raciais nas escolas representou um importante passo, pelo menos no aspecto normativo, em direção à valorização da diversidade cultural do Brasil e à correção das históricas assimetrias sociais e educacionais que afetaram a população afrodescendente. Por meio dessa lei, o currículo escolar deveria ser enriquecido com conteúdos que explorassem a contribuição dos povos africanos e de seus descendentes para a formação do país, assim como os reflexos culturais e sociais dessa história compartilhada pela população negra.
No entanto, a mera existência de uma legislação não garante sua eficácia na aplicação das práticas educacionais cotidianas. Diante disso, essa pesquisa de campo torna-se relevante para investigar o grau de efetividade e eficácia da implementação e impacto das diretrizes da Lei nº 10.639/03. Nesse sentido, este estudo adota como campo de pesquisa o maior colégio de Mossoró/RN, em número de alunos matriculados, o Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana (CEIPEV), para examinar a representação da contribuição histórica dos afro-brasileiros nos materiais didáticos desta instituição, especialmente nas unidades curriculares de História do Ensino Fundamental II.
A seguir, serão apresentados a fundamentação teórica que embasa a pesquisa, a metodologia adotada para a coleta e análise de dados, os resultados obtidos e as conclusões que emergem a partir dessa análise. Por meio desse estudo, almeja-se enriquecer o debate sobre a eficácia das políticas educacionais voltadas para a promoção da diversidade cultural e da igualdade racial em nosso sistema educacional.
Da inferiorização colonial à luta pela eficácia da Lei nº 10.639/03
Ao examinarmos as transformações desencadeadas pela promulgação da Lei Áurea em maio de 1888, observamos que essas mudanças se mostraram insuficientes do ponto de vista social e político para a população negra. Como resultado, o processo de dominação sobre pessoas negras permaneceu latente, com a intenção oculta de preservar o domínio dos grupos detentores do poder sobre os subjugados (Souza; Júnior, 2019)
No contexto da redemocratização política do Brasil, conforme apontado por Souza e Júnior (2019), emerge a criação de ações afirmativas dentro da esfera social, resultando na formulação de políticas públicas e no estabelecimento de direitos para a população negra. Entretanto, esse período se caracteriza pelo impulso do neoliberalismo, gerando mudanças estruturais no processo de produção capitalista, o que culmina no desenvolvimento da matriz econômica em detrimento das prerrogativas constitucionais.
Concolato (2014) sustenta que, no contexto do capitalismo, mantém-se a polarização socioeconômica entre as classes sociais, configurando a continuidade de um processo histórico de exclusão iniciado ainda no período colonial com a exploração dos povos indígenas e intensificado com a escravização de africanos. Essa lógica de exclusão foi sustentada por uma estrutura social baseada no latifúndio, no patriarcalismo e na prática do favor, elementos que moldaram relações sociais hierarquizadas e autoritárias. Mesmo após a abolição, o Estado brasileiro não garantiu mecanismos de inclusão para a população negra, mantendo-a à margem do acesso à terra, à educação e ao trabalho digno.
Apesar de ocorrerem algumas mudanças após a abolição da escravatura, o panorama de domínio político e econômico permanecia inalterado, com os grupos detentores do poder mantendo sua influência na dinâmica social e sujeitando as pessoas negras a um ciclo de violência e marginalização (Souza; Júnior, 2019).
Quijano (2005) argumenta que a escravidão foi instituída como um mecanismo funcional ao capitalismo, articulando-se à lógica de produção de mercadorias voltadas ao mercado mundial, o que consolidou uma hierarquia racial que marginalizou os povos africanos e seus descendentes. Esse processo histórico estruturou uma ordem social excludente, que institucionalizou o privilégio das elites e perpetuou relações de poder sobre as classes dominadas. A segmentação da divisão do trabalho não apenas legitimou a exploração econômica, mas estabeleceu uma matriz de dominação que persiste nas formas contemporâneas do racismo.
Essa estrutura segue operando como engrenagem da reprodução social capitalista, em especial na conformação do Estado brasileiro, onde os interesses das elites se impõem cultural e normativamente como padrões universais, naturalizando desigualdades históricas.
No tocante a esses grupos hegemônicos, Souza e Júnior (2019) tecem suas considerações:
É possível perceber que, nas democracias neoliberais, o Estado está a serviço dos interesses dos grupos dominantes e do capital, mantendo uma democracia restrita e uma ordem autocrática que institui a violência estatal, com o fortalecimento de discursos e práticas autoritárias contra os segmentos vulneráveis (Souza; Júnior, 2019, p. 8).
As estratégias e visões adotadas pelos grupos dominantes exercem influência direta sobre as políticas estatais, um exemplo notável são as políticas de segurança pública implementadas pelo Estado.
Conforme enfatizado por Souza e Júnior (2019), essa relação estabelece um elo crucial entre a dinâmica do poder e as ações governamentais: “as ações em curso pelas agências estatais não têm garantido resultados eficazes, e que os dados apresentados evidenciam um aumento da letalidade da juventude negra” (Souza; Júnior, 2019, p. 10).
A geração de desigualdades, conforme delineado por Souza e Cipriano (2020), emerge da ação humana em uma constante dinâmica de força, dominação e, por vezes, exploração. Diante desse cenário, as batalhas pela igualdade devem perdurar, considerando que as raízes da desigualdade no Brasil remontam aos tempos da colonização.
Dessas disparidades emergem os movimentos em prol da aquisição e garantia de direitos, nos quais se ergue um instrumento essencial: as ações afirmativas. Com efeito, como apontado, o processo de redemocratização desempenhou um papel relevante na concepção e adoção de tais medidas, especialmente no que diz respeito à população negra. Contudo, é nos Estados Unidos, a partir de 1961, que se registra a origem das ações afirmativas, exarada nos contratos do Governo Federal que proibiam a discriminação racial, religiosa ou nacional. No final dos anos 1960, a expressão "ação afirmativa" ganhou definição precisa, dirigindo-se à análise das raízes dos conflitos raciais vivenciados nas metrópoles norte-americanas, inicialmente focalizando o mercado de trabalho e, mais adiante, estendendo-se ao âmbito universitário (Souza; Cipriano, 2020).
Mas quando efetivamente ocorre uma ação afirmativa? Segundo a perspectiva de Souza e Cipriano (2020), tal evento transcorre quando indivíduos ou instituições empreendem ações positivas visando à promoção da igualdade entre diferentes grupos, com o intuito de inclusão de pessoas ou coletivos notoriamente discriminados. Também se enquadram como ações afirmativas diversas as práticas que buscam moldes distintos, como exemplificado pelas políticas de cotas.
As ações afirmativas assumem o papel de corrigir um panorama socioeconômico e cultural que marginaliza parcelas vulneráveis da sociedade, implicando o reconhecimento da necessidade de apoio, a fim de equiparar as oportunidades. Dessa maneira, buscam mitigar ou reparar situações oriundas de qualquer forma de discriminação (Souza; Cipriano, 2020).
Como uma das culminâncias das lutas dos grupos da sociedade civil pela igualdade racial, podemos destacar, entre as ações afirmativas implementadas pelo Estado federativo, a promulgação da Lei nº 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira".
Nesse contexto, como observado por Oliveira e Silva (2017), a efetividade de uma lei reside na sua capacidade de ser aplicada a todos, sem exceção, enquanto sua eficácia é determinada pela sua capacidade de atingir os objetivos a que se propõe. Dessa forma, a discussão acerca da efetividade e eficácia da implementação da Lei n° 10.639/03 assume relevância fundamental. Essa lei, que incide sobre os currículos de escolas públicas e privadas, estabelece um marco legal destinado a contrapor a predominância do conhecimento eurocêntrico, historicamente valorizado e perpetuado pela elite brasileira nos currículos escolares. Sua efetividade se manifesta ao criar alicerces jurídicos para que instituições de ensino, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, empreendam a desconstrução do conhecimento eurocêntrico e do racismo institucional presentes nos currículos educacionais brasileiros.
No que concerne à eficácia da Lei nº 10.639, os autores citados ainda apontam que ela se manifesta na transformação das práticas discursivas e na descolonização dos currículos, tanto na Educação Básica quanto no Ensino Superior, no que diz respeito às narrativas sobre a África e os afro-brasileiros. A importância suscitada pela promulgação da lei está centrada no fato de que o discurso e a ação, nos quais as jornadas política e jurídica surgem como significados de memória social, impactam as instituições sociais que legitimam significados e práticas sociais racistas.
O racismo, conforme destacado por Van Dijk (2008), não é uma característica inata, mas sim um fenômeno aprendido por meio de práticas discursivas que podem ser desconstruídas, questionadas e superadas por meio do próprio discurso. Nesse sentido, embora a legislação por si só não promova transformações imediatas, ela desempenha um papel crucial ao fomentar mudanças por meio dos conflitos e debates gerados na prática educacional que busca regulamentar. Assim, a norma coercitiva contribui para a democratização dos currículos, incentivando uma educação étnico-racial que valorize a diversidade e combata desigualdades.
Considerando que a Lei n° 10.639/03 é resultado de um processo de negociação de significados entre os movimentos sociais e a tradição jurídica brasileira, ao mesmo tempo que determina a inclusão de conteúdos historicamente marginalizados pelo currículo dominado por conhecimentos eurocêntricos, é fundamental observar e demandar, nos currículos escolares, a transformação de práticas e a descolonização dos conteúdos relacionados à África e aos afro-brasileiros. Para efetuar tal mudança nas representações e práticas, torna-se necessário questionar os locais de poder e examinar a relação entre direitos e privilégios arraigada em nossa cultura política e educacional, nas escolas e nas próprias universidades (Oliveira; Silva, 2017). Conforme preconizado por Eugênio, Santos e Souza (2017), as instituições governamentais, constituídas por indivíduos que moldam políticas curriculares, são as responsáveis por dar consideração, em maior ou menor grau, às ações e políticas, ressaltando assim a importância da vigilância exercida pelos movimentos sociais para assegurar a manutenção ou implementação dos direitos que lhes assistem.
Eugênio, Santos e Souza (2017) identificam duas razões que dificultam a implementação da Lei n° 10.639/03 nos currículos escolares. Uma delas está relacionada ao mito da democracia racial, considerado o símbolo integrador mais impactante, criado para desmobilizar a população negra e legitimar as desigualdades raciais que persistem desde o fim da escravidão. A segunda razão reside na crença de uma parcela significativa dos docentes na inexistência do racismo.
Para Gomes (2012), os dilemas curriculares enfrentados pelas escolas na inclusão da temática das relações étnico-raciais, impulsionada pela Lei nº 10.639/03, enriquecem o debate educacional. Essa incorporação demanda a articulação de saberes diversos, provenientes de sujeitos sociais historicamente invisibilizados ou desconsiderados como produtores de conhecimento. Ao valorizar a pluralidade desses saberes, emerge o desafio de descolonizar os currículos, incentivando a escola a adotar práticas e conteúdos que favoreçam uma educação emancipatória.
Um ponto de destaque na discussão e reformulação dos currículos escolares é o delineado por Canen (2000, p. 135):
Uma educação multicultural voltada para a incorporação da diversidade cultural no cotidiano pedagógico tem emergido em debates e discussões nacionais e internacionais, buscando-se questionar pressupostos teóricos e implicações pedagógico-curriculares de uma educação voltada à valorização das identidades múltiplas no âmbito da educação formal. No Brasil, o debate assume especial relevância no contexto da elaboração de uma proposta curricular – os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (Brasil, 1997) –, que inclui "pluralidade cultural" como um dos temas a serem trabalhados.
Metodologia
A metodologia proposta baseia-se na análise detalhada do material didático-pedagógico e na contextualização desse material em relação às diretrizes curriculares e à legislação vigente. Ela permite uma abordagem sistemática da pesquisa documental, explorando a interseção entre a educação étnico-racial e a prática educacional no Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana.
De acordo com Gil (2008), a pesquisa documental e bibliográfica possibilita ao pesquisador mergulhar em fontes escritas, muitas vezes guardiãs de informações valiosas e conexões relevantes. Por meio da análise criteriosa dessas fontes, é possível reconstruir narrativas, desvelar contextos e enriquecer o conhecimento com as vozes do passado e do presente.
Será feita análise bibliográfica e documental no material didático da escola, com fins de realizar investigação sobre a Lei nº 10.639/03, visando identificar, no locus pesquisado, as congruências e dissonâncias entre o material analisado e as diretrizes legais para educação étnico-racial no contexto relacionado ao ensino de história.
Realizaremos uma análise minuciosa do conteúdo dos livros didáticos de História dos anos finais do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano), identificando como o tema História e Cultura Afro-Brasileira é abordado. Serão avaliadas a presença de informações precisas, a contextualização adequada, o respeito à diversidade cultural, a desconstrução de estereótipos raciais e a comparação desse conteúdo com os preceitos da Lei nº 10.639/03 para a educação étnico-racial, identificando as orientações e possíveis desvios.
A problemática a ser investigada é: até que ponto o livro didático de História adotado pelo Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana atende aos requisitos da Lei nº 10.639/2003 para a educação étnico-racial, promovendo uma abordagem efetiva da História e Cultura Afro-Brasileira, a desconstrução de estereótipos raciais, a sensibilização para a igualdade racial e o combate ao racismo?
Como eixo central, avalia-se a profundidade e o tratamento crítico conferidos às relações étnico-raciais no livro de História destinados aos alunos do Ensino Fundamental II do lócus da pesquisa, em relação ao cumprimento da Lei nº 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nas instituições de Ensino Fundamental e Médio do país. Este artigo busca avaliar como o material aborda e integra os conteúdos relacionados à educação étnico-racial, identificando lacunas, acertos, desafios e contribuições para a promoção da igualdade racial e o combate ao racismo.
Os objetivos específicos desta pesquisa incluem analisar as abordagens presentes nos livros didáticos, em específico os de História adotados pelo Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana, buscando compreender se a temática proposta pela Lei n° 10.639/03 é tratada de maneira aprofundada e substancial ou repete grandes narrativas do passado, com evidente hierarquização dos conhecimentos curriculares, valorizando, sobremaneira, os conteúdos referentes à visão de mundo europeizada (Eugênio; Souza; Santos, 2017).
Pretende-se investigar se os conteúdos apresentam uma abordagem pertinente e contextualizada das informações transmitidas aos estudantes, observando se há uma perspectiva crítica e respeitosa, que contribui para a construção de uma consciência crítica sobre as questões étnico-raciais.
Dessa forma, este estudo busca contribuir para a avaliação crítica da inserção das relações étnico-raciais no ambiente educacional, oferecendo análise e resultados relevantes para aprimorar a prática pedagógica e promover uma educação mais inclusiva e diversa. Por último, verificar se o material pedagógico apresenta uma visão abrangente e inclusiva da História do Brasil, considerando a participação e contribuições dos povos africanos e afrodescendentes em diversos aspectos da formação do país, como política, economia, sociedade e cultura.
O campo da pesquisa é o Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana, uma instituição de ensino que adota o material pedagógico a ser analisado. O centro educacional representa um ambiente real, em que as práticas de ensino e o uso de materiais didáticos podem impactar diretamente a formação dos alunos em relação à educação étnico-racial, haja vista ser o maior colégio em número de alunos matriculados no município de Mossoró/RN.
O corpus da análise, por sua vez, é composto por quatro livros didáticos selecionados de acordo com a aprovação no catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM), encarregado de avaliar e fornecer de maneira consistente, periódica e sem custos, obras didáticas, pedagógicas, literárias e outros recursos de apoio à prática educativa para as escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio. Todos os quatros livros são da Editora Moderna, e foram selecionados para utilização em sala de aula no período de 2020 a 2023, seguindo, portanto, a política do ciclo das coleções de livros didáticos que é de quatro anos.
A decisão de limitar o conjunto de dados ocorreu com base na suposição de que, embora os diversos livros didáticos de História adotados nas escolas públicas do Brasil tenham algumas características distintas, todos eles se enquadraram em um único modelo, que se fundamenta em uma visão histórica tradicional e eurocêntrica.
Resultados e discussão
Estudar História: das origens do homem à era digital é um livro didático em quatro volumes, escrito por Patrícia Ramos Braick e Anna Barreto e voltado para estudantes do Ensino Fundamental. A edição tem como objetivo abordar a história da humanidade desde as suas origens até a era digital, oferecendo uma visão ampla e contextualizada dos acontecimentos ao longo dos tempos.
Constituindo nosso objeto de pesquisa e levando em consideração os objetivos já mencionados, procedeu-se à análise do livro didático do sexto ano da disciplina de História.
Inicialmente, o Capítulo 2 aborda a África como berço da humanidade, com o surgimento dos primeiros hominídeos (p. 38). Em seguida, a temática sobre a África volta a ser tratada no Capítulo 10, na Unidade IV, ao abordar a África e a Europa medieval, com ênfase na expansão do Islã e nos reinos africanos. Em uma página, inclusive com a utilização da imagem do Juízo Final, apresenta-se a temática do preconceito e da ignorância sobre a África, utilizando, para isso, quatro parágrafos. O capítulo prossegue apresentando as fontes para o estudo da África, destacando o papel dos narradores orais e o uso dos grilhões como forma de preservação da história ao longo das gerações. Apresenta de forma sucinta a relevância do território e da demografia africanos, e destaca a expansão do Islã no continente. Apesar de o Capítulo 10 dedicar as oito primeiras páginas ao tema do Islamismo, há uma leitura complementar que reforça a importância do comércio para o surgimento de importantes reinos do Sahel. Destina-se uma página, a 215, para tratar da escravidão na África, destacando a influência islâmica nesse processo. Observa-se, no entanto, a ausência de menção ao processo de crescimento do Brasil impulsionado pela utilização da escravidão em nosso país.
Por sua vez, o livro do 7º ano abarca o início da modernidade, passando pela expansão marítima europeia até o surgimento do mercantilismo como política econômica dominante nos estados europeus. Dentro dessa complexa trama histórica, é no Capítulo 4, Unidade II, que encontramos uma breve menção aos principais grupos étnicos que compõem a população da África Ocidental. A exploração do trabalho desempenhado pelos africanos capturados, escravizados e transportados para as Américas, notadamente em plantações de cana-de-açúcar, algodão e na extração de metais preciosos, também é tangencialmente discutida nos Capítulos 6 e 10, ambos da Unidade IV.
No entanto, destaca-se o Capítulo 8, que é singular em sua dedicação exclusiva à cultura afro-brasileira. Este capítulo investiga as dinâmicas sociais, relações e costumes estabelecidos pela população afro-brasileira no contexto escravista. Embora haja apenas uma breve menção às tradições, costumes e conhecimentos das sociedades africanas que se enraizaram na cultura brasileira, como vocabulário, culinária, música e religião, o livro também oferece em sua leitura complementar, página 148, uma oportunidade de reflexão sobre a escravidão e as relações de gênero, por meio da figura da ama de leite negra.
No livro do 8º ano, encontramos menções breves à situação da população negra no Brasil Império, nos Capítulos 6 e 7. Essas referências evidenciam que, mesmo após a abolição da escravatura no Brasil em 1888, a população negra continuou a ser marginalizada ao longo do século.
O Capítulo 10 é dedicado aos Estados Unidos, palco de um extenso período de segregação racial conhecido como leis de Jim Crow, que perdurou até o Movimento pelos Direitos Civis, nas décadas de 1950 e 1960. Na leitura complementar desse capítulo, destaca-se a discussão sobre o nascimento do blues como símbolo cultural e de resistência negra. Por fim, no Capítulo 11, Unidade IV, ao abordar o neocolonialismo, o continente africano é descrito como território dividido e ocupado pelas potências europeias, que justificavam sua intervenção com a promessa de disseminar os avanços da civilização ocidental, incluindo os progressos tecnológicos e os ideais civilizatórios.
No livro do 9º ano, a história e a cultura africana são mencionadas em apenas dois capítulos, dos quais um se concentra no cotidiano e na cultura na Primeira República. Nesse capítulo, o livro inicia discutindo o samba de roda, uma expressão cultural de grande significância trazida pelos povos africanos ao Brasil, principalmente enraizada na Bahia, onde incorpora elementos da cultura regional e se torna patrimônio imaterial do país. No entanto, o livro restringe-se consideravelmente e não explora adequadamente esse tema, deixando de demonstrar a real importância da cultura africana e o contexto em que foi perpetuada na sociedade brasileira.
Em um ponto posterior, o livro destaca o lugar dos negros na Primeira República, abordando de forma concisa que, mesmo após a libertação dos escravos, a população negra permanecia marginalizada. Também menciona a Revolta da Chibata, embora de maneira breve. Posteriormente, o livro aborda os movimentos sociais e a imprensa negra, reconhecendo os papéis cruciais que desempenharam na luta dos afrodescendentes por igualdade de direitos, reconhecimento e justiça social, particularmente durante períodos de opressão racial e discriminação, como a era pós-abolição e o movimento pelos direitos civis. Nesse ponto, o livro destaca e enaltece a relevância desses elementos.
Por fim, o livro explora a cultura afro-brasileira como uma forma de resistência. O livro oferece um relato breve sobre como essa cultura desempenhou um papel fundamental ao longo da história do Brasil, permitindo aos afrodescendentes preservarem suas identidades, enfrentarem adversidades e lutarem por igualdade. A música e a dança, incluindo gêneros como o samba, são reconhecidas como poderosos veículos de expressão cultural e resistência. As religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, são mencionadas como formas importantes de resistência cultural, proporcionando uma base para a organização comunitária e a solidariedade.
Em resumo, o livro aborda a cultura afro-brasileira e sua resistência de forma limitada, mencionando-a em alguns pontos-chave. No entanto, sua abordagem superficial deixa de explorar plenamente a importância da cultura africana na formação da identidade brasileira e na luta por igualdade e justiça social.
Considerações finais
No transcurso desta pesquisa, dedicamo-nos a uma análise do corpus documental, a fim de compreender como a temática proposta pela Lei n° 10.639/03, referente à História e Cultura Afro-Brasileira, é abordada nos livros didáticos destinados aos alunos do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental.
Em termos quantitativos, vale mencionar, verificamos em nossa análise apenas dois capítulos dedicados, em sua totalidade, à história e à cultura africana e afro-brasileira. Em outros capítulos, a temática é apresentada de forma pontual e bastante breve. Apesar disso, percebemos que, embora a abordagem tangencial predominante, há que se evidenciar indícios da importância da legislação como fomento para despertar discussões sobre a temática em questão.
A nossa análise revelou a presença de um caminho a ser percorrido no sentido de aprofundar e expandir a inserção da História e Cultura Afro-Brasileira nos materiais didáticos. A despeito dessa constatação, destacamos que a promulgação da Lei 10.639/03 desempenha um papel crucial ao sinalizar a direção na qual a educação deve se movimentar. É imperativo que esse marco legal inspire as editoras a abordarem de maneira mais profunda e enriquecedora os temas concernentes às relações étnico-raciais em suas edições.
Nesse contexto, torna-se essencial que os grupos que defendem políticas antirracistas estejam ativamente envolvidos nesse processo. Por meio de uma colaboração ativa, esses grupos podem desempenhar um papel fundamental na sugestão de melhorias para aprimorar a abordagem das temáticas relacionadas à diversidade étnica e cultural nos livros didáticos. Esse diálogo construtivo pode contribuir para que as editoras revejam e adaptem seus conteúdos, promovendo uma educação mais inclusiva e representativa.
Em suma, a análise de nosso corpus de pesquisa evidencia que, embora haja espaço para avanços significativos na abordagem da temática das relações étnico-raciais nos livros didáticos, com enfoque para contribuição dos povos africanos e seus descendentes para a formação do nosso país, a Lei n° 10.639/03 desempenha papel fundamental ao instigar discussões e reflexões que podem, gradualmente, transformar o cenário educacional. O comprometimento dos defensores de políticas antirracistas, juntamente com a sensibilidade das editoras em relação a essas demandas, pode pavimentar o caminho para um ensino mais inclusivo, representativo e enriquecedor para todos os alunos.
Referências
BRAICK, P. R.; BARRETO, A. Estudar História: das origens do homem à era digital. 3ª ed. São Paulo: Moderna, 2018.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, 23 de dezembro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 12 jun. 2025.
CANEN, A. Educação multicultural, identidade nacional e pluralidade cultural: tensões e implicações curriculares. Rio de Janeiro: Proedes, 2000.
CONCOLATO, B. M. Do escravismo às políticas de ações afirmativas: o negro cotista na Universidade Federal de Juiz de Fora. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/617/1/biancamachadoconcolatovieira.pdf. Acesso em: 12 jun. 2025.
EUGÊNIO, B. G.; SANTOS, J. J. R.; SOUZA, J. B. Políticas para a implementação da Lei nº 10.639/03 em um município brasileiro: o discurso oficial e o discurso pedagógico. ETD - Educação Temática Digital, Campinas, v. 19, nº 1, 2017.
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2008.
GOMES, N. L. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, 2012.
OLIVEIRA, M. G.; SILVA, P. V. B. Educação étnico-racial e formação inicial de professores: a recepção da Lei n° 10.639/03. Educação e Realidade, Porto Alegre, 2017.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo et al. (ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais - perspectivas latino-americanas. Bogotá: CLACSO, 2005. Disponível em: http://www.liberdadeerevolucaopopular.com.br/wp-content/uploads/2018/02/49715997-Colonialidade-do-poder-eurocentrismo-e-America-Latina-Anibal-Quijano.pdf. Acesso em: 12 jun. 2025.
SOUZA. M. F.; JÚNIOR. F. V. S. Racismo estrutural e a violência contra a juventude negra no Brasil. Revista Transgressões: Ciências Criminais em Debate, Mossoró, 2019.
SOUZA. F. D.; CIPRIANO. M. M. S. Ações afirmativas: a invisibilidade da Lei n° 10.639/03 na Educação Básica. VII CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, Maceió, 2020.
VAN DIJK, T. A. Racismo e discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2008.
Publicado em 23 de julho de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
GÓIS, Josias Alves; FRANÇA, Marília Gabriela Nascimento; COSTA, Thaísa Cristiany de Carvalho. Educação étnico-racial: análise dos livros didáticos adotados pelo Centro de Educação Integrada Professor Eliseu Viana, de Mossoró/RN. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 27, 23 de julho de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/27/educacao-etnico-racial-analise-dos-livros-didaticos-adotados-pelo-centro-de-educacao-integrada-professor-eliseu-viana-de-mossororn
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.