Ensino de Língua Portuguesa na era digital: a importância do letramento digital na Educação Básica para a construção do sujeito competente linguisticamente
Maria Eduarda Costa Maciel Nogueira
Graduada em Letras (UEMG), mestranda em Cognição e Linguagem (UENF)
Eliana Crispim França Luquetti
Doutora em Linguística (UFRJ), professora associada da UENF
Luciana da Silva Almeida
Pedagoga, doutora em Cognição e Linguagem (UENF)
É notório que, com o desenvolvimento das novas tecnologias e o surgimento e a propagação da internet, diversas questões da vida humana foram transformadas, inclusive a maneira de ensinar e aprender, a forma como os sujeitos contemporâneos se comunicam e interagem, bem como a apropriação de uma nova forma de utilizar a língua nas atividades comunicativas mediadas por tecnologias digitais.
Nesse viés, entende-se que o letramento digital (LD), enquanto prática social, pode contribuir para o ensino de Língua Portuguesa, uma vez que grande parte da atividade comunicativa se realiza por meio dessas tecnologias e que é necessário repensar a maneira como o ensino de língua tem sido conduzido, para que o corpo discente desenvolva suas competências linguísticas de acordo com as necessidades sociais instauradas e exigidas pela sociedade contemporânea, ainda na Educação Básica.
Considera-se que a diversidade linguística no ambiente virtual impacta diretamente o ensino formal da língua, fazendo emergir novas necessidades tanto para o processo de ensino conduzido pelo professor quanto para a aprendizagem do aluno. Compreender de que forma o letramento digital pode contribuir para o ensino, e quais são as adversidades que perpassam a prática docente no que tange à diversidade linguística advinda do ciberespaço, torna-se substancial para o desenvolvimento de práticas pedagógicas que contemplem a formação linguística do aluno, considerando as transformações linguísticas oriundas do ambiente virtual.
Este estudo justifica-se pela urgência em propiciar discussões acerca dessas transformações, considerando o papel primordial da escola e do professor na formação do indivíduo enquanto sujeito socialmente ativo, cujas necessidades envolvem tanto o domínio técnico quanto o uso crítico e reflexivo das tecnologias digitais, ou seja, na concepção do letramento digital enquanto prática social.
Utilizando o aporte teórico de Lévy (1999), Pinheiro (2000) e Soares (1998; 2002), entre outros, realizou-se uma pesquisa de abordagem qualitativa, por meio de revisão sistemática da literatura, para subsidiar as discussões propostas, tendo em vista a consonância dos autores em relação à temática.
As tecnologias digitais da informação e comunicação: breves apontamentos
Sabe-se que as tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) estão extremamente presentes no cotidiano dos sujeitos contemporâneos e tornaram-se ferramentas imprescindíveis para a realização de tarefas ordinárias, como pagar uma conta de luz, acessar endereços eletrônicos de órgãos e serviços públicos, ter acesso às mais diversas redes sociais, dentre outras.
O conceito de TDIC surge com o acréscimo da avançada tecnologia digital, sendo, de acordo com Kenski (2012 apud Gewehr, 2017, p. 25), possível processar quaisquer informações, além de ter provocado transformações significativas na vida dos sujeitos, especialmente no que se refere à busca por informações e à comunicação instantânea. De acordo com Rodrigues et al. (2014, p. 4 apud Rodrigues, 2016, p. 15),
tecnologias da informação e comunicação (TIC) podem ser definidas como o conjunto total de tecnologias que permitem a produção, o acesso e a propagação de informações, assim como tecnologias que permitem a comunicação entre pessoas. Com a evolução tecnológica, surgiram novas tecnologias, que se propagaram pelo mundo como formas de difusão de conhecimento e facilitaram a comunicação entre as pessoas, independentemente de distâncias geográficas.
Nesse sentido, evidencia-se que a necessidade intrínseca do ser humano de se comunicar e a busca por prontidão, rapidez e instantaneidade deram origem às tecnologias digitais contemporâneas, como internet, sites, notebooks, smartphones, redes sociais, entre outras. Assim, diante dos avanços tecnológicos digitais, a sociedade contemporânea vive em uma nova ordem social, na qual o acesso e a troca de informações são elementos primordiais, desde tarefas simples às mais complexas.
As novas formas de comunicação resultaram no alcunhado ciberespaço: o espaço virtual constituído pelos meios de comunicação atuais, o qual, por intermédio de uma tecnologia base, permite a troca de informações em diversos formatos — texto, áudio ou vídeo — e forma um sistema integrado e altamente complexo.
Segundo Lévy (1999, p. 17), o ciberespaço “significa não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo”. Ou seja, o ciberespaço é o espaço de troca que possui sua própria estrutura do ponto de vista técnico, mas também sua própria ordem de funcionamento por meio dos sujeitos. Nesse sentido, Bergmann (2007, p. 4) ressalta:
O ciberespaço é a “Matrix”, uma região abstrata invisível que permite a circulação de informações na forma de imagens, sons, textos etc. Este espaço virtual está em vias de globalização planetária e já constitui um espaço social de trocas simbólicas entre pessoas dos mais diversos locais do planeta.
Sendo assim, o ciberespaço se configura como um novo ambiente de interação humana, capaz de reformular dinâmicas sociais e, sobretudo, de transformar-se com grande facilidade — fato que elucida a importância de discutir e refletir sobre suas particularidades e sua influência no mundo contemporâneo. Santaella (2021) ressalta que, antes da possibilidade da hipermobilidade, existia a dicotomia entre mundo real e mundo virtual; no entanto, com os significativos avanços tecnológicos e digitais, essa hipermobilidade faz com que não exista mais a separação entre um universo e o outro. A autora expõe que
é preciso reconhecer que o ciberespaço está tomando conta de todo o espaço que ocupamos, a ponto de não nos darmos mais conta de quando ou onde entramos nele ou saímos dele, pois, na maior parte do tempo, estamos in/off ao mesmo tempo (Santaella, 2021, p. 20).
Portanto, os estudos acerca das tecnologias digitais da informação e comunicação são extremamente relevantes para os diversos âmbitos sociais, uma vez que é por intermédio dessas tecnologias e no ciberespaço que a sociedade contemporânea se conecta, acessa e propaga informações, estabelecendo a comunicação necessária nessa conjuntura.
Novos olhares para a diversidade linguística no ambiente virtual
A nova ordem social, alavancada pelas TIDC e pelo ciberespaço, faz emergir a nomeada cibercultura, cultura que se concebe a partir dos modos e valores atribuídos aos usos das tecnologias digitais na contemporaneidade. A cibercultura é conceituada por Lévy (1999, p. 17) como “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”, isto é, a cultura do ambiente virtual, que possui suas particularidades para seu pleno funcionamento.
Nesse contexto, torna-se inegável que o ambiente virtual, além de possuir diversas particularidades materiais e intelectuais, também conta com a diversidade linguística, uma vez que, para que a comunicação se realize em plenitude nesse meio, buscam-se formas inovadoras e adaptáveis às necessidades do próprio meio. Trata-se, pois, da instauração da linguagem própria da internet, a nomeada internetês. Essa linguagem reúne signos próprios do ambiente virtual, acompanhados dos signos da própria língua, por exemplo, o uso de abreviações de palavras, gírias, gifs e emojis, que são característicos desse meio.
A língua, sendo um sistema heterogêneo, conta com a variação sistematizada, que é um aspecto comum em todas as línguas e em seus diversos usos. De acordo com Alkmim (2021, p. 32), “ao estudar qualquer comunidade linguística, a constatação mais imediata é a existência de diversidade ou da variação. Isto é, toda comunidade se caracteriza pelo emprego de diferentes modos de falar”. Nesse viés, no que concerne à diversidade linguística no ambiente virtual, levando em consideração o rompimento da barreira entre real e virtual do ciberespaço e da cibercultura, apontado por Santaella (2021), evidencia-se que, assim como existe diversidade no âmbito da fala e da escrita fora do ambiente virtual, existe diversidade dentro dele. Os sujeitos, pertencentes a culturas, níveis de educação institucionalizada, vivências e percepções distintas, transportam essas heterogeneidades para seu modo de comunicar no universo virtual.
Segundo Rajagopalan (2012, p. 43 apud Marques; Navarrete; Campos-Toscano, 2020, p. 12), “é importante, no entanto, não concluir apressadamente que o internetês é nada mais do que uma abreviação grotesca da língua padrão”. Os autores destacam ainda que
a linguagem adotada nas redes sociais tem um reflexo grandioso da língua falada que, posteriormente, é passada de maneira escrita para essas mídias. Essa interferência da oralidade ocorre, pois se trata de mensagens diretas, e não de textos formais. Por isso, cabe uma reflexão sobre o uso dessa nova linguagem, de como ela tem sido utilizada e qual o impacto causado na rotina de quem a utiliza (Marques; Navarrete; Campos-Toscano, 2020, p. 12).
A partir da ampla conexão entre pessoas, culturas e línguas por meio das tecnologias digitais, novas formas de comunicação são incorporadas às comunidades virtuais de fala. Ou seja, há a inserção de novas palavras, abreviações e códigos linguísticos. O estrangeirismo, por exemplo, é um elemento extremamente presente no contexto virtual; a inserção de palavras como “site”, “mouse”, “e-mail”, “delivery” e “crush” na língua portuguesa provém do inglês, mas já está incorporada ao vocabulário e à realidade dos brasileiros.
Além disso, cabe ressaltar a necessidade de reconhecer e utilizar determinados códigos linguísticos oriundos da internet para conseguir se manifestar e estabelecer comunicação no ambiente virtual, uma vez que as transformações nesse contexto são rápidas e exigem do sujeito contemporâneo conhecimentos que, antes da expansão tecnológica digital, não eram necessários.
Portanto, os sujeitos contemporâneos que fazem uso das tecnologias digitais, além de terem conhecimentos técnicos acerca dos aparatos tecnológicos, como manusear corretamente computadores, celulares e a internet, devem também saber utilizar a língua nos ambientes virtuais em prol da comunicação. Isso implica reconhecer e dominar as especificidades do ciberespaço, as maneiras de se comunicar em determinadas circunstâncias comunicativas, e a escolha adequada de palavras e expressões, de forma que a diversidade linguística no âmbito virtual seja apenas mais uma nuance da língua, propiciando novas perspectivas e trocas entre grupos que compartilham os mesmos códigos.
Letramento digital e o ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica: perspectivas contemporâneas
No Brasil, o termo letramento surge na década de 1980, diante da necessidade de nomear as práticas de leitura e escrita que vão além da decodificação de um sistema de escrita, ou seja, de dar nome às práticas de leitura que assumem características sociais, culturais e políticas. Apesar de existirem vários conceitos de letramento defendidos por estudiosos da área, há entre eles um ponto em comum: a leitura não se trata apenas da decodificação de um código.
Segundo Soares (1998, p. 72), por exemplo, letramento é um “conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”. Ainda sob esse viés, Kleiman (2005, p. 21) afirma que
o letramento abrange o processo de desenvolvimento e o uso dos sistemas da escrita nas sociedades, ou seja, o desenvolvimento histórico da escrita refletindo outras mudanças sociais e tecnológicas, como a alfabetização universal, a democratização do ensino, o acesso a fontes aparentemente ilimitadas de papel, o surgimento da internet.
Soares (2002) considera que há diversos tipos de letramento. Assim, “diferentes espaços de escritas e diferentes mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita resultam em diferentes letramentos” (Soares, 2002, p. 156). Nesse sentido, entre os vários tipos de letramento, destaca-se o digital. Ainda de acordo com a autora, esse letramento está relacionado à prática da leitura e da escrita proporcionada pelo uso das tecnologias digitais.
Além disso, considera-se que ser letrado digitalmente diz respeito tanto ao saber técnico relacionado ao uso das tecnologias quanto à capacidade de compreender, selecionar e organizar, de forma crítica e reflexiva, os aparatos tecnológicos e as informações produzidas nos espaços digitais, nas diversas práticas sociais ocasionadas pela era da digitalização. Acerca do letramento digital, Soares (2002, p. 151) afirma:
o cenário faz-se importante para que tenham consequências sociais, cognitivas e discursivas, e estejam, assim, configurando um letramento digital, isto é, um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel.
Dessa maneira, o letramento digital na contemporaneidade não pode ser periférico, ao contrário, é fundamental para os sujeitos que fazem uso das tecnologias digitais e exercem práticas sociais de leitura. Bagno e Rangel (2005, p. 69), sobre letramento, reiteram que
letrar não é simplesmente “ensinar a ler e a escrever”, mas criar condições para que o indivíduo ou o grupo possa exercer a leitura e a escrita de maneira a se inserir do modo mais pleno e participativo na sociedade tipicamente letrada que é a nossa, especialmente no que diz respeito aos espaços mais institucionalizados do convívio republicano.
Dessa maneira, infere-se que ser letrado digitalmente torna-se uma necessidade básica do sujeito contemporâneo, configurando-se como competência primordial para o exercício da cidadania de modo crítico, reflexivo e emancipatório.
Diante do exposto, torna-se pertinente refletir sobre de que maneira as práticas de letramento digital podem ser inseridas e contempladas no ensino de Língua Portuguesa ainda na Educação Básica, uma vez que sujeito e tecnologias digitais estão intimamente relacionados no mundo contemporâneo e que grande parte das práticas de leitura atuais são mediadas por tecnologias. Nesse sentido, Dias (2012, p. 865) afirma: “o cidadão contemporâneo precisa tornar-se aberto à diversidade cultural, respeitar a pluralidade étnica e saber conviver on-line”.
A implementação desses conhecimentos relacionados às tecnologias digitais já está prevista nos documentos vigentes que norteiam a educação nacional, os quais apontam o letramento digital como elemento fundamental na formação dos educandos.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo, por meio de suas competências gerais, busca implementar um ensino sistematizado, alinhado às necessidades da sociedade contemporânea. Essas competências têm como objetivo possibilitar a formação integral do sujeito, de maneira transdisciplinar.
No que se refere às tecnologias digitais, o documento aborda o mundo e a cultura digital na formação do educando, tratando de questões como transmissão de dados, atuação em redes, privacidade on-line, ética no uso de dados e a influência da inteligência artificial. Assim, de acordo com o site oficial da Base Nacional Comum Curricular, em um artigo intitulado “Tecnologias digitais da informação e comunicação no contexto escolar: possibilidades”, o documento reforça: “É necessário promover a alfabetização e o letramento digital, tornando acessíveis as tecnologias e as informações que circulam nos meios digitais e oportunizando a inclusão digital” (Brasil, s/d).
O documento, que tem como um dos propósitos formar estudantes com conhecimentos e habilidades primordiais para o século XXI, discorre amplamente sobre a temática, contemplando as tecnologias ao longo de seu texto. No entanto, é nas competências quatro e cinco que há um aprofundamento maior. A competência 4 fala de
utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo (Brasil, 2018).
Percebe-se que a competência 4 prevê a utilização de diversas linguagens, inclusive a digital, no processo de ensino-aprendizagem. O objetivo é contemplar a linguagem digital na sala de aula, de maneira que os alunos sejam capazes de desenvolver seus conhecimentos e habilidades referentes à cultura digital. A competência 5, por sua vez, propõe
compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva” (Brasil, 2018).
Ainda sob essa perspectiva da Base, acredita-se que o incentivo em sala de aula não deve se limitar apenas ao uso das tecnologias em si, mas também a propiciar ao aluno a capacidade de utilizá-las de maneira crítica e responsável. Dessa maneira, o papel do professor é o de mediador no processo de ensino-aprendizagem, no qual devem ser trabalhados temas como segurança na rede, checagem de fatos, cyberbullying, noções de uso da rede para a construção e o compartilhamento de conhecimento, dentre outros.
No que concerne especialmente ao ensino e ao professor de Língua Portuguesa, percebe-se a real necessidade de inserir a discussão sobre o letramento digital relacionado aos conteúdos propostos na disciplina, uma vez que é por meio da língua que os educandos se manifestam nas mais diversas esferas digitais, bem como produzem e consomem informações dessa natureza.
De acordo com Bagno e Rangel (2005), existe certa fragilidade e ineficiência na formação dos profissionais de Letras, dado o fato de que o curso, por muitas vezes, apenas replica as teorias e hipóteses tradicionais, sem renová-las por meio de dados mais recentes e sem fomentar no aluno o pensamento crítico em relação ao aspecto teórico proposto. Os autores ainda ressaltam que o distanciamento entre o campo de investigação científica e a prática do docente de Língua Portuguesa na educação básica é uma das principais adversidades que a educação enfrenta. Assim, “abre-se, então, uma lacuna entre as propostas oficiais de ensino de língua, a formação docente nas universidades e as demandas sociais por uma educação capaz de assegurar os direitos linguísticos do cidadão e de lhe permitir construir sua cidadania” (Bagno; Rangel, 2005, p. 67).
O ensino de Língua Portuguesa pautado na utilização da língua enquanto elemento sociocultural proporciona aos alunos um desenvolvimento global, autônomo e crítico, justamente aspectos considerados no processo de letramento digital. Assim, Rezende (2016, p. 104) afirma:
Ao refletirmos sobre o letramento na atualidade, verificamos a necessidade de considerar a presença das tecnologias digitais em nossas atividades cotidianas, cujo uso é fruto de demandas sociais e do grande investimento no desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação (TIC): rede de computadores, banda larga, telefonia móvel, datashow e ipads, entre outros. Essas demandas da sociedade vinculam-se a uma nova mentalidade que se forma e que determinou o que se tem denominado letramento digital: um novo letramento que se utiliza de uma nova tecnologia. Contudo, apesar de estar vinculado ao uso social da fala e da escrita, muitas vezes, o termo é utilizado para denominar práticas que se utilizam da tecnologia, sem que se considerem seus impactos sociais e culturais.
Sabe-se que o trabalho em prol do desenvolvimento do aluno em relação à leitura, interpretação, gêneros textuais, produção textual, dentre outros, não é uma tarefa exclusiva do professor de Português. No entanto, é especialmente nas aulas de Língua Portuguesa que esses conhecimentos são aprofundados. Por isso, destaca-se a importância do professor dessa disciplina no processo de letramento digital, ou seja, no desenvolvimento da prática de leitura por meio das telas e na identificação de suas reais implicações sociais, culturais e políticas na vida do educando.
O trabalho com gêneros e práticas contemporâneas, sugerido pela BNCC para o ensino da Língua Portuguesa, englobando, inclusive, o letramento digital, está presente nos campos de atuação e circulação dos gêneros. Além disso, outras competências são indicadas pela Base para contemplar o desenvolvimento do educando no que se refere ao desempenho linguístico no ambiente virtual, ainda na Educação Básica.
Portanto, entende-se que os professores, especialmente os de Língua Portuguesa, devem trabalhar o letramento digital como uma competência necessária ao sujeito contemporâneo, promovendo a autonomia, o posicionamento crítico-reflexivo e as competências linguísticas dos alunos no contexto virtual, uma vez que as práticas sociais ligadas à leitura nesse contexto são cada vez mais oportunizadas na era da digitalização.
Uma reflexão pedagógica acerca dos desafios docentes no ensino de Língua Portuguesa
Sabe-se que muitos são os desafios enfrentados pelos professores em relação à utilização de novas tecnologias digitais, dentro e fora da sala de aula. Isso se deve, principalmente, à desigualdade social existente no Brasil, de modo que uma expressiva parte da população não tem acesso aos artefatos tecnológicos, tampouco sabe utilizá-los de maneira eficiente.
De acordo com Bourdieu, citado por Soares (2000, p. 54), em seus estudos sociológicos que discutem a relação entre escola e sociedade, a escola tem perpetuado a estrutura social na manutenção das desigualdades sociais, ou seja, exerce uma violência simbólica quando há a imposição das classes dominantes sobre as classes dominadas. Assim, a escola, como reflexo da sociedade, evidencia que, se existe certa vulnerabilidade econômica (cuja implicação recai diretamente no acesso aos aparelhos eletrônicos digitais) fora dos muros escolares, essa também se faz presente no ambiente escolar.
Sob outra perspectiva, sem deixar de considerar a realidade do país e das instituições escolares, outro desafio docente diz respeito ao trabalho com gêneros textuais contemporâneos, levando em consideração a diversidade linguística presente no ambiente virtual e a necessidade de conduzir um processo de ensino-aprendizagem que priorize os multiletramentos e desenvolva, no aluno, a capacidade não somente de utilizar tecnicamente as tecnologias digitais, mas também de expandir suas competências para ler, interpretar, consumir e produzir informações nesses ambientes virtuais. Assim, Silva (2011, p. 28) afirma que
os muros da escola são transpostos para o turbilhão ilimitado de informações do ciberespaço, marcado pela velocidade nos fluxos de interação, pelas modernas redes sociais, pelas novas dimensões de tempo e espaço no campo da virtualidade.
Isso significa que, apesar do reconhecimento das desigualdades que afetam o acesso e uso das TDIC, não se pode desconsiderar a realidade tecnológica e digital em que a sociedade está inserida, de modo que os alunos estão cada vez mais propensos e expostos às necessidades digitais. O corpo discente passa a buscar e produzir conhecimento de maneira mais autônoma por intermédio dessas tecnologias, e os professores assumem o papel não somente de mediadores, mas também de instrutores no processo de aquisição e reflexão da construção do saber.
No que se refere à pluralidade linguística, os desafios são ainda mais complexos, dado o fato de que o ensino de LP é tradicionalista e pautado no ensino das normas gramaticais, isto é, considera como “correta” apenas a norma culta e desconsidera as variedades linguísticas oriundas das verdadeiras atividades comunicativas, como as construídas on-line. Assim, muito embora seja uma necessidade social e cultural proporcionar ao aluno o conhecimento acerca dessas variedades, o professor fica limitado ao ensino prescritivo tradicionalista.
O trabalho na condução do ensino de LP deve levar em consideração a inserção e utilização das tecnologias digitais, de maneira que sejam desenvolvidos os multiletramentos, especialmente o digital, tratado neste trabalho. No entanto, percebe-se que os avanços teóricos em relação à temática não condizem com a prática escolar e o exercício docente, tendo em vista que não basta apenas fornecer internet e aparelhar as escolas com computadores. É necessária a “adoção de novas abordagens pedagógicas, novos caminhos que acabem com o isolamento da escola e a coloquem em permanente situação de diálogo com as demais instâncias existentes na sociedade” (Kenski, 2007, p. 66), assim como prepará-las para lidar com as emergências sociais e culturais.
No que diz respeito aos professores, evidencia-se a necessidade de prepará-los para lidar e conduzir essa nova ordem social. Freitas (2010, p. 349) ressalta essa importância quando diz que
para formar futuros professores para o trabalho com nativos digitais faz-se necessário enfrentar a responsabilidade de uma constante atualização, a defasagem entre o seu letramento digital e o do aluno, e manter o distanciamento possibilitador de um olhar crítico diante do que a tecnologia digital oferece. Assim, espera-se que, nessa era da internet, o professor possa fazer de sua sala de aula um espaço de construções coletivas, de aprendizagens compartilhadas.
Nesse viés, fica claro que os esforços são múltiplos, tanto para manter a escola próxima das realidades e necessidades sociais, quanto para capacitar professores e conduzir o ensino em uma perspectiva contemporânea, que garanta ao aluno o desenvolvimento de habilidades e competências digitais.
Considerações finais
Diante do que foi exposto, o trabalho, concebido por meio de uma revisão de literatura, visou propiciar reflexões acerca do letramento digital e de seus impactos no ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica, levando em consideração as transformações linguísticas ocasionadas pelo desenvolvimento das tecnologias digitais e pelas especificidades da comunicação nos espaços virtuais, além das adversidades que perpassam a prática docente no que concerne ao trabalho com a diversidade linguística oriunda da contemporaneidade.
Assim, evidenciou-se a primordialidade de se considerar, no labor pedagógico, as novas demandas da sociedade contemporânea em relação à comunicação, ao acesso à informação e às habilidades e competências necessárias aos sujeitos inseridos na nova ordem social, na qual as tecnologias digitais estão cada vez mais presentes.
O ciberespaço e a cibercultura, conceitos abordados ao longo deste trabalho, exigem uma reformulação no ensino de língua, uma vez que o acesso, o consumo e a produção de informação passam pelas tecnologias digitais, as quais possuem características próprias em seu modo de funcionamento. Constatou-se, assim, que a conexão entre pessoas, culturas e línguas propicia a variação sistematizada da língua, de modo que a competência linguística do sujeito contemporâneo deve estar atrelada, também, a esse fenômeno comum a todas as línguas.
Nesse sentido, entende-se o letramento digital como elemento substancial na formação do aluno, considerando que apenas o saber técnico relacionado ao manuseio das tecnologias digitais não é suficiente para o pleno exercício da comunicação. A habilidade de selecionar, organizar, compreender, refletir e criticar as informações que circulam e são produzidas nesses meios faz-se extremamente necessária.
Assim, mesmo diante de urgências evidentes no processo de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa, constatou-se que a reformulação desse processo vai muito além dos desejos e colaborações do corpo docente, pois envolve inúmeros desafios que atravessam a prática do professor. Compreende-se que as desigualdades sociais, que impossibilitam o acesso a aparelhos e artefatos tecnológicos digitais, são questões que precisam ser discutidas e consideradas no tratamento da língua em sala de aula.
Além disso, considerou-se que a condução do ensino de língua sob uma perspectiva tradicionalista, que desconsidera o estudo e o trabalho com as variações linguísticas, bem como a inserção e a apropriação dos gêneros textuais contemporâneos, explorando suas particularidades quanto à composição, meios de circulação e efeitos comunicativos, implica diretamente na prática do professor. Isso significa que, embora a necessidade de ressignificação do ensino de Língua Portuguesa seja apontada por renomados teóricos da área, o docente ainda se encontra em estado de certa impotência, tendo em vista o ensino prescritivo tradicionalista que ainda é exigido nas escolas do país.
Portanto, entende-se que os esforços para a transformação desse cenário na Educação Básica são múltiplos e abrangem tanto as instâncias educacionais quanto o corpo docente, de maneira que seja possível viabilizar a ampliação das competências linguísticas no processo de ensino e aprendizagem, considerando as práticas sociais de leitura e escrita mediadas por tecnologias, a diversidade linguística promovida nos ambientes virtuais e os gêneros textuais contemporâneos em seus modos de produção e circulação.
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Publicado em 30 de julho de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
NOGUEIRA, Maria Eduarda Costa Maciel; LUQUETTI, Eliana Crispim França; ALMEIDA, Luciana da Silva. Ensino de Língua Portuguesa na era digital: a importância do letramento digital na Educação Básica para a construção do sujeito competente linguisticamente. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 28, 30 de julho de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/28/ensino-de-lingua-portuguesa-na-era-digital-a-importancia-do-letramento-digital-na-educacao-basica-para-a-construcao-do-sujeito-competente-linguisticamente
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