Conceitos matemáticos no Ensino Fundamental I: o uso do livro infantil e de jogos como metodologia
Luciana Jesus de Souza
Mestre em Novas Tecnologias Digitais na Educação (UniCarioca), pedagoga (UNIRIO), coordenadora Pedagógica na SME-RJ
Com o objetivo de explorar conceitos matemáticos como números, probabilidades e estatística, grandezas e medidas, abordados nos Anos Iniciais da Educação Básica, especificamente no 2º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal no Rio de Janeiro, optou-se por utilizar a literatura infantil, com o livro A cesta de Dona Maricota, de Tatiana Belinky. A obra descreve uma situação cotidiana em que Dona Maricota retorna da feira trazendo frutas e legumes, que conversam sobre sua importância nutricional. No desfecho da história, as frutas tornam-se compotas e os legumes, um sopão.
A narrativa inicial foi desenvolvida em uma sequência didática de três dias, com uma abordagem matemática que contemplou habilidades específicas como números, probabilidades e estatística, grandezas e medidas, além de outras competências trabalhadas direta ou indiretamente a partir das perguntas e do interesse dos alunos pelo tema. Essa proposta dialoga com os contextos abordados por D’Ambrosio (2005, p. 113), que introduz o conceito de Etnomatemática: “Criei essa palavra para significar que há várias maneiras, técnicas, habilidades (ticas) de explicar, de entender, de lidar e de conviver com (matema) distintos contextos naturais e socioeconômicos da realidade (etnos)”, ampliando a visão do uso da Matemática no cotidiano.
No primeiro dia, os alunos construíram um gráfico vertical com suas preferências de frutas. No segundo dia, visitaram o refeitório da escola e expandiram seus pensamentos ao realizar comparações sobre quantas unidades de alimentos equivalem a um quilograma, registrando suas observações. Essa atividade incluiu uma entrevista conduzida pelos alunos com as merendeiras da escola, abordando questões relacionadas aos hábitos alimentares dos estudantes. As perguntas resultaram em uma escrita coletiva sobre ações para evitar o desperdício de alimentos, identificado como um problema durante a discussão. No terceiro dia, os alunos, organizados em pequenos grupos, criaram trilhas alimentícias que envolviam a contagem de casas, a identificação de alimentos saudáveis e a reflexão sobre o consumo de determinados itens. A atividade foi concluída com apresentações das trilhas para a turma.
Conversando sobre conceitos
Com o intuito de diversificar as abordagens teórico-metodológicas destinadas aos alunos dos anos iniciais, sobre o conceito de numeramento, Fonseca (2009, p. 13) argumenta que “muitas vezes vemos o termo numeramento ser utilizado em analogia ao termo Letramento, transferindo as considerações sobre a apropriação da cultura escrita para a discussão sobre o acesso ao conhecimento matemático”. De acordo com a autora, essa correlação possui aspectos positivos, pois se alinha ao contexto inicial de consolidação de conceitos, criado nos anos iniciais.
Essa abordagem articula situações reais do cotidiano dos indivíduos com as primeiras experiências matemáticas, seja por meio de operações elementares, resolução de situações hipotéticas ou uso de terminologias e sistemas desenvolvidos no processo educacional, iniciados nesse período escolar. Tais ações desdobram-se em uma estrutura de anotações matemáticas e na associação de seu uso ao cotidiano.
Para Kleiman (1995), a terminologia ligada ao letramento traduz-se em implicações sociais. Utilizando o paralelismo de estruturas para a Matemática, o numeramento, inserido na vida dos indivíduos, também influencia suas percepções sobre o mundo, sua leitura do conhecimento e sua descoberta de finalidades no aprendizado dessa disciplina tão significativa.
Em Mendes (2007), o numeramento é destacado como essa repercussão social, evidenciando que,
ao focalizarmos o numeramento, podemos nos reportar às diversas práticas sociais, presentes na sociedade, que moldam os eventos de numeramento em contextos diversos. Na verdade, creio que, talvez, não seja possível identificar um evento exclusivamente de numeramento, pois de algum modo a escrita e a leitura podem estar associadas à realização desses eventos. Indo além, as formas de representação escrita nos diversos eventos de numeramento podem ir além da escrita numérica, abarcando outras formas de representação como, por exemplo, a visual (leitura de gráficos, representações geométricas, representações de espaço etc.) (Mendes, 2007, p. 25).
Essa perspectiva reforça a necessidade de que as aulas abordem novas concepções sobre os conceitos matemáticos, evidenciando como esses conhecimentos estão presentes na rotina de qualquer família e sua importância no espaço escolar desde os Anos Iniciais. Nesse sentido, foram desenvolvidas atividades que abordaram a Matemática de forma cotidiana, relacionando-a com a alimentação e a dinâmica de funcionamento da escola, como o refeitório.
A Etnomatemática, termo cunhado pelo matemático brasileiro Ubiratan D’Ambrosio (1990), já nas décadas de 1970 e 1980, apresenta esse prisma teórico, o fazer matemático de forma histórica com perspectivas locais. Ela questiona, por exemplo, como uma comunidade ribeirinha do interior do Amazonas utiliza a Matemática em seu cotidiano ou como um grupo da etnia Zulu, no sul da África, encontra soluções para questões de divisão comunitária.
Esses questionamentos dialogam com o pensamento de Macedo e Sá (2015) sobre as etnoaprendizagens, caracterizadas por dimensões lúdicas, abordadas de forma leve, curiosa e investigativa. Esses elementos são essenciais para cativar os alunos dos Anos Iniciais, estimulando-os a explorar novos saberes e possibilidades.
Contextualizar o lúdico na aprendizagem é imprescindível, pois diversos fatores interferem diretamente no aprendizado das crianças. Isso ressalta a importância de estudos voltados ao “aprender a aprender”, destacando a importância dos conteúdos ensinados e dos métodos utilizados pelos professores, que devem cativar não apenas a atenção dos educandos, mas também assegurar que o conhecimento adquirido tenha uma aplicação prática e social.
Piaget (1987) defende que o aprendizado faz sentido para a criança quando o tempo dedicado a ele produz significados. Para Macedo (2007, p. 14), “o jogar é o brincar em um contexto de regras e com um objetivo predefinido”. Santos (2014), no contexto dessa visão integral de observação do educando, apresenta uma série de informações práticas relevantes sobre o uso do lúdico em sala de aula, o que foi evidenciado nas trilhas criadas pelos alunos.
Com esse arcabouço teórico, o estudo se concentra em identificar possíveis estratégias que o professor pode adotar para alcançar resultados positivos em sala de aula. Essas estratégias estão alinhadas às premissas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2007), cujas diretrizes já eram amplamente contempladas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1988), especialmente no que se refere ao componente curricular de Matemática do Ensino Fundamental.
Desenvolvimento
No primeiro dia, com a leitura do livro de Belinky (2021), os alunos participaram da criação de um gráfico vertical, escolhendo entre as sete frutas mencionadas na história do livro. A atividade, que envolveu a participação dos 33 alunos da turma, explorou a habilidade matemática específica de probabilidade e estatística, atendendo ao objetivo de “elaborar gráficos simples utilizando figuras e objetos” (Rio de Janeiro, 2020, p. 20). O resultado foi registrado na Figura 1.
Figura 1: Preferências de frutas entre os alunos
Foi interessante observar que as frutas frequentemente servidas como sobremesa no espaço escolar, como banana e maçã, foram as mais votadas. Essa atividade permitiu aos alunos perceber que uma escolha simples, como selecionar uma fruta da narrativa do texto, poderia ser representada em um gráfico de opinião específico ao grupo, apresentando o conceito de numeramento com uma identidade visual diferenciada.
No segundo dia, a turma visitou o refeitório da escola. Durante a visita, foram anotadas informações, como o número de refeições servidas diariamente. As manipuladoras de gêneros alimentícios informaram que o limite máximo de refeições servidas corresponde ao número total de alunos matriculados sem faltas, ou seja, 150 alunos. Contudo, a média registrada da segunda semana de março de 2022 foi de 135 refeições servidas por dia.
Os alunos realizaram simulações de peso usando uma balança digital, observando como diferentes alimentos podem pesar mais ou menos. Também fizeram estimativas de peso e criaram uma reta numérica para ordenar os pesos dos alimentos, como mais leves e mais pesados, como orienta Rio de Janeiro (2020, p. 19): “Medir massa, utilizando unidades de medida não padronizadas ou padronizadas (quilo, quilograma)”.
Durante a atividade, as merendeiras revelaram que, em média, a escola desperdiçava 20 quilos de alimentos por semana, dado que causou grande impacto nos alunos. A partir disso, em sala de aula, os estudantes refletiram sobre estratégias para reduzir o desperdício. Algumas sugestões incluíram “não pedir muito, quando não se gosta tanto da comida naquele dia” e “não beber água antes de almoçar, pois a sensação de querer comer é muita [sic] mais que pode ser frustrada com o líquido antes do almoço”. Essas reflexões surgiram ao considerarem pessoas que não possuem o privilégio de fazer todas as refeições, diferente da escola, que oferece três refeições diárias aos alunos, pois funciona em turno único, das 7h30min às 14h30min.
De forma coletiva, os alunos redigiram propostas para minimizar o desperdício de alimentos na escola e, nas semanas seguintes, monitoraram os impactos dessas ações, registrando os resultados quantitativamente. Essa atividade desenvolveu a habilidade matemática de trabalhar com números: “Construir sequências de números naturais em ordem crescente ou decrescente a partir de um número qualquer, utilizando uma regularidade estabelecida” (Rio de Janeiro, 2020, p. 20).
No terceiro dia, os alunos foram organizados em grupos de 5 a 6 integrantes para criar um jogo no formato de trilha. Usando materiais reciclados, papéis coloridos, canetinhas e figuras de frutas e legumes, eles pintaram, recortaram e montaram tabuleiros, como ilustrado na Figura 2. A divisão de tarefas — como escrita, escolha de cores, organização e montagem — ficou a cargo dos próprios grupos, com a professora atuando apenas como mediadora.
Figura 2: Confecção das trilhas de alimentos
Fonte: Acervo da autora, 2023.
Cada aluno escolheu uma tarefa em que pudesse contribuir melhor, garantindo que o grupo entregasse uma trilha bem elaborada. Foram feitos Jogos de Trilhas com o tema de alimentação, como ilustrado na Figura 3. Os alunos explicaram em suas apresentações à turma o motivo da escolha do nome para seus jogos de trilha.
Figura 3: Apresentação das trilhas pelos grupos
Fonte: Acervo da autora, 2023.
Considerações finais
A aplicação dessa sequência didática, aliada à atenção às questões que surgiram durante o processo e à análise das informações coletadas pela turma, permitiu abordar temas de interesse coletivo de maneira matemática e lúdica. A turma iniciou explorando situações individuais, como as preferências por frutas, e avançou para questões coletivas, como o desperdício de alimentos no espaço escolar, um espaço público, que pertence a todos.
A criação das trilhas alimentícias possibilitou que os alunos jogassem nas trilhas elaboradas por outros grupos, promovendo um senso de autonomia e pertencimento em relação ao material produzido por seus colegas. Um dos grupos destacou-se pela criatividade ao batizar sua trilha de “Trilha do JáPão”, utilizando a palavra “PÃO” de forma engenhosa, o que ampliou o contexto da atividade matemática ao incluir elementos da escrita. Essa abordagem demonstrou o potencial de ampliar o repertório de habilidades nos alunos, além de reforçar a importância de ações que engajem o grupo como um todo, valorizando suas capacidades e potencialidades.
Referências
BELINKY, Tatiana. A cesta da Dona Maricota. 14ª ed. São Paulo: Paulinas, 2021.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 10 jul. 2023.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): Matemática. Ensino Fundamental. V. 1 e 3. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=12640:parametros-curriculares-nacionais-1o-a-4o-series. Acesso em: 10 jul. 2023.
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. São Paulo: Ática, 1990.
D’AMBROSIO, Ubiratan. Sociedade, cultura, matemática e seu ensino. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, nº 1, p. 99-120, jan./abr. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a11.pdf. Acesso em: 21 jul. 2020.
FONSECA, M. C. F. R. Conceito(s) de numeramento e relações com o letramento. In: LOPES, C. E.; NACARATO, A. (org.). Educação matemática, leitura e escrita: armadilhas, utopias e realidade. Campinas: Mercado das Letras, 2009. p. 47-60.
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MACEDO, Roberto; SÁ, Sílvia. Etnocurrículo etnoaprendiagens: a educação referenciada na cultura. São Paulo: Loyola, 2015.
MENDES, J. R. Matemática e práticas sociais: uma discussão na perspectiva do numeramento. In: MENDES, Jackeline Rodrigues; GRANDO, Regina Célia (org.). Múltiplos olhares: Matemática e produção de conhecimento. São Paulo: Musa, 2007. p. 11-29.
PIAGET, Jean. O nascimento da inteligência. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
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SANTOS, Santa Marli Pires dos. O brincar na escola: metodologia lúdico-vivencial, coletânea de jogos, brinquedos e dinâmicas. Petrópolis: Vozes, 2014.
Publicado em 22 de janeiro de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
SOUZA, Luciana Jesus de. Conceitos matemáticos no Ensino Fundamental I: o uso do livro infantil e de jogos como metodologia. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 3, 22 de janeiro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/3/conceitos-matematicos-no-ensino-fundamental-i-o-uso-do-livro-infantil-e-de-jogos-como-metodologia
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