O livro didático e sua importância na educação antirracista
Daniane Rafaela de Oliveira
Licenciada em Pedagogia (UERJ) e em Letras (UFF), especialista em Produção Textual (Faveni), em Letramento e Alfabetização (Faculdade Campos Elíseos) e em Língua Portuguesa e Literatura (Faculdade Campos Elíseos), mestra em Linguística Aplicada Interdisciplinar, professora de Língua Portuguesa e alfabetizadora na Prefeitura Municipal de Barra Mansa/RJ
Muitos professores atribuem grande importância ao livro didático, uma vez que ele é um material que, além de trazer conteúdos relevantes, também oferece sugestões de atividades para facilitar o trabalho docente (Marques, 2021). Ele constitui uma ferramenta considerável tanto para o professor quanto para a formação social dos alunos. Desse modo, a visão atribuída ao livro didático deve ultrapassar a de um simples instrumento pedagógico, pois ele também atua aliciando valores sociais, morais e culturais nos alunos (Abbeg, 2023). Sabendo, portanto, do valor do livro didático para a educação e para a formação dos estudantes, este trabalho apresenta algumas considerações sobre esse material escolar sob a perspectiva da luta antirracista.
Diante disso, este estudo alinha-se à perspectiva indisciplinar da Teoria Racial Crítica, que analisa raça e racismo no contexto de outros domínios, como sociologia, história, psicologia, entre outros. Segundo Ferreira (2015), essa teoria se estende além das fronteiras disciplinares, permitindo uma investigação abrangente e multifacetada das manifestações históricas, sociais e culturais da raça, do racismo e da (des)igualdade racial, o que pode ser aplicado ao ensino.
As questões étnico-raciais abordadas nesta pesquisa dizem respeito à população negra que compõe a nação brasileira e, portanto, devem estar presentes no debate escolar, reconhecendo esse povo como integrado e pertencente à história e à cultura popular do Brasil. No que se refere à perspectiva da linguagem, área de atuação da autora mencionada, é fundamental estudar como o processo ideológico das relações étnico-raciais, ou a ausência deste, se manifesta no contexto dos livros didáticos.
Tendo tais questões em vista, a presente pesquisa apresenta um elo com a Lei nº 10.639/03, a qual institui o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira nos currículos escolares e em estabelecimentos de ensino público e privado na Educação Básica do país. Ademais, a lei encoraja a ampliação de discussões e de ações pedagógicas para proporcionar o desenvolvimento da igualdade racial e a construção de uma educação antirracista.
Dessa forma, essa discussão oferece contribuições para a prática docente, especialmente no que diz respeito à valorização de materiais que apresentam o protagonismo negro, promovendo reflexões no âmbito educacional sobre a sociedade e os papéis ocupados por pessoas negras, sobretudo no contexto do livro didático.
O livro didático
O livro didático é símbolo emblemático da contradição intrínseca a todo discurso, ainda mais ao polêmico discurso educacional. Por um lado, por melhor que ele incorpore as descobertas e realizações mais atuais da disciplina, não deixa de ser um objeto estático, cristalizado no tempo real de sua produção, cuja materialidade não muda. Por outro lado, exige-se de dinamismo e abertura capazes de contemplar necessidades e demandas de milhões de alunos e milhares de professores em centenas de denários. Concomitantemente, os grupos dominantes velam pela preservação de suas tradições e valores no material didático, apesar do discurso pela pluralidade e a diversidade (Kleiman, 2018, p. 7).
Os livros didáticos são uma parte significativa do processo de ensino-aprendizagem. Eles estão presentes na maioria das escolas brasileiras, constituindo um recurso educacional no qual os professores podem acessar todo o conteúdo programático dividido por ano escolar, organizado por temas e acompanhado de diversos exercícios.
O livro didático também pode influenciar a formação dos alunos. De acordo com Peyneau et al. (2022), ele é importante para a escola, pois continua sendo um dos materiais essenciais do ensino, mesmo diante da existência de outros recursos, como os tecnológicos. Dessa forma, mantém seu espaço no desenvolvimento do ensino escolar e está presente na cultura e na memória de muitas pessoas.
Segundo Albuquerque e Ferreira (2019), desde o século XIX os livros didáticos empregados no ensino da leitura e da escrita estão presentes no cenário brasileiro e, ao longo do tempo, foram apresentando diferentes concepções sobre o ensino-aprendizagem, ao mesmo tempo em que destacavam aspectos importantes para compreender a educação no país. Por isso, é relevante destacar que, embora tenha sido um material de acesso reduzido durante muito tempo, os livros e manuais didáticos integram até hoje as práticas de ensino nas escolas, quando não são, muitas vezes, considerados o instrumento principal na mediação do trabalho do professor.
No Brasil, a história do livro didático foi marcada por uma sequência de decretos, leis e medidas governamentais. Oficialmente, o Decreto-Lei nº 1.006, de 10 de dezembro de 1938 (Brasil, 1939), apresenta a primeira preocupação formal com esse material. Alguns exemplos efetivos da elaboração de políticas voltadas ao livro didático são a criação de órgãos como a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (Colted), Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), Instituto Nacional do Livro (INL) e Fundação Nacional do Material Escolar (Fename). Percebe-se, então, que a responsabilidade pela avaliação, compra e distribuição do livro didático passou para o âmbito governamental. Desse modo, a ação dos governos sobre os critérios estabelecidos nos livros didáticos faz com que eles reflitam determinados aspectos do contexto social, político e econômico vigente em cada momento histórico.
De acordo com Albuquerque e Ferreira (2019), a CNLD foi criada em 1938 com o encargo de examinar e julgar os livros didáticos a serem editados pelos poderes públicos e de sugerir a abertura de concursos para sua produção. A criação dessa comissão marcou a primeira política nacional de legislação voltada à produção, ao controle e à circulação dessas obras no país. Assim, outras políticas relacionadas ao livro didático foram implementadas ao longo do tempo, como o Programa Nacional do Livro Didático.
A partir de 1971, o Instituto Nacional do Livro (INL), criado em 1937, passa a desenvolver o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental (Plidef). Com a extinção do INL, em 1976, a Fundação Nacional do Material Escolar (Fename) se tornou responsável pela execução do programa do livro didático. A partir desse momento, o governo iniciou a compra dos livros com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e com as contribuições dos Estados. Em 1985, a criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), pelo Decreto-Lei nº 91.542 (Brasil, 1985), estabeleceu as seguintes mudanças no Programa do Livro Didático (Plidef): indicação dos livros pelos professores; reutilização do livro, implicando a abolição do descartável; aperfeiçoamento das especificações técnicas para sua produção, visando à maior durabilidade e possibilitando a implantação de bancos de livros didáticos; extensão da oferta aos alunos de 1ª e 2ª séries das escolas públicas e comunitárias (Brasil, 2018) (Albuquerque; Ferreira. 2019, p. 252).
Segundo Cassiano (2016), o período de 1985 até o início do século XXI foi marcado pela criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Sua instituição ocorreu em 1985 e constitui-se em uma política adotada pelo Estado em relação ao livro didático, responsável pelo planejamento, compra e distribuição gratuita do material no âmbito escolar. Em 1996, inicia-se a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), que estabelece uma reforma curricular no Brasil e implementa políticas de avaliação. Assim, o PNLD passa a trilhar novos caminhos, estando inserido nessas reformas, que salvaguardam o investimento em livros didáticos. Desse modo, o governo começa a avaliar os livros adquiridos, e não apenas comprá-los e distribuí-los. Foi com o PNLD que o Estado passou a assegurar a distribuição gratuita do livro didático das diversas disciplinas da Educação Fundamental pública do país.
De acordo com Ota (2009), o livro didático ocupa um espaço reconhecidamente considerável, sendo utilizado diretamente pelo aluno e pelo professor. O docente adota determinado livro didático e, ainda assim, recorre a outros para esclarecer dúvidas e obter sugestões. Isso explica o grande interesse de pesquisadores pelo tema.
De fato, o material presente no livro didático pode favorecer significativamente o trabalho do professor em sala de aula e trazer praticidade aos contextos metodológicos.
Esse material é sedutor por possuir a característica, por um lado, de propiciar praticidade ao trabalho pedagógico, embora, às vezes, seja uma praticidade acrítica, alienante e, por outro lado, de ser agradável e atrativo aos olhos de quem lê, uma vez que há uma preocupação crescente com o aspecto visual, por meio de projetos gráficos cada vez mais atraentes (Ota, 2009, p. 216).
Segundo Tilio (2008), o livro didático é uma arma poderosíssima, podendo servir como instrumento para a aplicação das orientações pedagógicas sugeridas pelos documentos oficiais. No entanto, é importante analisar o livro, compreender suas ideologias e o contexto socioeconômico e cultural em que foi produzido. Isso porque, muitas vezes, o livro carrega noções de verdades absolutas e autoritarismo, deixando pouco espaço para o pluralismo existente no mundo. Portanto, é essencial que o livro didático seja sempre analisado com olhar atento e reflexivo, garantindo que sua utilização ocorra de forma positiva. O uso do livro deve estar acompanhado de reflexão sobre a relação daquela publicação com o mundo.
O leitor precisa, então, estar consciente da natureza do livro didático ao estudar seu conteúdo. Os fatos expostos em um determinado livro didático refletem o olhar do autor daquela publicação, e não verdades universais. Entretanto, cada autor procura fazer de seu olhar uma verdade universal, na tentativa de atrair leitores com promessas de respostas para todas as perguntas (Tilio, 2008, p. 120).
Nas últimas décadas, o livro didático foi foco de vários estudos. A criação do Instituto Nacional do Livro Didático, em 1929, trouxe para o Brasil as primeiras ideias sobre o livro didático. Porém, somente em 1934, no governo de Getúlio Vargas, iniciou-se a elaboração de um dicionário nacional e de uma enciclopédia, e aumentou-se o número de bibliotecas públicas (Freitas; Rodrigues, 2008).
Durante 67 anos (1929 a 1996), muitos experimentos foram realizados pelos diversos governos para que o livro didático chegasse às salas de aula, o que culminou, em 1997, com a execução da política do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), iniciando a produção e a distribuição de livros didáticos de forma mais regulada e contínua.
É importante destacar que o livro didático acaba sendo o material mais utilizado nas salas de aula no Brasil, mesmo com a ascensão de outros recursos presentes na realidade do mundo que as cerca. Sendo assim, é preciso realizar análises sobre o papel significativo de sua utilização no ensino, a fim de promover maior aprimoramento e reflexão sobre o recurso e sua base social (Oliveira, 2014).
O livro didático foi construído histórica e socialmente como um importante instrumento político e lucrativo, representando até os dias atuais as permanências e modificações estabelecidas na sociedade, que se refletem na cultura material escolar (Müller, 2018). Isso nos leva a pensar que tudo o que foi escrito tem uma razão: nada é neutro, tudo é ideológico, principalmente o livro didático, cujo objetivo é formar e disseminar conhecimentos.
Durante muito tempo, o livro didático serviu exclusivamente aos interesses da classe dominante; somente a partir dos anos 1980 a democracia começou a atingir o campo escolar, culminando com a criação do PNLD em 1985, que incorporou o professor no processo de escolha do livro didático (Vitielo, 2017). A participação do professor trouxe uma perspectiva mais democrática à utilização do livro didático, porém ainda faltava uma maior exploração de questões referentes à democracia social, que poderiam ampliar o papel transformador da educação, como as questões étnico-raciais, tão relevantes na sociedade brasileira.
Müller (2018) levanta a hipótese de que, a partir de 2007, devido às pressões de movimentos sociais, em especial do Movimento Negro, de intelectuais negros e de especialistas, houve uma grande mudança no PNLD para implementar a legislação relativa ao livro didático. Nesse sentido, somente em 2003 a alteração do Art. 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN de 1996) e a promulgação da Lei nº 10.639/03 determinaram a implantação da História e Cultura Negra no currículo escolar.
Consequentemente, no livro didático, houve um movimento de retificação, valorização e reconhecimento da participação de negras e negros na história brasileira e africana, por meio da ampliação dos referenciais textuais e iconográficos e da exigência de uma nova abordagem social, histórica e cultural sobre a população negra. Outros documentos legais aprovados posteriormente configuram o conjunto de leis da Educação para as relações étnico-raciais, ratificando e ampliando os princípios da LDBEN na luta pela superação do racismo e do aporte epistemológico eurocêntrico.
A Lei nº 10.639/03 trouxe mudanças nos textos e imagens referentes à história do negro e/ou da África nos livros didáticos. É possível observar que a alteração do Art. 26 da LDBEN, que promulgou a Lei nº 10.639/03, gerou mudanças de caráter quantitativo nos conteúdos escolares e no livro didático, devido à inclusão da história e cultura negra e africana. Contudo, é preciso considerar que essas transformações ainda não provocaram um impacto verdadeiramente significativo na relação do aluno com a cultura escolar, pois acabam sendo utilizadas apenas para atender à demanda legal do PNLD, sem promover reflexão mais profunda sobre o tema em sala de aula.
Ainda nesse sentido, a BNCC dialoga com a Lei nº 10.639/03, priorizando a história do Brasil, das Américas e da África na formação dos alunos, devendo atingir todo o âmbito da cultura escolar. A BNCC é um documento normativo e obrigatório para toda a Educação Básica, normatizando a organização dos currículos nas escolas. Ela apresenta a perspectiva de sintetizar todas as normas existentes, como as Diretrizes Curriculares Nacionais, servindo de "referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares" (Brasil, 2017, p. 8). Sendo também uma política nacional da Educação Básica, a BNCC não é currículo nem conteúdo, mas uma norma que define as competências que os alunos deverão desenvolver.
Nesse contexto, é importante realizar um levantamento sobre autores negros clássicos e contemporâneos, para que o estudante perceba que há construtores do conhecimento dentro de uma diversidade de sujeitos frequentemente excluídos pela cor da pele ou apresentados de forma branqueada nas mídias e nos livros. Quando o documento aborda a competência das linguagens, a BNCC (2017) ressalta:
Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelas pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas (Brasil, 2017, p. 63).
Assim, compete à escola garantir o trato, cada vez mais necessário, com a diversidade, com a diferença (Brasil, 2017, p. 66).
Ainda em relação à diversidade cultural, cabe dizer que se estima que mais de 250 línguas são faladas no país – indígenas, de imigração, de sinais, crioulas e afro-brasileiras, além do português e de suas variedades. Esse patrimônio cultural e linguístico é desconhecido por grande parte da população brasileira (Brasil, 2017, p. 68).
O livro didático e a população negra
A exacerbação dos fluxos identitários também se tornou mais visível devido a políticas e epistemologias contestatórias de visões homogeneizadores de nossas sociabilidades – evidentes em movimentos sociais e teorizações, pós–coloniais, feministas, queer, antirracistas etc. – surgidas em um mundo que faz a crítica aos ideais da modernidade, de progresso, cientificidade e racionalidade, que apagavam o corpo e sua história (Lopes; Bastos, 2010, p. 12).
O livro didático pode adentrar debates complexos, com desdobramentos diversos, e refletir uma tomada de atitudes antirracistas entre os alunos. Segundo Silva (2008), as primeiras pesquisas sobre o tema "racismo nos livros didáticos" datam da década de 1950, entrando na agenda das políticas públicas educacionais do Brasil por causa da mobilização do movimento negro, de pesquisadores e de governantes.
As críticas dos movimentos sociais e de pesquisadores receberam tentativas de respostas do Programa Nacional do Livro Didático, iniciado em 1985. No entanto, o autor acredita na hipótese de que o livro didático continua produzindo e veiculando um discurso racista adaptado aos tempos atuais, não obstante a intensa mobilização social observada (Silva, 2008).
Sabemos que ainda vivemos uma educação escolar que favorece a cultura dominante e coloca em destaque uma visão eurocêntrica do mundo, com características de preconceito racial sobre a população negra brasileira. Foi a partir da criação da Lei nº 10.639/03 que o tema das relações étnico-raciais passou a ter seu lugar como política educacional, tornando obrigatório o ensino da história e cultura dos afro-brasileiros e africanos nos ambientes escolares. Essa lei constitui uma forma de combater o racismo por meio de uma educação que promova o reconhecimento da importância da África para a formação da sociedade brasileira. Foi por meio das lutas do Movimento Negro que a Lei nº 10.639/03 foi promulgada, lutas que sempre buscaram o reconhecimento do movimento para a construção da sociedade brasileira.
Podemos observar que a Lei nº 10.639/03 trouxe para o cenário educacional a importância de explorar a cultura negra na formação escolar do sujeito. É relevante destacar como vem sendo a atuação do livro didático quando o assunto são as relações étnico-raciais. Rosemberg, Bazilli e Silva (2003), ao se referirem ao tema racismo em livros didáticos, verificaram que, já nos anos 1950, era perceptível a manifestação de formas de preconceito racial. Esse preconceito acontecia de maneira implícita, por meio da falta de representação do negro na sociedade ou da utilização de uma representação inferior à da pessoa branca.
Dando continuidade, as pesquisas dos anos de 1970 e 1980, em geral, apontavam a naturalização e a universalização do caráter de ser branco. O foco na pessoa branca era uma característica dos livros didáticos que, geralmente, não era explicitada e aparecia com mais frequência nas capas dos livros. Ou seja, a pessoa branca era o destaque, representando um modelo a ser seguido, a grande referência. Por isso, ocorria a sub-representação de negros (e indígenas) em textos e ilustrações; negros, adultos e crianças, como coadjuvantes – associação à subalternidade; sub-representação de alunos e professores negros; e associação do negro à animalidade. É imprescindível perceber a colocação do negro em lugar de inferioridade em detrimento da pessoa branca nos livros didáticos, fato grave, pois o livro didático é uma forma de representação da sociedade e acaba incutindo valores às crianças e adolescentes em formação.
Santos (2016) afirma que a apresentação do negro no livro didático não acontece como realmente deveria. Segundo o autor, a população negra deveria ser representada como pessoas evoluídas, instruídas e valorizadas por toda a sociedade, sem preconceito ou discriminação racial. No entanto, nos livros didáticos de Língua Portuguesa, o negro é frequentemente representado como uma figura folclórica. Com isso, a criança não vê seu cotidiano refletido no livro e não tem oportunidade de perceber a representatividade negra; ou, quando se depara com pessoas negras nos livros, estas estão quase sempre em posições subalternas.
Segundo Cunha et al. (2020), nas universidades e na sociedade em geral, a representatividade negra é um tema que gera muitas discussões. Ainda existem muitas questões a serem analisadas sobre a forma como o assunto vem sendo abordado no currículo. Atualmente, ainda temos um currículo que apresenta a imagem do negro de forma mitificada. Mesmo quando a cultura, os costumes e os valores da população negra são mostrados, ainda existe a associação à prática dos "bons costumes" da cultura branca. Quando a cultura negra é relacionada à negação ou à inferioridade, isso pode ser exemplificado pelo preconceito direcionado às práticas religiosas de matrizes africanas, muito presente ainda hoje em nossa sociedade.
O livro didático ainda apresenta modificações muito pequenas ao longo das décadas quando o tema é a subjetividade e a importância da população negra para a sociedade. Persistem formas de discriminação, desigualdade, estereótipos, estigmatizações e hierarquizações raciais. A Lei nº 10.639/03 estimulou a valorização de textos e imagens da população negra em materiais e livros didáticos, a fim de tornar evidente a importância desse grupo. Portanto, as diretrizes curriculares devem ressaltar a importância do estudo da história e cultura afro-brasileira; no entanto, a realidade ainda é centrada na imagem da branquitude.
Para Silva, Teixeira e Pacifico (2013), há nos livros didáticos hierarquização racial e desvalorização do negro, que evidenciam mudanças e permanências nas representações das relações raciais, mantendo ao mesmo tempo as desigualdades. Essa coexistência de melhorias em alguns aspectos e discriminação em outros ocorre de forma concomitante. Portanto, o livro didático, quando analisado sob o olhar das relações raciais, apresenta uma visão dúbia: ao mesmo tempo em que apresenta as contribuições da população negra para o mundo, também é comum encontrar estereótipos e subalternidade como algo natural entre os negros.
De acordo com Júnia (2010), o discurso contínuo que associa o negro ao passado colonial de escravização gera estereótipos e formas de hierarquia racial, mesmo que exista uma preocupação real dos livros didáticos em desenvolver a educação ética dos alunos. Assim, percebemos que vivemos em um contexto educacional com legislação exigindo a presença da história e cultura negra nos livros didáticos, mas que, na prática, não consegue evitar a diminuição da figura do negro. Vale a reflexão: a exigência da presença de pessoas negras no livro didático por si só não reduz o preconceito nem minimiza a importância de se discutir as posições sociais da população negra.
A partir dessas considerações, é possível levantar questões sobre o lugar do negro na sociedade. Em razão do passado de escravidão, marcado pela desumanização e considerado como "peça" ou "coisa", existe um obstáculo à construção da individualidade e da subjetividade do negro. Ainda é difícil para as estruturas sociais compreender, entender ou interpretar a pessoa negra como sujeito ativo e importante para a sociedade, com uma história que vai além da escravização. Cabe, então, à atividade escolar, além de incluir conteúdos sobre a história e cultura negra no currículo, promover espaços de diálogo e reflexão, discutindo o preconceito e as questões étnico-raciais.
Se o negro, de um lado, é herdeiro desse passado histórico que se presentifica na memória social e que se atualiza no preconceito racial, vive, por outro lado, numa sociedade cujas autorrepresentações denegam esse mesmo racismo, camuflando, assim, um problema social que produz efeitos sobre o negro, afetando sua própria possibilidade de se constituir como indivíduo no social: portanto, não se discute o racismo que, na condição de um fantasma, ronda a existência dos negros (Nogueira, 2021, p. 56).
Nos nossos livros didáticos, as pessoas negras são constantemente representadas pelo lugar do sofrimento e pela ausência de acesso aos bens produzidos socialmente. As imagens e temáticas sobre as pessoas negras aparecem em número menor quando comparadas às de pessoas brancas e estão, em sua maioria, voltadas para a subalternidade. As imagens de crianças negras estão associadas à miséria e ao pouco ou nenhum acesso à educação, enquanto as crianças brancas aparecem ligadas a famílias tradicionais e ao acesso à educação.
Esses são aspectos preocupantes quando direcionamos nosso pensamento para o tipo de formação que estamos oferecendo aos alunos: que visão será construída nas crianças e jovens sobre a importância e a subjetividade das pessoas negras? Elas crescerão reproduzindo o olhar de subalternidade e inferioridade do negro ou desenvolverão sentimento de estranhamento ao verem pessoas negras em posições de destaque intelectual?
É necessário, portanto, refletir sobre a representação do corpo negro de modo a questionar a estrutura social predominante, uma vez que
o corpo negro foi moldado de acordo com uma normalização e uma normatização concebida pelos detentores do poder: patriarcado, religião, machismo etc. Esse molde é concebido a partir de um exercício de poder que tem como principal função postular, nos e a partir dos corpos, regras que devem ser seguidas pelos sujeitos em diversas áreas, tais como, higiene, alimentação, sexualidade, saúde, natalidade e outros assuntos que se tornam preocupações políticas ao longo do tempo. No LDP, pode-se perceber textos nos quais há a presença do corpo negro a normatização de práticas que determinam como ele deve se (com)portar socialmente, ocupando cargos marginalizados como o de empregada doméstica e se subordinando a um discurso dominante (Mendes; Figueira-Borges, 2017, p. 123).
O livro didático é um instrumento para a socialização e humanização, atuando como apoio às atividades de professores e alunos, tendo o professor o papel de mediar o conhecimento. Além disso, ele tem a função de contribuir para a democratização do conhecimento produzido, desenvolver a crítica desse conhecimento e possibilitar aos educandos a elaboração de novos saberes. É sempre importante ter em mente que o ser humano é ativo, simbólico e capaz de construir e reconstruir símbolos de acordo com os estímulos; por isso, o livro didático pode servir como meio para que os educandos vivenciem e fortaleçam seus valores e visão de mundo, além de ser um instrumento que propicia informações e conteúdos simbólicos.
Considerações finais
Levando em consideração que o livro didático é um meio de desenvolver novos olhares sobre os contextos sociais em que vivemos, ele não pode desconsiderar as minorias. Desse modo, para que ocorra a emancipação de uma educação linguística crítica, é necessário que haja representatividade dos grupos minoritários, sendo que essa prática deve acontecer de forma positiva, a fim de mostrar aos educandos a subjetividade das pessoas, suas diversas identidades e a pluralidade cultural. No entanto, segundo Ferreira (2020), isso não ocorre sem a representação do negro, ou quando sua representação não é significativa em comparação à das pessoas brancas. Podemos perceber isso também quando falamos de grupos indígenas e de outras identidades de gênero, que raramente são representadas nos livros didáticos.
Portanto, precisamos estar atentos às formas e aos lugares em que a população negra está inserida nos livros didáticos. É necessário problematizar como se dá sua representação nesse material, pois ela pode servir para moldar uma significação única da imagem do negro, a qual pode estar associada a características negativas e de inferioridade. Ao ter consciência disso e, principalmente, ao refletirmos criticamente sobre o tema, levamos nossas análises à prática do letramento racial crítico, uma vez que não basta apenas a inclusão de imagens de pessoas negras no livro didático para que a temática, tão relevante, das relações étnico-raciais se efetive verdadeiramente.
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Publicado em 20 de agosto de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
OLIVEIRA, Daniane Rafaela de. O livro didático e sua importância na educação antirracista. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 31, 20 de agosto de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/31/o-livro-didatico-e-sua-importancia-na-educacao-antirracista
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