A música como ferramenta pedagógica no ensino de Geografia: análise do samba-enredo da escola de samba da Mangueira de 2019
Vinícius Brito Quinhones
Licenciado e mestre em Geografia (UFF Campos), professor da Educação Básica, doutorando em Geografia (UERJ)
Este trabalho parte de processos e atores sociais que atuam sobre as escolas, com o objetivo de convergir para uma prática educativa próxima à realidade dos estudantes, permitindo que estes se tornem protagonistas na construção de conhecimentos geográficos.
De acordo com Elisângela Fernandes (2011), é necessário considerar os conhecimentos prévios dos estudantes nos diálogos que compõem os processos de ensino-aprendizagem. A proposta aqui apresentada concorda com essa perspectiva, pois entende ser fundamental partir da realidade dos estudantes para a construção de saberes geográficos. Nesse sentido, o uso de linguagens comuns ao universo dos alunos pode contribuir para a leitura do mundo sob a ótica geográfica, bem como para a produção de novos conhecimentos.
Nessa perspectiva, o samba-enredo configura-se como um intercessor relevante para o ensino de Geografia, considerando a forma como o carnaval é culturalmente reconhecido e valorizado em diversas regiões do Brasil, sobretudo no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Os intercessores “são os mobilizadores do pensamento, pois a partir deles é que se criam problemas, pois eles os instigam. Pode-se dizer, assim, que sem os Intercessores, o pensamento não age, não inventa, não cria” (Brito, 2013, p. 2).
Nesse sentido, o samba-enredo permite instigar os estudantes aos questionamentos que suscita, geralmente próximos à sua realidade, sobretudo quando nos aproximamos do cotidiano do ensino público e dos atores nele envolvidos. Comumente realizado durante as férias escolares – havendo casos em que há recesso específico para o evento –, o carnaval resulta de encontros culturais diversos. Ano a ano, as escolas de samba buscam, por meio de seus enredos, abordar temas sociais relevantes que retratam a realidade de determinada população, região ou cultura. Por isso, acredita-se ser possível ao ensino de Geografia abarcar essa forma de linguagem (que, com efeito, é, antes de tudo, geográfica) para o fomento da autonomia de estudantes, professores e professoras na construção de saberes geográficos.
De acordo com Giordani (2020), a escola é um lócus de construção de conhecimentos, considerando a potência intelectual dos atores envolvidos no processo de ensino (docentes e estudantes); potência esta que, não raro, é ignorada enquanto movimento legítimo de produção de saberes.
Este ensaio pretende evidenciar processos que atuam sobre as escolas, bem como a participação dos atores produtores de conhecimento, partindo da ideia de que a música é uma das linguagens que auxilia os estudantes a observar e compreender a espacialidade dos fenômenos sociais (Oliveira et al., 2005).
Busca-se, sobremaneira, contribuir para que nós, docentes de Geografia, possamos nos afastar das noções hegemônicas de currículo, com as quais nos defrontamos em nossa prática, e
desconstruir a noção colonizadora de que currículos seriam artefatos pedagógicos feitos tão somente por especialistas e legitimados apenas por autoridades culturais e educacionais, asseguradas por aparelhos ideológicos institucionalizados (Macedo, 2013, p. 428).
Uma vez compreendido que os currículos podem ser elaborados no interior das escolas e a partir de suas demandas (Macedo, 2013), torna-se possível refletir sobre a potência dessa forma de linguagem para a emancipação curricular. Esse movimento, como é evidente, permite deslocar o centro hegemônico da produção de saberes e conhecimentos das grandes cátedras e universidades para a vivência cotidiana dos estudantes, para o modo como percebem o mundo e, consequentemente, produzem conhecimentos.
Como exemplo do uso da linguagem musical no auxílio ao ensino de Geografia, tomamos o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira de 2019, que denuncia as mazelas da colonialidade do poder na sociedade brasileira, tanto em seu aspecto histórico – relativo ao período de formação do país – quanto em relação à atualidade.
A literatura do samba-enredo como direcionamento à compreensão de processos geográficos
Contribuições acerca da Geografia Escolar permitem compreender a potência dessa disciplina como aquela que assume a responsabilidade de abarcar “não apenas o ensino de uma Geografia, mas o estudo, também, de processos e agentes que incidem sobre a escola” (Giordani, 2020, p. 266-267).
Ao tomar as proposições de Rosa Maria Bueno Fischer (2005) como metodologia factível para a produção de textos científicos dotados de originalidade – textos assinados –, torna-se possível reconhecer nesse percurso um caminho para a produção científica e acadêmica. A atitude de que fala a autora, baseada em Foucault,
talvez possa ser vista como uma verdadeira “técnica em si”, um exercício sobre si mesmo, em favor de uma escrita menos automática, menos servil, menos utilitarista; em favor de uma escrita transgressora (Fischer, 2005, p. 10).
Além disso, importa ressaltar a linguagem musical como ferramenta relevante para a mobilização de estudantes e docentes no processo de construção do conhecimento. No caso dos estudantes, acredita-se que a música desperta interesse e aproxima o que já conhecem à sala de aula, fazendo com que se sintam atores centrais na produção de conhecimentos geográficos. No caso dos docentes, a linguagem musical pode contribuir para a autenticidade da produção de conhecimento, considerando a impossibilidade de reproduzir exatamente a mesma construção em turmas distintas, dada a especificidade de cada grupo.
Tomemos, portanto, o exemplo do samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira para o carnaval do Rio de Janeiro em 2019. Destacam-se, sobretudo, dois trechos fundamentais, pelos quais podem-se considerar importantes contribuições ao ensino de uma Geografia conectada aos saberes da História, com ênfase em um estudo interdisciplinar.
Ao reforçar o entrecruzamento de saberes dessas disciplinas, nota-se, ainda, que, em termos de relações curriculares para o ensino de Geografia, há ênfase na história da formação da população brasileira, conforme destacado no seguinte trecho do samba-enredo:
Brasil, meu dengo.
A Mangueira chegou com versos que o livro apagou.
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento.
Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado.
Mulheres, tamoios, mulatos.
Eu quero um país que não está no retrato (Domênico et al., 2019).
O trecho em questão faz menção à formação territorial do Brasil ao destacar a ideia de invasão em detrimento à de descobrimento. Ou seja, evidencia-se a legitimidade atribuída às populações que ocupavam o território atualmente conhecido como Brasil antes da chegada — segundo o referido samba, invasão — dos portugueses. Nesse caso, trata-se das populações indígenas, seus modos de vida, sua cultura e sua forma de construção de saberes.
No mesmo trecho, observa-se também a ênfase no processo de escravização da população negra, que migrou de modo forçado para o mesmo território por intermédio da ação de portugueses e de outros atores europeus, como os britânicos, que à época legitimavam o tráfico de pessoas escravizadas. Em “Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”, destaca-se o papel dos atores escravizados que participaram ativamente da construção do país por meio do trabalho, do plantio e da colheita e, sobretudo, da produção cultural e de saberes, elementos fundamentais da ideia de Brasil nos dias atuais.
Ainda sobre a ênfase destinada aos atores historicamente escamoteados na construção do Brasil, as problemáticas relacionadas ao gênero também são centrais neste samba-enredo. Produzido em 2018, no contexto do assassinato de Marielle Franco — então vereadora da cidade do Rio de Janeiro, eleita nas eleições municipais de 2016 para um mandato que deveria se estender de 2017 a 2020, não fosse o atentado que lhe tirou a vida em 14 de março de 2018 —, o samba-enredo evidencia a violência de gênero, em especial contra as mulheres, e anuncia ao Brasil que “chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês” (Domênico et al., 2019). Considerando a natureza do atentado, caracterizado como crime político contra uma mulher parlamentar eleita democraticamente, o feminicídio político é denunciado na obra.
Tomando a política do Rio de Janeiro como exemplo, a ênfase na voz feminina no samba-enredo se justifica pelos números das eleições municipais de 2016: entre 51 vereadores eleitos, 7 eram mulheres e 44 eram homens. Ou seja, os vereadores representavam 86,27% das cadeiras, enquanto as vereadoras correspondiam a 13,73%, indicando uma diferença percentual de aproximadamente 72,54% entre homens e mulheres na Câmara Municipal.
Vale lembrar que “a exclusão, a fragmentação e a marginalidade são muitas vezes realidades invisíveis na representação da síntese geográfica”. Esses termos “carregam na sua especificidade, ao lado da submissão e da espoliação urbana, a potência da resistência” (Marquez, 2006, p. 11-12).
De acordo com a análise dos trechos selecionados do samba-enredo, considerados para discutir a potência da música no ensino de Geografia, tais tensionamentos contribuem para reflexões sobre os aspectos territoriais brasileiros, uma vez que questionam a ocupação do território e os atores envolvidos na constituição do país. Nesse sentido, a espacialidade das práticas territoriais, sociais e culturais é nítida nos trechos em questão, permitindo elucidar e levantar questionamentos sobre a formação do Brasil no exercício do ensino de Geografia. Assim, para além de uma música de samba-enredo, a obra se apresenta como uma potente ferramenta de fomento ao ensino.
Discussões e apontamentos
As reflexões acerca do tema permitem reconhecer que o samba-enredo se caracteriza como produção de atores que incidem sobre as escolas e inferir que
se justifica pela necessidade dos conteúdos ministrados serem problematizados, contextualizados e relacionados à vivência dos alunos, valorizando seus conhecimentos prévios, pois se partirmos do pressuposto de que a melhor forma de motivação está presente no cotidiano de nossos alunos, a utilização da música como instrumento de ensino e aprendizagem é um exemplo disto (Muniz, 2012, p. 81).
Além disso, as análises presentes neste trabalho conduzem à pertinência da linguagem musical em relação à construção de conhecimentos geográficos, bem como ao desenvolvimento da autonomia intelectual dos estudantes. Por meio da arte, pode-se espacializar as práticas espaciais e territoriais, ou seja,
Em vez de uma cartografia de caminhos e paisagens, a arte pretende cartografar processos e margens, trasladando da contemplação para a ação humana junto às paisagens que ela constantemente conforma (Marquez, 2006, p. 16).
O que se está a dizer é que o samba-enredo em questão é repleto de saberes dotados de espacialidade, pois traz à luz a nossa verdadeira história, podendo ser utilizado como ferramenta para a construção de saberes geográficos no ensino de Geografia, como evidenciado na análise realizada anteriormente.
O reconhecimento dessa forma de produção de saber musical e literária como arte contida de forte potencial de intervenção no ensino de Geografia conduz ao entendimento de que
muito do poder da arte atual encontra-se nessa temporalidade da intervenção, que estabelece uma ruptura momentânea em estruturas estabelecidas, readequando-as a novas molduras de interpretação crítica. Arte como ciência e ciência como arte constituem movimentos necessários de expansão dos experimentos de mundo (Marquez, 2006, p. 21).
Tendo este fato sido reconhecido, acredita-se poder inferir que a produção de conhecimentos parte não somente das grandes cátedras e renomadas universidades, mas também dos atores sociais que produzem espaço cotidianamente. Para maior clareza, essa produção pode surgir, sobretudo, de homens e mulheres que constroem, ano a ano, os sambas-enredo de cada ‘academia’ de escola de samba — saberes e conhecimentos que mobilizam docentes e estudantes ao movimento intelectual de reflexão e construção de conhecimentos geográficos.
Valorizar e trazer o samba (neste caso, o samba-enredo) como proposição de intervenção no ambiente escolar e no ensino de Geografia é valorizar a cultura da população marginalizada. Para além da análise do samba-enredo tomada como exemplo, vale ressaltar que trazer o samba, enquanto cultura que surge “nos morros e cortiços da cidade do Rio de Janeiro”, a partir da “combinação dos batuques e rodas de capoeira com os pagodes e as toadas em homenagem aos Orixás” (Anjos, 2016, p. 53), é fomentar as proposições da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que versa sobre o ensino e a valorização da cultura e dos saberes africanos, bem como sobre a luta da população negra, a cultura negra brasileira e a importância da pessoa e da cultura negra na formação da sociedade nacional.
Considerações finais
Uma primeira consideração a ser pontuada é a concordância de que a escola é um lócus de produção de conhecimento (Giordani, 2020). O processo de formação de professores deve envolver a desnaturalização de axiomas que não permitem enxergar, na escola, docentes e estudantes como potenciais atores produtores de conhecimento geográfico, escapando às amarras que reconhecem apenas as cátedras e universidades enquanto construtoras de saber.
Os saberes são construídos por sujeitos, atores sociais, que produzem espaço e cultura cotidianamente a partir de suas ações, incluindo docentes e estudantes que ocupam as escolas. Se estes são sujeitos construtores de saberes, são, por conseguinte, construtores de currículos.
O que pode, então, o samba-enredo ao ensino de Geografia? Pode, sobretudo, contribuir para o esquecimento das proposições que tratam as escolas como mundos alienados ao seu entorno, além de fomentar a autonomia intelectual de docentes e estudantes do ensino básico e possibilitar o tratamento de temas como distinção por classe, racismo e violência de gênero. Temas conhecidos e próximos da realidade dos estudantes do Rio de Janeiro, mas pouco reconhecidos enquanto questões geográficas e curriculares.
O que fica evidente, no entanto, é que estes sujeitos jamais dependeram dos currículos “oficiais” para a construção desses conhecimentos, pois o que sentem, sentem na pele — pele que, geralmente, reveste um corpo feminino, negro e economicamente desfavorecido, como o caso das incontáveis “Marias, Mahins, Marielles, Malês” (Domênico et al., 2019), trazidas pelo grito do samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira para o carnaval de 2019, que é o grito da grande massa da população brasileira, cuja verdadeira história e currículo foram escamoteados pela narrativa historicamente considerada legítima.
Este artigo apresentou um exercício de analisar uma obra produzida fora das universidades e discutir sua potência para o ensino de Geografia. Constatou-se que o samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira para o carnaval do Rio de Janeiro de 2019 pode ser utilizado como ferramenta para o ensino de Geografia nas escolas, inclusive para um ensino interdisciplinar, que coloca a Geografia ao lado de outras ciências e disciplinas relevantes para a compreensão da formação do Brasil, como é o caso da História.
Referências
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Publicado em 27 de agosto de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
QUINHONES, Vinicius Brito. A música como ferramenta pedagógica no ensino de Geografia: análise do samba-enredo da escola de samba da Mangueira de 2019. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 32, 27 de agosto de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/32/a-musica-como-ferramenta-pedagogica-no-ensino-de-geografia-analise-do-samba-enredo-da-escola-de-samba-da-mangueira-de-2019
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